Divina
Meu irmão e eu somos estudantes
de Engenharia. Chamo-me Pedro, ele se chama Paulo. Gostamos muito de dançar.
Isto depois de termos frequentado uma Escola de Dança que nos custava 60 mil
por mês, o que representava um desfalque enorme na mesada. Fomos, outro dia, a
um baile no Trianon, em benefício não sei de que casa de caridade, para
recolhimento de crianças pobres. Paulo valsou com uma moça bonita que lhe
deitou uns olhos compridos. Foi quanto bastou para entabularem um namoro que,
por desequilibrado, não me pareceu gracioso. Passaram assim até à madrugada.
Ao nos retirarmos Paulo me disse
que era ela filha duma das famílias mais distintas da Pauliceia. Chamava-se
Mariana e morava não sei em que palacete da Alameda Barão de Limeira.
Pobre rapaz! Queria por força ir
visitá-la, conforme ela o havia convidado. Acabou pedindo-me que o
acompanhasse: — Sem ti não vou, disse-me. Acedi. Quando deixamos o palacete da
Bela procurei dissuadi-lo.
— Olha, não sejas tolo. A moça é
formosa, é rica, é de boa família, é tudo quanto quiseres, mas não será nunca
tua esposa.
— Isso dizes tu... e quais são as
razões para tal afirmares?
— Eu? motivos?... Ora bolas! eu
sei.
— Sabes como?
— Escuta, quero ser franco: tua
pretensa namorada é para contigo duma indiferença quase desdenhosa...
— Desdenhosa?
— Desdenhosa. Não lhe viste aquele
modo de perguntar: — Sim?... É?... É, é?... — a tudo quanto lhe dizias?
— Qual! histórias! Vá saindo! São
elegâncias que não compreendes. A própria indiferença é o encanto das mulheres.
— Bom, se é assim, faze o que
entenderes.
Aquela sua ideia a respeito da
indiferença das mulheres lisonjeou tanto a sua vaidade de poeta (porque é um
poeta) que, ao outro dia, veio me trazer um soneto que terminava por este verso:
Indiferente, má, quase divina.
***
Não digo mais nada; um mês depois
da primeira visita, Paulo era noivo da senhorita Mariana. Fiquei boquiaberto,
mas, nem por isso, duvidando menos. Pudera não! Se a família havia pedido prazo
até ao dia da formatura!
***
O contrato que acabo de narrar se
deu há uns dois meses mais ou menos. Ontem assisti ao casamento do meu irmão.
Não houve outra assistência além da minha. Fizemos a coisa às escondidas.
— Como assim? perguntará o leitor
— pois a noiva não tinha pedido um prazo enorme?
De fato; mas é que ele não se
casou com a noiva. Casou-se com uma pequena italiana, costureirinha corriqueira.
Paulo tinha o mau costume (por,
mim várias vezes repreendido) de ir estudar no Largo do Arouche porque o nosso
quarto é um tanto escuro. Ora, aconteceu que a italianinha passava por ali
todos os dias, e eles se entreolhavam mutuamente. E, como o Diabo escreve torto
por linhas direitas... o resto o leitor já sabe. Também o pai dela veio a saber
e quis que a policia também o soubesse. Esta forçou meu irmão ao casamento. Uma
desgraça! Fiquei desconsolado.
— Mas Paulo, — disse a meu irmão
— que fizeste? Deitaste a perder a tua honra, a honra da nossa família, todo o
teu futuro...
Como, porém, ele começasse a chorar
como uma criança, de tal maneira que fazia dó, tive pena dele. Consolei-o:
— Mas afinal... agora... que
diabo!
***
Hoje estava eu fingindo esperar o
bonde no Largo dos Guaianazes, quando me encontrou um colega de pensão.
— Estavas esperando o bonde?
— Não. Estava te esperando a ti
para prosarmos.
Não tínhamos prosa. Passou por
nós uma rapariga.
— Divina, pois não? — fez-me ele.
— Deixa disso! — respondi com uma
ideia fixa. Só houve na terra uma mulher divina.
— Qual terá sido, Deus de
bondade!
— Foi a noiva de meu irmão no momento
em que soube do casamento dele.
— Estás maluco?
—
De fato, aquela indiferença foi divina.
Uma divina indiferença. Não riu,
não sorriu não chorou, não caiu desmaiada, não sentiu a menor emoção; disse
apenas: — Esses estudantes são uns infelizes; qualquer italianinha os perde Divina,
pois não achas?
São Paulo 1921.
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Pesquisa, transcrição e
adaptação ortográfica: Iba Mendes (2019)
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