Di
Cavalcanti, o bruxo do Lápis
— Quem é Di Cavalvanti? Perguntará
timidamente o homem que vive enfronhado em altas cogitações de câmbio, burguês
que tem um sardanapalesco palacete na Avenida Paulista, o pintor copista sem
imaginação e ignobilmente falho de originalidade, e por fim, “piscando os
olhos”, o literato feito à última hora que possui ótimas qualidades de leitor,
e um terrível pensamento de artista, que leva a preciosa existência a cultivar
lugares comuns e repetir clichês estéticos. Esse também perguntará estupefato —
quem será esse moço que desenha umas coisas malucas? E todos traduzem assim
aquilo que não sabem explicar, porque em se tratando de Arte ainda não se
desvencilharam do obsoletismo cariado dos clássicos moldes de 1830!
O exaspero continua, insistente,
agressivo, que é um misto de menoscabo e admiração. E um cochicheo furtivo,
medroso, repercute pelos frios corredores dos cenáculos, onde a cada minuto se
profere uma profissão de fé literária, e se eleva à categoria de ídolo fundido
no bronze da mediocridade, o literatelho mais garboso da roda! A celeuma
turbilhona: vozes baritonadas em todos os diapasões, emitem uns farrapos de
ideia, num pugilato de palavras, com muito sarcasmo doblez que dizem ser fina
ironia. E o Di, que é a criatura de ademanes mais comedidos e voz velada que se
tem notícia, passa silenciosamente por entre a procissão dos leigos como um
luciferário, agitando a lanterna mágica do seu temperamento, que projeta
bistras de luz de todas as cores e aparições de todos os feitios aos lábios
proferidos pelos que estão fora da sua estesia; ouve o insulto sonoro de esquisito, mórbido, incompreensível, como se esses maravilhosos adjetivos não
fossem extraordinariamente belos para qualificar um artista da sua envergadura
— filho ultra legítimo do nosso século nevrótico! A corte dos “simuladores de
talento”, e a caravana dos pseudos estetas, afetando conhecimentos e alardeando
uma erudição imprecisa que não resiste a nenhuma análise, citam nomes de
artistas da mesma escola, para justificar uma afinidade que talvez haja entre o
nosso artista e outro de além mar.
Citam, bem entendido, para disfarçar
diplomaticamente uma deplorável ignorância. Mas Di que é um desses artistas que
se pode deixar só, não se entibia nem se entristece, obedece unicamente à
exigência da sua visão, estribado audaciosamente no postulado estético traçado
pelo seu cérebro criador. Ele tem a consoladora certeza de estar só, isto é,
acompanhado somente dos que pensam como ele, dos que trilham, livres,
independentes, os caminhos da Beleza, os que vão entregues a si mesmos — a legião
dos que caminham sós! Está só, dentro da sua fé. Do seu talento fez uma lança o
do seu entusiasmo um elmo, é um forte, as bocas malsinadoras não o atingirão.
Triunfará! Como todo artista de
emoções requintadas, Di Cavalcanti não observa: sente. Ele não diz: sugere. Há
um transcendentalismo sutil no fundo de todos os seus motivos, que escapa à percepção material dos olhos e somente com os
sentidos quintessenciados da alma é que conseguimos surpreendê-lo.
A vida para ele não tem gestos
físicos, só tem atitudes físicas.
As suas emoções que não se repetem,
são externadas por um tal poder de síntese, que percebemos duplamente tudo
quanto ele deixou de dizer. Possui o segredo de materializar o imaterial,
revelar o irrevelável.
Os seus múltiplos estados de alma não
lhe provocam confusão nem deslizes. Evoca o esteticismo de Oscar Wilde, o tédio
agitado de Verlaine, a melancolia lírica de Rodenbach, o misticismo de Novalis
e Maeterlink, com a mesma precisão que evoca a volúpia de D’Annuzio, a morbidez
de Baudelaire e o satanismo de Barbey d’Orevely.
A princesa Maleine de Maeterlink, diáfana, imponderável como a sonhou o
escritor belga, é o estudo flagrante de uma alma silenciosa que se move
dolentemente, irradiando em tudo a aura da sua bondade e da sua ternura,
envolto no perfume mavioso que se exala do seu mistério interior. O seu corpo
esfumado, intangível, como se fosse uma sombra projetada num halo de neblina, é
uma presença longínqua, onde vemos pairar meiguiceiramente o hálito esquivo de
uma alma abandonada, que se prepara no presente com muita força espiritual para
uma grande renúncia futura.
Votre
âme es um paysage,
inspirado em Verlaine, é um escorso feito com muita felicidade, onde ressumbra todo o paroxismo erodente da alma
cheia de lusco-fusco que foi a do maravilhoso poeta simbolista. É uma visão de
delírio tremens, de pesadelo, que nos provoca um calafrio dormente como se a
alma agitada do poeta pairasse ali diluída, de mistura com ópio.
No Le
jardin sous la pluieu de legendária filha de Herodíade, que depois de pedir
a de Yokanaan, tem feito perder a cabeça a muito literato ávido de exotismo.
A arte de Di Cavalcanti bem se
assemelha ao sortilégio demoníaco das Pitonisas e dos Magos.
Se estes desvendam o destino aziago ou
feliz das criaturas, ele, o bruxo do lápis, surpreende e translada para a tela
todas as ânsias sopitadas e todos os segredos indizíveis das almas.
Revista "A Cigarra", fevereiro de 1919.
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Fonte:
Rafael Rodrigo Ferreira: "O 'literato ambulante': antologia e estudo da obra de Sylvio Floreal - 1918-1928" (Tese). Universidade de São Paulo - USP. São Paulo, 2018.
Fonte:
Rafael Rodrigo Ferreira: "O 'literato ambulante': antologia e estudo da obra de Sylvio Floreal - 1918-1928" (Tese). Universidade de São Paulo - USP. São Paulo, 2018.
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