Duas épocas
e dois monumentos ou a Granja Real de Mafra
Houve entre nós um rei nascido com uma índole generosa
e magnífica: foi D. João V. Favoreceu a fortuna a grandiosidade do seu ânimo.
Durante o reinado deste príncipe as entranhas da América pareciam converter-se
em ouro, e a terra brotar diamantes para enriquecerem o tesouro português, e o
nosso primeiro rei do século XVIII pode emular Luís XIV em fasto e
magnificência. Há, porém, diferenças entre os dois monarcas: Luís XIV, mais
guerreador que guerreiro, malbaratou o sangue de seus súditos em conquistas estéreis;
D. João V, mais pacífico que tímido, comprou sempre, sem olhar ao preço, a paz
externa dos seus naturais. Luís XIV levou a altíssimo grau de esplendor as
letras e as ciências: D. João V tentou-o; mas ficou muito aquém do príncipe
francês. Devemos todavia lembrar-nos de que Luís XIV era senhor de uma vasta
monarquia, e D. João V rei de uma nação pequena. Uma literatura extensa e ao
mesmo tempo vigorosa só aparece onde há muitos homens. É como a grande cultura,
que só pode fazer-se em opulentas propriedades e dilatados terrenos.
D. João V teve como Luís XIV o seu Louvre; mas um
Louvre em harmonia com o caráter, não tanto religioso como beato e hipócrita,
do seu país naquela época. Mafra ficou duvidosa no desenho, entre o mosteiro e o
palácio. As duas entidades arquitetônicas compenetram-se aí dum modo inextricável.
A púrpura está lá remendada de burel; o burel alindado com púrpura, e o cetro
do rei enlaça-se com a corda de esparto, ao passo que a alpargata franciscana
ousa pisar os degraus do trono. Os que sabem quão corrompidos foram os costumes
em Portugal no princípio do século passado, e quão esplêndido e ostentoso foi o
culto divino; quão brilhante foi a corte portuguesa nesse tempo, e por quão
frouxas mãos andou o leme do estado, não precisam ver Mafra. Mafra é a imagem
de tudo isso.
Um grande edifício, fosse qual fosse o destino que seu
fundador lhe quisesse dar, é sempre e de muitos modos um livro de história. Os
que nele buscam só um tipo por onde aferir o progresso ou decadência das artes
na época da sua edificação, leem apenas um capítulo desse livro. Os castelos,
os templos, e os palácios, tríplice gênero de monumentos que encerra em si toda
a arquitetura da Europa moderna, formam uma crônica imensa, em que há mais
história que nos escritos dos historiadores. Os arquitetos não suspeitavam que
viria tempo em que os homens soubessem decifrar nas moles de pedras afeiçoadas
e acumaladas a vida da sociedade que as ajuntou, e deixavam-se ir ao som das
suas inspirações, que eram determinadas pelo viver e crer e sentir da geração
que passava. Eles não sabiam, como os historiadores, que no seu livro de pedra,
também como nos daqueles, se podia mentir à posteridade. Por motivo tal foi a
arquitetura sincera.
Mafra é um monumento rico, mas sem poesia, e por isso
sem verdadeira grandeza: é um monumento de uma nação que dormita após um
banquete como os de Lúculo: é o toucador de uma Laís ou Frine assentado dentro
do templo do Deus dos cristãos, e sob outro aspecto, é a beataria duma velha
tonta, afetando a linguagem da fé ardente e profunda de Origines ou de
Tertuliano.
Sem contestação, Mafra é uma bagatela maravilhosa, o
dixe de um rei liberal, abastado e magnífico; é pouco mais ou menos o que foi
Portugal na primeira metade do século XVIII.
Colocai pela imaginação Mafra ao pé da Batalha, e
podereis entender quanto é clara e precisa a linguagem destas crônicas, lidas
de poucos, em que as gerações escrevem misteriosamente a história do seu viver.
A Batalha é grave como o vulto homérico de D. João I, Poética e altiva como os
cavaleiros da ala de Mem Rodriguez, religiosa, tranquila, santa como D. Filipa
rodeada dos seus cinco filhos. As mãos que edificaram Santa Maria da Victoria,
meneando as armas em Aljubarrota, deviam ser vencedoras. A Batalha representa
uma geração enérgica, moral, crente: Mafra uma geração afeminada, que se finge
forte e grande. A Batalha é um poema de pedra: Mafra é uma sensaboria de
mármore. Ambas, ecos perenes que repercutem nos séculos que vão passando a
expressão complexa, e todavia clara e exata, de duas épocas históricas do mesmo
povo, sua juventude viçosa e robusta, e sua velhice caquética.
O caráter de um monumento do tempo presente não pode
ser por certo um edifício gigante, um templo, ou um palácio. Onde as crenças
religiosas vacilam como a luz que se apaga, o templo seria uma página de
história fabulosa: onde a pobreza extrema substitui a riqueza, um tanto
estúpida e fastosa com mau gosto, o palácio esplêndido seria um capítulo anacrônico.
O monumento deve resumir a sociedade, e em nenhum desses gêneros de memoradum se
acharia representado o atual existir.
Que somos nós hoje? Uma nação que tende a
regenerar-se: diremos mais: que se regenera. Regenera-se, porque se repreende a
si própria; porque se revolve no lodaçal onde dormia tranquila; porque, se
irrita da sua decadência, e já não sorri sem vergonha ao insultar de estranhos;
porque principia, enfim, a reconhecer que o trabalho não desonra, e vai
esquecendo as visagens senhoris de fidalga. Deixai passar essas paixões
pequenas e más que combatem na arena política, deixai flutuar à luz do sol na
superfície da sociedade esses corações cancerosos que aí vedes; deixai
erguerem-se, tombar, despedaçarem-se essas vagas encontradas e confusas das
opiniões! Tudo isto acontece quando se agita o oceano; e o mar do povo agita-se
debaixo da sua superfície. O sargaço imundo, a escuma fétida e turva hão de
desaparecer. Um dia o oceano popular será grandioso, puro e sereno como saiu
das mãos de Deus. A tempestade é a precursora da bonança. O lago asfaltite, o
Mar-Morto, esse é que não tem procelas.
O nosso estrebuchar, muitas vezes colérico, muitas
mais mentecapto e ridículo, prova que a Europa se enganava quando cria que esta
nobre terra do último ocidente era o cemitério de uma nação cadáver. Vivemos: e
ainda que semelhante viver seja o delírio febril de moribundo, esta situação
violenta, aos olhos dos que sabem ver, é uma crise de salvação, posto que
dolorosa, e lenta. Confiemos e esperemos: o nome português não foi riscado do
livro dos eternos destinos.
Um dos sinais evidentes da restauração social do país,
e ao mesmo tempo o caráter mais notável que distingue esta época é o seu movimento
industrial, industrial na mais extensa significação da palavra. Primeira entre
as diferentes indústrias é a agricultura, e a agricultura tem
incontestavelmente sido o nosso principal progresso.
Qual será portanto o monumento que melhor resuma este
período de regeneração? Será o aspecto do solo, o viço dos campos, a abundância
substituída à escassez na morada do homem laborioso. Arroteai algumas jeiras de
terra: em um marco esculpi a data dessa transformação: cobri a superfície de
Portugal destes marcos. Eis aí, não um, porém mil monumentos que significarão o
espírito do presente.
Plantai o bosque na serrania escalvada: que ele
braceje virente para o céu, e enrede as suas raízes nas rachas da penedia.
Agitada pelo vento, a selva com o seu rugir irá contando a cada século que
nascer as tendências laboriosas do nosso, que já começam a aparecer. Os cimos
das montanhas são as verdadeiras aras de Deus: é lá que oravam as nações
virgens. Santificai a vossa religião de patriotismo pelo culto universal e primitivo:
o bosque murmurando com o espirar da aragem é um hino ao Ancião dos Dias: que
este hino nos consagre a memória ao amor e gratidão de nossos filhos!
Ao lado dos paços monásticos de Mafra, monumento de
uma era de vans grandezas, vai-se hoje alevantando sem ruído o monumento
modesto, mas eloquente e santo, da ideia progressiva da atualidade. Ao lado
dessas pedras amontoadas, desses torreões gigantes, maciços, e pesadamente
estúpidos, serpeiam já os prados virentes por veigas e vales, cobertos ainda há
pouco de abrolhos e urzes. Contrastando com os lanços de muralhas caiadas da
ocre, que amareleja bestialmente, como um cordão de ouropel enfiado em
diamantes, por entre a cor severa dos mármores tisnados pelo tempo, veem-se ao
longo verdejar os pinheirinhos, que coroam as alturas ao norte e oriente
daquele edifício monstruoso, hibrido, e extravagante como uma composição pseudopoética
da Fênix Renascida. As folhas de terra cultivada dilatam-se pelas chapadas e
encostas, várias na cor segundo a altura das cearas, ou conforme a qualidade do
solo, nos sítios onde ainda as sementeiras não surgem no começo do germinar. É
como um xadrez enorme, cujas casas se houvessem repartido ao acaso num tabuleiro
irregular e imenso.
A vontade real fez aparecer o edifício: outras
Vontades Reais fizeram nascer a granja-modelo. Para a primeira requeria-se ouro
e força; para a segunda inteligência e amor do país. O cetro foi robusto e
potente quando amontoou aquela penedia lavrada e esculpida: o cetro é o símbolo
da paz e da beneficência quando em vez de converter pão em pedras, converte
gandra bravia e estéril em um nobre exemplo que mostre ao povo onde está a sua
derradeira esperança, o progresso da indústria e o amor do trabalho.
Para a maravilhosa inutilidade de D. João V
gastaram-se por largos anos os milhões que de contínuo nos entregava a América:
o lidar acumulado de cinquenta mil homens consumiu-se em desbastar e polir
essas pedras hoje esquecidas, que apenas servem para alimentar por algumas
horas a curiosidade dos que passam. É uma verdade cem vezes repetida, que o
preço de Mafra teria coberto Portugal das melhores estradas da Europa; mas nem
por ser trivial essa verdade deixa de ser dolorosa. E todavia tal preço era o
menos! As maldições submissas dos que foram arrastados de todos os ângulos da
monarquia, para esta grande anuduva nacional, e as lágrimas das suas Famílias,
não as pode sufocar a adulação cortesã; transudaram até nós nas páginas da
história, e caindo sobre o ataúde dourado do príncipe que as fez verter,
deixaram a inscrição do seu nome manchada de uma nódoa que o tempo não gastará.
A vasta e risonha granja que viceja ao lado do negro e
carrancudo edifício não custou uma só mealha dos dinheiros públicos; não
arrancou uma lágrima. Não são maldições o seu fruto: são bênçãos dos que vivem:
serão no futuro bênçãos da posteridade.
O convento-palácio, nascido sob manto de púrpura,
alegre na sua juventude e habituado a pompas de longos anos, aí está, ilustre
mendigo, assentado hoje num como ermo, onde a vida robusta de séculos que lhe
fadara o fundador, se vai convertendo em antecipada decrepidez. Inutilmente com
a sua grande voz de bronze ele pede que o abriguem das injúrias das estações.
As águas do céu, filtrando-lhe por entre os membros, lá os vão lentamente
desconjuntando, o sol cresta-lhe a fronte e faz prosperar os musgos, que lhe
arrugam a rija epiderme: o vento redemoinha através das suas janelas mal
seguras, e bramindo naquelas solidões do seu recinto, atira ao rosto das
estátuas, aos acantos dos capiteis, à face polida das paredes de mármore, o pó
que tomou nas asas passando pelas serranias. No meio do estrepitar do mundo
ninguém escuta o gemer do gigante de pedra; ninguém se lembra de tirar do pecúlio
do estado a mais pequena soma para ele. E por quê? Porque a sua miséria não
fala aos corações nem aos entendimentos. Memorias gloriosas? Não as há lá.
Utilidade? Para que serve essa pedreira imensa?
A granja, porém, de Mafra nem teme as águas do céu,
nem os raios criadores do sol: povoa os seus agros outeiros de pinhais, a cujo
abrigo zombará em breve da fúria dos ventos. Não vai pedir socorros à
munificência publica: útil já aos pequenos e humildes, sê-lo-á também algum dia
a quem a fez nascer, útil em proveitos materiais, e, o que mais vale, em frutos
de verdadeira glória.
Há quatro anos apenas, que os muros da cerca ou tapada
de Mafra, estirando-se como serpe monstruosa por três léguas, através de vales
e outeiros, encerravam um vasto maninho coberto de sarças rasteiras, onde raro
se via alevantar uma árvore solitária, curva e pendida pelo açoutar contínuo
das ventanias, ou algum pequeno e enfezado pinhal perdido no meio daqueles
matos inúteis. Era um símbolo de barbaria ao pé de um símbolo de opulência. O
edifício e o parque pareciam significar no seu conjunto — o orgulho tendo por
fundamento o nada.
Há três anos ordenaram Suas Majestades se começassem a
desbravar esses terrenos incultos. O atual intendente das cavalheriças reais, o
Sr. A. Severino Alves, foi encarregado de administrar as caudelarias ali
estabelecidas, e da direção daquele arroteamento. Obra de uma sexta parte da
tapada mais próxima do edifício destinou-se imediatamente para a cultura, e os
trabalhos principiaram. O estado em que estes se acham, comparado com as despesas,
proporcionalmente diminutas, que se tem feito, provam que talvez houvesse quem
fosse tão digno de ser encarregado de realizar o pensamento generoso, nobre, e
civilizador dos nossos Príncipes, mas que ninguém por certo o seria mais que o
Sr. A. Severino Alves.
O que vamos dizer não é completo; não é a história particularizada
de tudo que examinamos com os próprios olhos; porque não queremos ser prolixos.
O nosso intento é ver se contribuímos para o verdadeiro progresso da terra em
que nascemos. Se os grandes ou pequenos proprietários que abandonam os seus
campos e herdades, ou que desprezam os meios de os tornar mais produtivos, se
mostram surdos ao bradar da imprensa e de todos os homens sisudos, revocando
esta mal-aventurada nação à atividade e ao trabalho, que se envergonhem ao
menos com o exemplo que lhes dá o trono. Enquanto os governos e os parlamentos
ponderam a conveniência, a necessidade do estabelecimento das quintas de
estudo, em Mafra, sem ruído, sem verbosos relatórios e discursos, se vai
estabelecendo e aperfeiçoando uma granja modelo, que esperamos faça sentir dentro
de pouco à agricultura portuguesa o seu benéfico influxo. Certos de que suas
majestades se colocarão à frente do movimento agrícola do país, porque o
aumento da agricultura deve trazer a prosperidade aos seus súditos, neste
jornal, que se derrama por todos os ângulos de Portugal, daremos notícia das
experiências que se forem fazendo, dos melhoramentos que se forem introduzindo
nas propriedades do apanágio da Coroa. A nossa situação especial nos habilita
para obter a este respeito exatas informações. A utilidade que daí possa
resultar aos agricultores, retribuam-na eles em gratidão aos Príncipes que
souberam ser dignos do amor dos portugueses, e entenderam plenamente o grave e
progressivo pensamento deste século.
Escolhida a porção de terreno na tapada de Mafra, que
se devia destinar à cultura, dividiu-se aquela parte em oito grandes tratos ou
folhas, cujo arroteamento se tem seguido sucessivamente e sem interrupção até
hoje.
O sistema adotado para este fim foi o melhor que era
possível imaginar. Além da cultura feita à custa da Casa Real, vão-se
distribuindo aos habitantes da vila de Mafra os terrenos que eles querem
desbravar. O inteiro uso-fruto destes terrenos fica pertencendo por três anos a
quem os converte de maninhos que eram em terras aráveis, e ainda que o solo da
tapada me pareça de inferior qualidade, e se achasse muito deteriorado pelas
plantas ruins de que estava coberto, todavia essa cultura tem dado excelentes
resultados. A produção da batata, planta tão conveniente para terrenos
arroteados de novo, há sido tal, que no ano passado se alevantaram na tapada
1:800 carradas deste útil solano, cuja introdução na Europa tornou impossíveis
as fomes espantosas, que de anos a anos lhe desbastavam a povoação. Nessas
encostas e veigas onde, tão pouco tempo há, os olhos esmoreciam alongando-se
pelos sarçais, veem-se estendidas as searas, os campos de milho e os batatais,
e nos rostos dos habitantes da vila e dos povoados circunvizinhos, e nos seus
trajos e porte, vê-se que se o amor da taberna tem diminuído, os hábitos do
trabalho, e por isso a abastança tem aumentado.
Mais de vinte éguas, mães e filhas, e de quarenta
poldros, constituem já uma caudelaria que vai adquirindo rápido crescimento. Cinquenta
vacas entre as de casta vulgar, torinas e de uma excelente raça asiática, aí
são tratadas com esmero talvez não inferior ao que se emprega na começada
caudelaria. Os estábulos e currais, ordenados pelos melhores métodos modernos,
e com atenção a importantes considerações higiênicas, seriam um bom modelo para
aqueles que pensam reduzir-se o tratamento dos gados unicamente a dar-lhes
muito de comer, não importa se bom ou mau.
Ainda que na granja de Mafra os animais sejam
alimentados, por via de regra, à manjadoura, sistema hoje aconselhado nos
países mais adiantados como preferível por graves motivos, nem por isso deixa
de haver neste estabelecimento agrícola muitos prados pastáveis, compostos,
além da azevém, de uma mistura de certo número daquelas plantas de que
separadamente se compõem os artificiais. Estes, porém, merecem com razão os
especiais cuidados do Sr. Severino Alves.
As plantas que constituem estes prados, tanto regados
como secos, são a luzerna, os trevos, branco e encarnado, o onobriquis (sainfoin), a anafa, a cenoura, e a
ervilhaca. A cultura d'algumas destas forragens ainda se limita a diminutas
experiências, mas a de outras já tem adquirido bastante extensão. Admiramos
sobretudo um luzernal, onde o método da transplantação produziu magníficos
resultados. Cada pé de luzerna lançando em roda os seus muitos rebentões ou
filhos, forma uma espécie de moita robusta, que produz em cada corte muito
maior porção de pasto do que produziria uma superfície igual à que ocupa,
semeada de luzerna que não fosse transplantada.
O incremento que estes prados podem ter naqueles,
dantes tão pobres e tristes, hoje tão ricos e risonhos terrenos, é de extrema
importância. Duas enormes lagoas, uma das quais é constantemente refrescada e
suprida por uma pequena veia d'água perene, foram limpas e vedadas
construindo-se canos subterrâneos por onde se hajam de sangrar
convenientemente. Estas lagoas, colocadas em certa altura, podem regar um vale extensíssimo,
ótimo para o aumento de prados.
A silvicultura, essa parte tão interessante e tão bela
da ciência de agricultar, tem em Mafra um terrível inimigo — o noroeste. Este
vento sopra aí com violência extraordinária. Alguma árvore silvestre, que vivia
solitária no meio daqueles matos rasteiros, vergada para sueste na altura das
arrancas, estende raquítica os seus ramos açoutados pelas ventanias quase
paralelos com a terra. Estabeleceu-se porém um sistema de abrigos, que deve
dentro de alguns anos tornar não só possível, mas até fácil, a propagação de
árvores de floresta e de fruto. Os pinheirinhos bravos (pinus maritima)
cobrem já os cabeços escalvados que se alevantam por meio das chapadas,
encostas, e vales, e os castanheiros, carvalhos, e azinheiros bordam os
caminhos: estes bosques, quando crescidos, anularão em grande parte a violência
dos ventos, e então será possível o plantio de outras árvores silvestres e frutíferas,
principalmente das oliveiras, de que já se vão preparando extensos e bem
ordenados viveiros.
Uma consideração que ocorre naturalmente ao imaginar
semelhante extensão de cultura, é a dos adubos, e a do modo de os fazer progressivamente
aumentar. Acerca deste ponto capitalíssimo, daremos brevemente curiosas e
interessantes notícias, em um artigo especial. Então teremos ocasião de falar
dos diferentes métodos de amanhar as terras, que progressivamente se vão
introduzindo na granja de Mafra.
Os instrumentos aratórios e mais máquinas do serviço
agrícola são construídos no mesmo estabelecimento em oficina para isso
principalmente deputada. Aí se encontra a charrua inglesa, a araveça grande de
uma aiveca, a pequena de duas, o semeador, as grades triangulares e de diversos
feitios, o trilho de debulhar, o engenho de traçar cevada, carros ingleses,
etc., além dos instrumentos próprios do país construídos com perfeição.
Tal é o rápido quadro da transformação que apresenta
uma parte desses maninhos inúteis da tapada de Mafra. Importante em si,
semelhante transformação muito mais o tem sido pela influência que o exemplo
produz naqueles arredores: o agricultor, que por assim dizer palpa as vantagens
que resultam de um sistema ilustrado de agricultar, vai abandonando as suas
grosseiras usanças, que todos os discursos dos livros não alcançariam extirpar.
Mafra está sendo um foco de luz, uma fonte de progresso agrícola. Entre os
benefícios que tem produzido este é porventura o maior. Aquela vasta granja, se
proporciona a muitos abastança, o alimento para o corpo, oferece a muitos mais
as revelações da ciência — o alimento para o espírito.
O edifício aí está mendigo, abandonado, canceroso já,
e inútil, ao lado da granja cheia de viço, rica, generosa, e abençoada de
esperanças. São dois monumentos de dois séculos diversos, ambos obras de Reis.
Que a filosofia julgue um e outro, e julgue também as vontades e as
inteligências que fizeram surgir um e outro.
---
ALEXANDRE HERCULANO
Escrito em 1843, e publicado
em: Opúsculos, 1909.
Pesquisa e adequação
ortográfica: Iba Mendes (2019).
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