Dormindo
estava sonhando
El- Rei
passou ontem ligeiramente incomodado.
(Dos jornais).
O
médico tinha-lhe recomendado que não dormisse sobre as comidas, por causa das congestões,
tanto mais que ele era um gros mangeur — o primeiro garfo do reino, como
diziam os seus familiares, num espírito baixo de lisonja. Mas naquele dia
erguera- se da mesa mais bêbedo de sono que de vinho» numa quebreira de velho
abade em dia quente, pela hora da sesta, as pernas negando-se a sustentar-lhe o
corpo, e os olhos fechando-se-lhe com uma força de molas novas, como se não
pudesse suportar a luz- De modo que, instintivamente, quase sem consciência do
que fazia, dirigiu-se para o quarto da cama, e daí a pouco roncava como um
santo ou como um porco — Nosso Senhor nos perdoe.
E
sonhou.
Andava
no campo, atirando aos pássaros, para entreter, quando de repente lhe chega aos
ouvidos uma algazarra medonha, vozes de gente irada que pragueja e ameaça,
prestes a envolver-se numa luta corpo a corpo.
O
que seria aquilo?
Foi-se
aproximando, aproximando, cheio de curiosidade, avançando ao abrigo das arvores
e das estevas, para que o não vissem, para que não dessem por ele. Já muito
perto, encostado ao tronco de uma sobreira velha, pôs o ouvido à escuta, quase suspendendo
a respiração, para ouvir melhor.
Foi
como se lhe caísse um raio aos pés!
Era
dele que se tratava, numa linguagem absolutamente irrespeitosa, fazendo-lhe as
acusações mais graves, atribuindo-lhe responsabilidades de um grande criminoso,
que fosse ao mesmo tempo um grande cobarde. Nos vultos mal reconhecia as
pessoas, mas quis lhe parecer que muitos daqueles indivíduos já ele vira
curvados na sua frente, beijando-lhe a mão com humildades de lacaio, procurando
adivinhar-lhe os pensamentos e as vontades, sacrificando tudo aos seus
caprichos, esmolando os seus favores e as suas graças. E todas pareciam
apostadas contra ele; pelo menos nem uma só tomava a sua defesa, nenhum peito
se oferecia, generoso e decidido, aos golpes que lhe atiravam. Mas então...
Era
todo um povo que assistia àquele cascalhar de injúrias, e como uma palavra mais
viva saltasse de uma boca mais indignada, da multidão irromperam gritos de
morte, e logo se ergueram braços ameaçadores, dispostos às violências máximas.
Foi quando uma voz gritou:
—
Lá está o gajo!
E
todos os olhos caíram sobre ele, dardejando cóleras; todas as mãos se
estenderam para ele, em crispações de raiva. E nem um só daqueles indivíduos
que outrora, em tempos áureos, ele vira curvados na sua frente, beijando-lhe a
mão com humildades de serviçal, ansiosos por adivinhar-lhe os pensamentos, sacrificando
tudo aos seus caprichos, esmolando os seus favores e graças, nem um só desses
homens tomou a sua defesa, oferecendo o peito generoso aos golpes que lhe
atiravam. Desatou a fugir, numa carreira doida, galgando cerros e vales, como
se tivesse asas nos pés. Entraram as pernas a fraquejar-lhe negando-se a ir
mais para diante, e já lhe parecia sentir a respiração ansiosa da multidão que
o perseguia, soltando gritos de morte.
Sem
saber como, encontra-se no meio de um pequeno grupo, meia dúzia de homens que
falavam de justiça, de direito, de liberdade. Julgou-se irremediavelmente
perdido, assim colocado entre dois fogos. Mas a multidão estacou, na presença daqueles
homens — como um vagalhão enorme que o mar arrojasse à praia e se quedasse, imóvel,
antes de tocar na areia.
—
Eu sou... aquela gente...
Muito
perto d ali, alguns passos, estava uma gare de caminho de ferro. Justamente naquele
momento, chegava um comboio rápido, que devia atravessar a fronteira. Aqueles
homens serenos que falavam de justiça, de direito, de liberdade, ajudaram-no a
meter-se numa carruagem, dizendo-lhe boas palavras, prodigalizando-lhe atenções
e delicadezas. Ouve-se o sinal de partida.
—
Mas então a minha mulher, os meus filhos, toda a minha família?...
—
Vá descansado, que não lhes acontece mal nenhum; lá irão ter.
Quando
o comboio parou, ao cabo de umas poucas de horas, deitou a cabeça fora da portinhola,
e perguntou a um empregado:
—
Isto aqui o que é?
—
É o Exílio.
Neste
momento acordou.
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Pesquisa, transcrição e adaptação ortográfica: Iba Mendes (2019)
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