Eram
quatro horas da tarde no relógio da Navegação. Estava eu à espera da lancha de
Salcete que, na falta da outras me levaria a Piligão. E o calor abrasador desse
dia de fim de Maio, passado em Pangim, deixara-me extenuado.
Na
Navegação Fluvial, os passageiros impacientavam-se. Iam até ao extremo do cais,
alongavam a vista para as bandas de Ribandar, e discutiam se seria ou não a
lancha de Salsete um ponto escuro que se avistava,
Para
sacudir a modorra que me ia entorpecendo os membros, levantei-me do banco onde
estava e fui, por minha vez, até ao cais.
– Temos
de esperar ainda uns bem puxados três quartos de hora, – disse-me o Esteves,
que também estava à espera da lancha paro seguir para Ribandar.
Cumprimentei-o.
Conhecia-o por o encontrar muitas vezes na lancha, nas minhas raras visitas à
capital. Era funcionário público e frequentava a repartição, vindo todos os
dias da sua casa de Ribandar, aproveitando a carreira de Piligão.
Mas
nesse dia o Esteves não estava só. Acompanhava-o uma senhora de porte distinto,
olhar inteligente, elegantemente vestida, com uma toilette cor de jambolão, resplandecente na sua beleza de mulher de
trinta anos.
– Não
conhece? – acudiu o Esteves. É minha mulher. E voltando-se para ela, concluiu a
apresentação:
– O Sr.
J da S. C.
Fiz-lhe
um amável e cerimonioso cumprimento. Ela, porém, franziu o sobrolho e, com um
manifesto ar de animadversão, perguntou-me:
– É o
Sr. quem escreve os tais Contos Regionais
para O Heraldo?
Fiquei
atrapalhadíssimo. Certamente alguma das minhas críticas a tinham incomodado ou
então qualquer das situações ridículas, inventadas por mim, tinha atingido
alguém das suas relações.
Achei-me
metido numa camisa de onze varas e quis mentir, dizer-lhe que não era eu o
autor das tais histórias... Mas não havia maneira. Lá estava o marido a rir
para mim com a boca escancarada, como dizendo “Faz o senhor muito bem”.
Para me
ver livre da entalação, fui franco:
–
Parece-me que vossa excelência não gosta dos meus contos, – disse-lhe, com sincera contrição.
Então a
linda senhora teve pena de mim. O semblante, mudando de parecer a meu respeito,
tornou-se mais amável. Depois, ofereceu-me um lugar no banco ao seu lado,
desembaraçou-se do marido, mandando-o comprar não sei que coisas, e fez-me as
suas confidências.
***
Na
verdade, os meus contos não lhe desagradavam. O que, porém, a desgostava era
parecerem-se sempre com pessoas das suas relações os tipos que eu punha em
foco. Notava também que os defeitos que nessas pessoas passavam despercebidos,
salientavam-se – depois de ridicularizados nas personagens dos contos – de tal
forma que as tornavam insuportáveis de petulância, vaidade e parvoíce.
Respondi-lhe
que os meus contos não tinham outro fim que não fosse o de apontar defeitos a
serem corrigidos.
– De
acordo, – tornou a linda senhora, batendo-me amigavelmente no ombro. – Mas há
defeitos crônicos, hereditários, incuráveis. Sou amiga de uma senhora cujo
marido tem defeitos assim. Essa boa rapariga é muito sugestionável. Quando o
Sr. retrata um tipo sabujo, ela começa logo a ver no marido todas as formas de
um molosso: grandes caninos a saírem-lhe pela boca fora, a língua pendente, uma
cauda a mexer da direita para a esquerda, e até a voz do pobre homem lhe parece
um latir cantante de sabujice e servilismo. Quando o senhor mete em cena um
tipo asnático a escoucear disparates, lá vê ela no marido crescerem as orelhas,
o focinho alongar-se, a voz zurrante, e até tem medo de se aproximar dele, com
receio de um par de pinotes. Evidentemente, a pobre rapariga, sugestionada
pelos seus contos, perde o sentimento das proporções. Confunde os defeitos
morais com os físicos, e, na sua imaginação, aqueles lhe aparecem de uma forma
tão aterradora! Ora não seja mau! Evite, de futuro, descrever tipos com
defeitos do marido dessa minha amiga.
– Pois
então, diga-me que defeitos ele tem, – inquiri, resolvisdíssimo a fazer-lhe a
vontade.
– É
mentiroso, fanfarrão, intrujão, pedante, petulante, ignorante, intrigante, meliante,
– enumerou, contando-os pelos seus lindíssimos dedos.
– Basta,
basta, – interrompi, tomado de susto. – Desisto de escrever, para o futuro,
mais contos regionais.
***
Decididamente.
A lancha pregara-nos partida. Encalhara em Combarjua. O ponto escuro que se
avistava pelas bandas de Ribandar, tinha-se sumido. Não era a lancha de
Salcete.
E o
Esteves sem aparecer! E a pobre senhora à espera da lancha e do marido!
Então
não tive remédio senão passar uma noite em Pangim, aturar os mosquitos, o calor
de fornalha e o arreliante matraquear dos caminhões da “Comissão”.
Como não
podia abandonar a linda dama à sua triste situação, chamei um carro, metemo-nos
nele, e mandamos bater para a loja do Potiot, onde o Esteves fora comprar
rendas.
E mal o
carro dera volta ao Palácio, ouvimos um berro e reconhecemos a voz do Esteves.
Mandamos,
imediatamente, parar o carro e desci à procura do homem. Encontrei-o no Parrongo, a beber vinho branco abafado,
em companhia
de dois
conselheiros.
Quando
lá entrei, um deles, razoavelmente bêbado, arrotava a independência das suas
opiniões; o outro convidava-me a beber também.
Fui
pouco delicado. Respondi, desabridamente, que não tinha tempo e que ia levar o
Esteves à mulher que o esperava. E, segurando o homem por um braço, levei-o
para fora até o carro e entreguei-o à sua cara metade.
Quando
me ia embora, despedindo-me do marido e da mulher, esta pediu-me um favor.
– Diga o
que é, – gritei-lhe, com muito boa vontade de lho fazer.
– É que,
– respondeu, – queria que o senhor escrevesse um conto e lá metesse um
conselheiro bêbado.
– Um conselheiro
bêbado?! – exclamei, admirado. – Um conselheiro bêbado mete-se mas no xelindró.
– Se os
metessem a todos, seríamos muito felizes, – comentou o amável Parrongo, que viera até o carro,
conduzindo o Esteves, que cambaleava...
Na República dos
Brutos
Tenho um
criadito de mesa que é muito inteligente e grande inventor de fábulas. Nos
vagares, aprende a ler e tem feito progressos.
Pedru é
o seu nome, já lê a Bíblia da Infância
e, quando chegou à história do Noé, da sua arca e dos brutos lá enjaulados,
Pedru, que é muito amigo dos animais, entusiasmou-se e, desembaraçando a voz do
pigarro que lhe embargava a garganta, contou-me a seguinte fábula:
***
Terminado
o dilúvio, separadas as águas superiores das inferiores, o avô
Noé
despejou a sua arca e, reunindo os animais à sua roda, falou-lhes assim:
– A paz
de Deus seja convosco. Graças ao Altíssimo, estamos em seco. Agora, como é
preciso trabalhar para viver, vamos fundar uma república e dividir as funções
do Estado por cada um dos seus membros, homens e animais. Escolha cada qual o
emprego para que tiver mais jeito e venham amanhã, cada um por sua vez,
mostrar-me as suas aptidões.
Dito
isto, o avô Noé retirou-se e foi tomar uma grande carraspana de sumo de uvas de
uma parreira que acabara de descobrir na ladeira do monte Ahrat, onde a arca
estava encalhada.
***
Na manhã
do dia imediato, mal Noé acabara de despertar desmoendo a camoeca que apanhara
na véspera, apareceu-lhe o javali e, exibindo as suas terríveis presas, disse
que queria ser comerciante.
– Não me
parece que terás jeito para isso, – disse-lhe Noé, franzindo os lábios. – É
preciso que me prestes provas públicas, na falta de documentos que não tens.
Retirou-se
o javali e, horas depois, tornando com uma grande cabaça de vinho verde,
ofereceu-a ao velho em troca de licença para comerciar. Noé, que já gostava de
vinho, provou-o e, dando um estalido com a língua, aprovou:
– Bela
pinga! Está deferido o teu requerimento.
E fez do
javali comerciante. Mas, horas depois, teve uma cólica terrível, seguida duma
disenteria. Aflito, supondo que fora envenenado pelo javali, mandou-o chamar e
perguntou-lhe como fabricara o vinho que lhe dera.
– Da
maneira mais inocente do mundo, – respondeu-lhe o javali – adicionei ao bagaço
que estava no lagar, as parras que pude arrancar à videira e espremi tudo na
cabaça. Tu descobriste o vinho para beber, eu inventei a zurrapa para vender.
– Grande
maroto! – berrou Noé. – Não te posso tirar a licença concedida, mas, em castigo
da tua falta de lisura no negócio, ficarás sendo, de ora em diante, porco.
E assim
nasceram os primeiros comerciantes porcos.
***
Durante
o tempo em que Noé esteve doente, surgiram várias questões entre os animais e, por
isso, logo que se viu livre da disenteria, resolveu criar o ofício de advogado
e mandou afixar editais, anunciando exames a ver se apareciam candidatos.
Compareceu
um camelo e, fazendo gingar, nas suas enormes pernas, as suas duas corcovas e o
seu comprido pescoço, fez uma respeitosa mesura ao velho examinador e começou a
discursar:
–
Ilustre e respeitável borrachão, não te assustes com a minha estupidez e com a
minha ridícula figura. Bem sei que para se ser advogado é preciso ter muita
ciência e manha, mas está escrito no grande livro do destino “dos advogados
serão borrachos os que tiverem ciência e manha; e os que o não forem, serão
estúpidos e ridículos...”. Eu não tenho ciência nem manha, mas, em compensação,
passo oito dias sem beber. Mereço bem o diploma de advogado.
– Está
bem! – replicou-lhe o velho. – Fica deferida a tua pretensão, mas terás carta
para Timor. Os camelos que cá tenho
chegam e sobram.
***
Para
evitar questões e demandas entre os animais e a consequente exibição da
estupidez do advogado camelo, decidiu-se Noé a educar o público dos seus brutos
e, para isso, quis fundar um jornal, procurando, desde logo, um jornalista para
o redigir.
Pretendeu
o lugar um papagaio e, para provar as suas aptidões, começou a falar em
assuntos tão desencontrados, manifestando opiniões tão disparatadas, que o
velho Noé, aborrecido, para o fazer calar, deu-lhe o lugar de redator e
encarregou-o da seção da administração pública.
Mal
tinha acabado de se ver livre do papagaio quando, abanando as orelhas, surgiu o
burro e deitou o seu requerimento.
Queria
ser conselheiro do governo da república dos animais e ditar leis.
– Não
pode ser! berrou Noé, iracundo e fero. – Já estou farto de encher de
incompetentes e de malandrins as funções públicas. Era o que agora faltava, um
burro feito conselheiro.
—
Hi-ham, hi-ham, hi-ham, ham, ham, ham!!! – zurrou o burro, atroando os ares e
fazendo tal alarido que o velho Noé, aflito, fechando os ouvidos com as palmas
das mãos, gritou-lhe:
— Está
bem! Está bem! Ficas eleito conselheiro, mas agora cala-te pelo amor de Deus,
cala-te. Poderás depois zurrar à vontade no Conselho do Governo! – E ia fugir
em direção à arca quando um enorme gorila, alto, forte e espadaúdo, de
fenomenais patas e enormes queixadas salientes, embargou-lhe o passo e, com um salam tipicamente oriental, pediu-lhe,
insistentemente, que o fizesse negociante,
jornalista, advogado e conselheiro ao mesmo tempo.
O velho
Noé olhou-o embasbacado e, admirado da sua petulância e do seu atrevimento,
perguntou-lhe em ar de chacota:
– Pois
bem! Vamos lá ver o que tu sabes fazer!
– Sei
tudo! respondeu-lhe o gorila com grandes ares de bazófia e de impertinência. –
Não há nada neste mundo que eu não saiba. Nasci sábio e hei-de espantar o mundo
dos animais com a minha ciência, com o meu saber! Sou o mais inteligente da
família dos brutos!
Ao que
Noé retorquiu-lhe, condescendente:
– Grande
bruto, das costas era preciso tirar-te a pele. Mas como já fiz comerciante ao
porco, jornalista ao papagaio, advogado ao camelo o conselheiro ao burro, que
são tão incompetentes e pedantes com tu, ficas sendo, de hoje em diante, tudo o
que quiseres...
***
Achei
muita graça ao Pedru e à sua fábula e, como prêmio à sua fértil imaginação,
dei-lhe a ponta do charuto que estava fumando e creio que ficou bem pago.
Perguntar-me-ão
o porquê:
– Bem
paga com a ponta dum charuto uma fábula tão engraçada?! que, por estes tempos,
certos comerciantes, jornalistas, advogados e conselheiros, não valem a ponta
dum charuto...
As duas paixões do Bonifácio Monserrate
Nunca,
em época de exames do Liceu e da instrução primária, correram tantas cartas de
recomendação, nem para o provimento de um emprego público se moveram tantas
influências, quantas foram precisas para o Bonifácio Monserrate ser nomeado
vogal da comissão arqueológica.
A
arqueologia era uma das suas paixões, porque o colocava – supunha ele – ao
nível dos intelectuais da terra.
Tendo
completado os seus estudos do curso do Liceu, Bonifácio Monserrate pensara em
ir para Coimbra cursar o Direito e ingressar na magistratura colonial, mas,
sendo filho único, seus pais opuseram-se à sua partida para a metrópole,
alegando o risco, que o jovem estudante corria, de perder lá a sua fé
religiosa, que na família era tradicional, e lembrando-lhe que a casa dos
Monserrates tinha dado ao catolicismo, em três gerações seguidas, uma dúzia de
padres.
Agora,
resignado a ser simples advogado provisionário, o Bonifácio Monserrate, de cada
vez que o Dr. Noronha publicava um livro, dizia, batendo na testa:
– Se não
fora aquela caturrice dos velhos em não me mandarem para Coimbra, estaria hoje
feito magistrado e teria escrito todos aqueles livros.
Nomeado
vogal da comissão de arqueologia, o Bonifácio Monserrate – que não podia lançar
um olhar introspectivo nem ver o que tinha na sua caixa craniana – pensou em
escrever um livro e começou a estudar todos os velhos e poeirentos registros de
nascimentos e óbitos, que jaziam arrumados nas estantes da paroquial, para ver
se reconstituía a história dos doze padres que sua casa dera ao catolicismo.
Depois
começou as suas pesquisas no escuro e bafiento malló da casa. Revistou os velhos armários, os antigos baús de tampa partida, os boiões de louça
de Macau, e, estando a perscrutar certas cantos e recantos, deu um berro de
triunfo: abaixo da tábua de uma velhíssima e inservível caixa de retrette descobrira, embrulhado nuns
trapos, um par de chinelas de seda carmesim.
Entusiasmadíssimo
com o achado, o Bonifácio pegou, com infinito cuidado e grande solicitude, nas
velhas chinelas, apalpou-as, cheirou-as, beijou-as, e, trazendo-as para o seu
gabinete de trabalho, começou as suas investigações arqueológicas, fazendo
profundas conjecturas sobre a sua descoberta e dizendo com os seus botões:
– A seda
carmesim só é apanágio dos prelados domésticos e camareiros secretos de Sua
Santidade. As chinelas daquele estofo só podiam ser de qualquer
dos tais
doze padres de sua casa; logo, qualquer dos tais doze padres fora prelado
doméstico ou camareiro secreto da Sua Santidade. Mas, qual deles? O caso, a
averiguar, era bem bicudo.
Subitamente,
lembrou-se de uma tia velha e rabugenta, que vivia paralítica há mais de dez
anos, e o Bonifácio Monserrate, radiante, com as chinelas nas mãos, correu ao
quarto da velha, a informar-se.
A velha
estava a dormitar – talvez a recordar em sonhos os seus belos tempos da
mocidade, em que, linda e airosa, no seu antigo traje de taropa e baju, ia missa
fazendo a admiração dos rapazes do seu tempo – quando o Bonifácio irrompeu pelo
quarto dentro, ofegante, radiante, triunfante, e, apresentando-lhe as chinelas,
perguntou-lhe se as conhecia.
Então, o
rosto da velha iluminou-se de uma celestial alegria, e, com um choro de
contentamento, agradecendo aos céus em altos brados o achado, arrebatou as chinelas,
que apertou, comovidamente, ao peito, e explicou:
– Sim,
aquelas chinelas conhecia-as ela: tinham sido furtadas por uma criada há muitos
anos, e debalde as tinha procurado por toda a parte. Eram suas e faziam parte
do seu antigo traje de taropa e baju com que contava ser enterrada. Sim,
era Deus quem lhas mandara, porque a morte estava próxima.
Como por encanto, dissipou-se a alegria e o entusiasmo triunfante do Bonifácio Monserrate, que, despeitado, furiosíssimo com a velha, lhe gritou de punhos cerrados:
– Ó tia!
Que imprudência! Que desleixo! Deixar ao alcance dos criados umas chinelas de
seda carmesim! Isso podia dar lugar a uma confusão
histórica!!!
***
A outra
paixão do Bonifácio eram os bacharéis pela Universidade de Coimbra – não os
indianos formados na metrópole; por estes nutria uma secreta inveja, e
tinha-lhes raiva – mas os bacharéis europeus. E, ampliando a sua paixão,
começou a adorar todos os europeus civis, porque aos militares, embora oficiais
de engenharia, taxara-os de tarimbeiros e não lhes ligara importância; e, não
passava europeu algum à paisana, conhecido ou desconhecido, sem que o Bonifácio
Monserrate o cumprimentasse logo, com rasgadas barretadas, e procurasse por
todos os meios aproximar-se dele e ser-lhe agradável.
Ora,
sucedeu que Cipriano Cantina, soldado de infantaria europeia, que estava em
diligência nas Obras Públicas, andasse à paisana enquanto olhava pelos concertos da estrada que se estavam fazendo na aldeia
do Bonifácio. Este, apesar de o Cantina estar muito queimado pelo sol e mais
escuro que um cantoneiro, conheceu pela fala que era europeu e, supondo-o
civil, imaginou-o logo engenheiro. Daí a jazê-lo bacharel em Matemática não ia
um passo, e logo o Bonifácio começou a fazer rasgados cumprimentos ao passar e repassar
pelo Cipriano Cantina, que este ficou muito admirado de uma tão subida
consideração por parte de um ilustre
advogado.
***
Numa
noite, havia uma soirée de casamento
em casa de um alfaiate da aldeia onde o Cipriano Cantina estava em serviço, e,
como o rapaz já lá tinha feito conhecimento, foi para aí convidado.
Cipriano
Cantina tinha um namoro com a filha do taberneiro, que devia ir para a soirée e com quem prometera dançar uma
polca espanhola – única dança que conseguira aprender na sua terra – e não
querendo faltar à sua promessa, nem perder uma tão boa ocasião de se divertir
numa terra onde não havia arraiais e ‘Noite de S. João’, começou a andar pelas
casas de todos os amigos e conhecidos a ver se conseguia alugar uma casaca; mas
trabalho baldado: todas as casacas estavam tomadas para a soirée do alfaiate, e o Cipriano Cantina, depois de muitas
diligências, só conseguiu arranjar umas calças pretas, um colete branco, uma
gravata branca e uma sobrecasaca velhíssima.
Assim
vestido, estava o Cipriano Cantina próximo à casa da reunião, no se atrevendo a entrar, consciente do seu ridículo
traje, e, mirando invejoso pela janela todos os cavalheiros elegantemente
postos nas suas casacas passadas a ferro quando reparou no Bonifácio Monserrate
que, por mera condescendência para com o seu alfaiate, fora à soirée de casamento e, lembrando-se dos
rasgados cumprimentos que o Monserrate lhe faria, aproveitando de um momento em
que o homem viera à janela, acenou-lhe com a mão.
O
Bonifácio Monserrate, sentindo que alguém o chamava, inclinou-se para ver
melhor, e, tendo-o reconhecido pelo reflexo da luz, que dava em cheio no rosto
do Cantina, correu pressuroso a oferecer-lhe os seus préstimos.
Então o
Cipriano Cantina, que não lhe sabia o nome, tratando-o por caro doutor, explicou-lhe que, tendo sido convidado para a sua reunião pelo mestre alfaiate, para não ser indelicado, queria entrar em casa,
cumprimentar os noivos e sair imediatamente e, como não tinha casaca, pedia ao caro doutor que lhe emprestasse a sua
somente por cinco minutos.
O
Bonifácio Monserrate que, vendo na meia escuridão o Cantina de sobrecasaca o
tomara por autentico bacharel em matemática, não se fez rogado, e prontamente,
despindo a casaca, entregou-a ao rapaz que, desembaraçando-se da sua velhíssima
sobrecasaca, envergou a casaca do Bonifácio e se enfiou pela casa dentro.
Passaram
os cinco minutos do prazo; passaram outros cinco, passou meia hora, passou uma
hora... e o Cipriano Cantina, muito entusiasmado com a sua namorada e com a casaca
do caro doutor, que lhe ajustava como
uma luva, não se lembrara de sair, Bonifácio Monserrate via-o pela janela aos
saltos, dançando desalmadamente polcas, valsas, calidónias, pulando num só pé de uma forma tão cômica, que, pela
primeira vez duvidou da autenticidade do bacharel em matemática e, como a noite
esfriava, envergou a sobrecasaca do Cipriano Cantina que até então trouxera,
respeitosamente, ao braço; mas, sentindo o cheiro a bafio e a coisas velhas a
que tresandava a velhíssima sobrecasaca, percebeu o logro em que caíra: nunca
uma pessoa que trazia uma sobrecasaca daquelas podia ser bacharel.
Mas não
havia remédio; e, pacientemente, esperou o fim da reunião, encostado a uma
palmeira.
Só às
cinco horas da madrugada é que o Cipriano cantina, saindo a suor da casa do
alfaiate, devolveu-lhe a casaca.
Foi
desde então, que a paixão do Bonifácio pelos bacharéis esfriou muito.
Hoje,
quando vê um europeu, não o cumprimenta logo, nem mesmo de longe, com uma
rasgada barretada: espera, prudentemente, que se aproxime, e depois de,
minuciosamente, o observar faz-lhe um vagaroso e respeitoso cumprimento.
Quanto à
sua paixão pela arqueologia, está na mesma: escreve asneiras sobre asneiras.
Ela é já nele moléstia grave e incurável, dando-lhe de há muito direito à
aposentação.
Veio cá passar as férias grandes, com seus pais, o pequeno Damodara, filho do meu vizinho Quensori. Damum é o nome da família e eu gosto de lhe chamar assim.
Esse
pequeno estava em Mormugão com um tio, estudou lá e passou sua instrução primária.
Fala o português, veste calção e blusa, usa chapéu de sol inglês, calça
sapatos, traz o cabelo penteadinho, e tem educação.
Damum
vem muito a minha casa. Quando entra dá os bons
dias; quando sai, sabe dizer adeus;
e quando deseja levar qualquer objeto cá de casa, pede e não se apodera dele,
sem que lhe seja dado.
Enquanto
estou a almoçar, o Damum senta-se numa cadeira e dá-me conversa.
– Como
se atreve o senhor a comer com o garfo? – perguntava-me ele, curioso. – não tem
medo que as suas pontas aguçadas lhe furem a língua?
E
explicava:
– Eu
como à mão. Acho isso mais simples e menos perigoso.
Contudo,
Damum, que é muito inteligente, aprecia os costumes ocidentais. Acha melhor
comer-se à mesa, coberta com uma toalha. Censura-me, porém, o luxo de ter... um guardanapo por cada pessoa.
***
Um dia,
Damum foi madrugador. Veio à minha casa, de manhã cedo, andou a procurar-me por
toda a parte, e foi dar comigo num dos mais retirados quartos da casa, sentado
sobre a respectiva caixa aberta, a fumar um pensativo
cigarro.
– Que
faz o senhor aqui, neste quarto afastado, numa atitude de abatimento, triste,
cabisbaixo? – perguntou-me, comovido.
Respondi-lhe
com uma das caretas características que certo esforço fisiológico provoca.
Então o
rapaz compreendeu e ficou escandalizadíssimo.
– Deixar
essas sujidades numa caixinha tão bem feita! – dizia ele desolado.
E tinha
razão. Ele costumava exercer essas funções vitais do nosso organismo fora de
casa, longe e muito longe – no quintal. Guardar aquilo, cuidadosamente, numa
caixa era disparate...
* * *
Sei dum
certo conselheiro, que quando vinha da província para a capital assistir às
sessões do Conselho, também achava disparate mandar lavar a única camisa que
trazia. Quando o criado do hotel lhe perguntava se devia chamar o lavandeiro
para tomar conta da camisa, que estava imunda, o manhoso respondia-lhe, com
muita filosofia:
– Para
quê? Se ela fica por baixo do colete e não se vê! Também tinha razão.
Uma
camisa suja é, muitas vezes, própria para cobrir uma consciência pouco limpa...
---
(José Francisco da Silva Coelho - Goa: 1889-1944)
(José Francisco da Silva Coelho - Goa: 1889-1944)
Texto-base:
Da tese de: João Figueiredo Alves da Cunha, sob o título: "Entre melindres e espertezas: personagens malandras, nos contos de Lima Barreto e José da Silva Coelho". Universidade de São Paulo - USP. São Paulo, 2016.
Da tese de: João Figueiredo Alves da Cunha, sob o título: "Entre melindres e espertezas: personagens malandras, nos contos de Lima Barreto e José da Silva Coelho". Universidade de São Paulo - USP. São Paulo, 2016.
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