Os gêneros literários procedem por
evolução. Sucessivos tentames se vão acumulando, sobrepondo, completando, até
que, de período em período, surge o que se fica chamando um "molde".
Obtido esse molde, vazam-se nele centenas, milhares de obras, até que o molde
envelheça, se transforme e nos apareça completamente outro à primeira vista.
Há quem acredite em moldes novos e
fale neles. Eu partilho a opinião de que, à semelhança das luas novas, que,
segundo diz o poeta, são feitas de bocados de luas velhas, os moldes, que
marcam transições no caminhar da literatura, têm sempre inspirações remotas.
Estou convencido de que não há nada de novo debaixo do sol da literatura e cada
vez mais me convenço à medida que vejo caminhar as letras no sentido da
simplificação. O que há são expressões novas, condizentes com o tempo em que
aparecem e harmonizadas com a moda das ideias. Foi sempre um passatempo erudito
encontrar a filiação longínqua dos fatos literários, que mais modernos e originais
se nos afigurem. Já leram o artigo de Pawlowsky em que se demonstra que a ideia
e a filosofia do Boubouroche de
Courteline estão na Bíblia?
Eça de Queirós fixou um molde no
romance português, pois os seus livros não se assemelham — creio eu — nem ao Arco de Santana, nem ao Amor de Perdição, nem à Morgadinha dos Canaviais. Esse molde,
novo na nossa literatura, não era novo afinal. Se não buscou a sua inspiração nos
escritores da nossa terra, não nega Eça, nem o negam os espíritos do seu
convívio, a influência sobre ele exercida pelas novas escolas francesas da sua
época. Mas o que lia de extraordinário em Eça e é um dos aspectos mais admiráveis
do seu gênio, é que, enquanto em França se hesitava, se apalpava terreno na
fixação de uma fórmula, que em absoluto não se chegou a formar, ele sem um
embaraço, nem um recuo, encontrou uma adaptação portuguesa, perfeita, completa,
caracteristicamente nacional ao ponto que podemos esquecer sem rebuço as
influências estrangeiras, tanta originalidade na sua assimilação, se nos é
permitido exprimir-nos assim.
Eça criou um molde no romance
português. Esse molde permanece o último que tenhamos tido. Ainda se não
avançou um passo. As razões são várias, além da medida do talento dos autores;
mas a superioridade absoluta do Mestre, não só sobre os que se confessam
abertamente seus discípulos, mas ainda sobre os que têm tentado frouxas imitações
de esboços de fórmulas importadas do estrangeiro deriva, a meu ver, de um fato simples:
Eça de Queirós era um humorista e os que os seguiram não o são.
Faço a justiça a todos que me leem de
supor que têm uma ideia nítida do que é o humorismo. Se estas linhas caírem sob
os olhos de alguém que ainda julgue, nestas épocas de Anatole France e de Jules
Renard, que um caixeiro viajante contando anedotas de padres à mesa de um hotel
de província ou um mancebo alegre escrevendo uma farsa para o Ginásio são
humoristas, dir-lhe-ei respeitosamente que se ilude com palavras, que deve
aprender a fazer a distinção entre bom humor e humorismo, que o primeiro é uma
questão em grande parte fisiológica e dependente do bom funcionamento do
estômago, dos intestinos e do fígado e o segundo uma feição moral do espírito,
não sendo, aliás, incompatíveis.
Conheço entre nós vários escritores de
bom humor. Hesitaria muitíssimo se me mandassem citar um humorista. Perdoem-me
falar de mim quando devia falar de Eça de Queirós; mas verão que o que vou
dizer se aplica como exemplo e portanto, é mais natural que eu seja
desagradável a mim próprio do que ao meu confrade do lado. Não posso deixar de
protestar muito amável e reconhecidamente contra os que me têm chamado
humorista, quando, a par de umas peças alegres, tenho publicado alguns livros
de anedotas literariamente apresentadas, e não assinalaram para justificarem a
sua classificação as tentativas de verdadeiro humorismo, que noutras páginas
esbocei ou que deixei vincadas em detalhes dos trabalhos que o público e a
crítica aceitaram em globo como humorísticas.
Humorista não é quem faz rir: é quem
faz pensar. Note-se que digo pensar e não sonhar. O humorismo chama os espíritos
à realidade da vida sem todavia ter também o amargo dos pessimistas. Entre
estes e os floricultores de ilusões, que são os poetas e os prosadores
descendentes das escolas românticas e anexas, há o verdadeiro lugar do
humorista. A vida não é tão feia como aqueles a descrevem, nem tão linda como
estes a pintam. É — como os humoristas a apontam — uma série de equilíbrios
entre o mau e o bom, entre o vício e a virtude, entre a alegria e a tristeza,
entre o azar e a sorte. O homem não é um monstro, nem um santo; a mulher não é
uma víbora, nem um anjo. Somos um pouco de tudo, andamos guiados, ou — para
melhor dizer — impelidos, desde o berço até à cova, por forças resultantes de
concorrentes várias que vão desde os nossos instintos morais e físicos até às leis
inegáveis das convenções, dos hábitos, das tradições. É essa vida que os
humoristas observam sem acrimônia e sem condescendência e nos indicam umas
vezes com sorrisos que são tristes, outras com mágoa que não exclui a malícia. Porque
o humorismo é a verdade dentro da Arte da escrita, a sua forma de expressão tem
de ser clara, límpida, exata, despida dos artifícios da literatice e dos
pré-históricos clichês que vêm de mão
em mão há séculos e que são sempre os mesmos por mais que os disfarcem.
O humorismo — na nobre acepção e amplo
significado do termo — há de vir a ser o fundo definitivo da literatura. Não
sou eu que o digo: é a lógica de toda a história literária. Quando, passados os
dias tormentosos em que se está regenerando a humanidade à custa da dor e do sangue,
decorridos os períodos de transformações sociais que lhes vão suceder, a
literatura caminhará direito para exprimir o espírito desses tempos futuros,
como é a sua eterna função, o humorismo, ainda hoje mal compreendido em meios
de restrita intelectualidade e boa boca literária como o nosso, impor-se-á
definitivamente. A literatura deixará de ser o logro da imaginação que tem
sido, e, com o brilho de forma a que tem tendido os esforços dos estilistas, voltará
no seu fundo às normas de rígida sinceridade, que respiraram as fórmulas
primitivas e são a base do humorismo.
***
Eça de Queirós encontrou, no seu
tempo, um molde de romance, que ainda ninguém melhorou entre nós e que pode sofrer
sem receio comparação com os estranhos. Mas devemos admirá-lo mais porque soube
ser um humorista na época em que o humorismo se ignorava ainda um pouco a si próprio
e se chamava no boulevard a ironia e
o paradoxo. Eça foi-o de um só jato, ainda hoje o é e sê-lo-á sempre, pois não
vejo que muito se possa ganhar de futuro sobre o que ele fez.
Se não confiasse na Eternidade que há de
dar à humanidade infindáveis milhares de anos, e dado o galopar de cágado com
que a vida portuguesa caminha, quase me atreveria a dizer que Eça é definitivo.
Em verdade não podemos pasmar da
concepção dos romances de Eça de Queirós. Posta de parte A Relíquia, que até na sua essência é humorística, o entrecho dos
outros, especialmente dos primeiros, roçando às vezes pelo melodrama, entra no
caso como a espinha necessária e a carcaça indispensável. O que prende em Eça é
o detalhe, o desenho das figuras, a minúcia das peripécias, o diálogo e as ideias
expostas no correr da ação sem serem as determinantes dela. E isso — digo-o,
repito-o e sinto não ter o talento de o demonstrar como o penso — é admirável
porque é deduzido, é exposto, é rematado dentro do que se pode tomar como
regras e princípios do humorismo.
Com ele deu um formidável relevo às figuras
cômicas dos seus livros— o Acácio, o Raposão, o Alencar, e foi ainda guiado
pelos seus processos de observação, de análise e de expressão, que encontrou a
maneira de tornar vivas e, portanto, imortais todas as outras figuras. Há nos
romances de Eça, à margem das principais personagens, criaturas que passam um
instante por necessidade de ação. Sob a pena de outros escritores seriam baças,
apagadas como a sua função. Eça, com dois toques de humorismo, com um detalhe
de vestuário, com um dito, põe-nos de pé. Elas saem; mas já não esquecem.
Não há nos livros de Eça, que eu
admiro como Victor Hugo admirava Shakespeare — comme une brute— uma página que soe a oco, a inventado, a
contrafeito, a desnecessário, a encaixado. Toda a sua obra de romancista é de uma
espontaneidade, de uma sinceridade, de uma honestidade que só podem provir de
um verdadeiro humorista. Os seus romances são a vida bem contada e tanto assim
que a gente deles nós conhecemo-la e os entrechos quase que iríamos dizer que
assistimos a eles.
Há anos desembarcou em Lisboa um rapaz
de letras, brasileiro. Escuso de lhes revelar que no Brasil se ama apaixonadamente
Eça de Queirós. Pois à porta de uma livraria da Rua do Ouro dizia-me o nosso
hospede recentemente desembarcado: — “Sabe o que estou aqui fazendo há duas horas?
Estou vendo passar os romances de Eça de Queirós. Tenho visto desfilar aqui o
Basílio, a Luísa, aquele Dr. Margaride incomparável em questões de saborear o
grandioso, esses padres a quem o Mestre votava uma tão justificada fobia...
Olhe: repare! Além vai a Juliana.” E, no outro passeio, efetivamente, passava a
criada imortal.
Quem tenha bem presentes ao espírito
os livros de Eça não vê decorrer um dia da sua existência sem que uma peripécia
da vida comum, uma atitude, um gesto, um dito de um amigo ou indiferente lhe
não façam recordar qualquer pormenor da obra do grande morto.
Isto explicava-se e ainda hoje se
explica dizendo-se que ele foi um grande observador. Mas uma máquina
fotográfica não se recomenda apenas pela limpidez da objetiva. Necessita que a
placa e os cuidados que se lhe deem sejam perfeitos. Observar, é evidentemente
indispensável a um escritor do gênero, mas é pouco. O que completou e fez
grande Eça de Queirós foi o seu temperamento intelectual e foram os seus
processos de expressão. E estes, como aquele, eram os de um grande humorista.
***
É possível que eu não deixasse o caso
claramente demonstrado nestas linhas que sou forçado a escrever à pressa. É
provável mesmo que, como o macaco da fábula, eu gabasse a luz da lanterna e me esquecesse
de a acender. Alguns espíritos me terão compreendido em absoluto, suprindo a
deficiência da minha exposição. Aos outros, rogo que dividamos as causas da
incompreensão em dois quinhões: um muito maior que tomo sobre mim e sobre as falhas
do meu talento. O outro recairá sobre a resistência muito grande que tem
encontrado o humorismo para se impor. Há quem o ame sem saber como ele se
chama.
---
ANDRÉ BRUN
"Eça
de Queiroz: In Memoriam" (1922)
Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019).
Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019).
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Sugestão, críticas e outras coisas...