Clara
(A Júlio
de Sousa)
Friorenta, encolhida no fundo do coupé, tudo era indeciso na figurinha que
passou rapidamente, na tarde a escurecer.
Nascia da penumbra, sem precisão nos contornos, como certos retratos de
Columbano e de Hener. E entre o chapéu preto e a face branca, o cabelo louro
punha uma esmaecida aureola como uma tênue poeira de âmbar. A boa, de renard
bleu, ainda aumentava o indeciso, o flutuante dessa mulher; os olhos claros
não brilhavam; o vermelho da boca desmaiava... Figurinha de cera e de seda, que
passava, olhando para a rua sem atentar talvez em ninguém, levando o nosso
desejo de decifrar enigmas, indiferente, graciosa, impressionou-me... Ao amigo
que me acompanhava recorri para saber dela. Quando me voltei para perguntar, vi
que Roberto se pusera pálido; parecia que à boca se lhe afivelara uma boqueira
de pedra, mascara trágica a emudecer.
Seguiu com os olhos a carruagem que trotava pela Avenida até se perder
entre as árvores em Vale de Pereiro.
— Quem é? gaguejou. Alguma aventureira cosmopolita que veio faire
le Portugal. Um pastel de Antônio de la Gandara, maquilada como uma infanta
de Velásquez, mais artificial que uma boneca de Nuremberg, sem vício, talvez,
amante enternecida de algum croupier de Cercle ordinário...
Sei lá!... encolheu, impaciente, os ombros, a concluir.
Houve um silêncio. Raras carruagens passavam. Estava triste a Avenida.
Descemos. Abriam, simultaneamente, as grandes flores geladas e luminosas das
lâmpadas elétricas. Rápidos, fulgiam os americanos. Outra vez a mulher passou,
mais indeciso o vulto, apenas distinto o palor da face branca no coupé escuro.
— Por que teria vindo cá, essa mulher? perguntou Roberto, colérico.
— Conhecê-la?
— Se a conheço?! Tenho querido arrancá-la de mim, como se arranca de um
boi uma farpa — violentamente. Tenho querido fugir de mim, para a esquecer! E
quando estou quase a consegui-lo, quando a tortura da sua lembrança é em mim
apenas uma cicatriz, ei-la que aparece a reavivar a chaga antiga, a torná-la
mais dolorosa! Clara veio aqui só por minha causa, ouves? Para fazer-me sofrer!0
Agarrava-se-me ao braço, a apertá-lo violentamente. Na boca
acentuava-se-lhe, áspero, o vinco da amargura.
— Foi esta mulher que me fez fugir de tudo, perder o amor a tudo,
desterrar-me para esta passividade, eu que amava a vida dolorosamente, gozando
com tudo, intensamente!
"Conhecia-a em Espanha! Num inverno úmido deixei Lisboa e acolhi-me
a Sevilha. Os dias gloriosos de sol que lá gozei pelas margens do Guadalquivir
azul! Andava ébrio de tanta luz que enchia de ouro e de triunfo a cidade
alegre. Saia para os campos, logo de manhã, a rir-me com os trigais e com as
flores. Ia ao parque ver o sol fulgir nas caudas abertas dos pavões orgulhosos;
descia ao cais para ver brilhar na água incendiada os cobres polidos dos
navios; enchiam-me de prazer a barulheira dos carregadores, o chiar áspero dos
guindastes, o estridulo das sereias, nos vapores que partiam... Tudo era
alegria na cidade maravilhosa mesmo à noite, as lâmpadas incendiavam a Sierpee brilhante,
onde se apertava uma multidão palradora. Das janelas dos cassinos, das portas
dos cafés, dos mostradores das lojas, vinham chapadas de luz. Misturava-me a
toda aquela vida insolente, ria com todos os risos, todos os lábios frescos me
chamavam, rodeavam-me todas as cabeleiras fartas, cheias de flores. O donaire
das andaluzas de olhar de volúpia fazia-me achar mais bela a Vida. Era
como um poema a enaltecer a obra de Deus. Por todos amar, não amava nenhuma.
Comprei o sineiro da Catedral. Do alto da Giralda, uma noite, possui a
cidade, senti que todo o tumulto confuso que até mim chegava, era o seu sangue
que pulsava por mim nas suas artérias; aquela resplandecência, brilho de joias
com que cobria a nudez. Os transvias iluminados, cortando em mil direções a
cidade, eram pedrarias, aqui se apagando uma, para além se acender outra,
conforme as ia eu tocando com os meus olhos amorosos. Ela, embaixo, abria os
seus braços, entregava todo o seu corpo, a morena Sevilha, ofegante e lasciva!
"Era feliz, poderosamente feliz. Sentia, em cada palpitação
cardíaca, o sangue remoçado que se espraiava pelo corpo. Foi então que conheci
Clara. Ela passava pela Sierpes, junto ao Credit,
enigmática, como a viste. A elegância do seu porte, última florescência da moda
francesa, quase imaterial, contrastava com a forte humanidade das sevilhanas
cheias de vida, de sangue e de desejos. Todos se voltaram para ela e lhe
abriram caminho, como se passasse um andor. Fui logo preso pelo encanto
decadente e artificial, esqueci a Vida e a glória de viver ao sol nos campos
fecundos. Regressei à hipercivilização; segui-a e alegre entrei, atrás dela,
para o seu e meu hotel.
"Vergonhosamente a segui como um cão fiel. Vergonhosamente
mendiguei um olhar dos seus olhos parados; e contente fiquei ao vê-la um dia no
salão da leitura, por que pude dirigir-lhe a palavra e pedir-lhe licença para
fumar. Apesar da resposta seca, insisti e entabulamos conhecimento.
"Doces foram para mim os dias, em que visitamos Sevilha. A casa de
Pilatos e as suas penumbras em que esmaecem estuques e o pátio claro de
mármores harmoniosos ouviram as palavras aladas que lhe disse; diante das
Assumpções do Murilo e dos frades de Zurbaran, no museu deserto, contei-lhe o
poema do meu desejo; na Caridad, a mostrar-lhe a estatua de
Herrera, ouviu a perfumada e embaladora cantilena. Na Giralda, a ver Sevilha
dourada, deitada na planície que ondulava, até perder-se no horizonte circular,
ofereci-lhe toda a minha alma e toda a minha vida. Houve momentos em que seus
braços foram a levantar-se para apertar o meu pescoço; julguei sentir o seu
peito leve arfar de comoção: muitas vezes a boca se apertou para a florescência
dos beijos e seus olhos verdes se encheram de luz; mas rápido, tudo se
desmanchava, e um sorriso tremia na boca desmaiada, a mostrar a linha branca
dos dentes.
O flirt desabrochava. Uma
tarde, nos jardins do Alcáçar, à porta dos banhos de Maria Padilha, passou
por mim o corpo delgado, ágil, pela cara roçou o cabelo que tinha um perfume
penetrante; falou-me do seu corpo e, sentados no salão dos Embaixadores,
estendia a perna, para mostrar o tornozelo fino e a meia ajourée,
que deixou ver a pele branquíssima. Todas as noites eu pensava, que no dia
seguinte beijaria a boca perfumada. E todas as manhãs via cair a minha
esperança, como as folhas murchas que o vento sacode dos ramos secos.
Certamente que as minhas palavras deviam ser perturbantes, porque saíam
de um coração perturbado. E, pesadas de tanto amor, caíam da boca
vagarosamente. Às vezes os cílios de ouro abatiam-se sobre os olhos, como num
espasmo. Mas logo o sorriso abria-lhe a pequenina boca!
Longos dias, longas semanas, durou o encantado oaristo. Já não cuidava
da glória da natureza; das apoteoses do sol sobre as águas azuis do rio. Só
pensava nela, só vivia dela.
Um dia, porém, eu soube! Alguém, com palavras que julgou caridosas, veio
por no meu coração as sete espadas! A criaturinha delicada e deliciosa,
princesa de balada de hoje, urna de perfume, a quem me entregava como um
colegial, era uma aventureira das que frequentam a Riviera no
inverno, Aix no verão, Paris na primavera, e que a Sevilha viera atrás de
um clown, que no circo fazia
rebentar estrépitos de gargalhadas... Ao seu mórbido encanto me prendera, e
atrás dela me fui a soluçar, flor de lameiro em que pus todo o perfume suave...
Fora nas mãos dela um saxe frágil como que se brinca!
Ah, meu amigo! O desespero e a raiva puseram mãos assassinas a
estrangular-me! Num ímpeto, como uma aura que se nos levanta do peito e nos
atira para o ataque epiléptico, decidi-me. Levei-a num trem para o campo, para
além da Cartuja, com um cocheiro de confiança. E ali, desapiedadamente,
bati-lhe, arranquei-lhe as sedas e as rendas — parecia, nua entre os trigais
verdes, uma magnólia enorme! — e o seu corpo cobriu-se todo de sangue. Clara
gemeu, implorando; as lágrimas empastavam a maquiagem; via-a sórdida,
enrolando-se para escapar às chicotadas, e fugi, ébrio, doido, a correr, diante
do cocheiro espantado que me meteu no trem e me levou a Sevilha.
— Señorito, la navaja era mejor, aconselhou-me.
Parti. Nunca mais soube dela. Trouxe-a dentro de mim como um espinho. A
dor que lhe causei aumentou a minha pena. De ter visto o corpo magro e branco,
ficou-me a ânsia de o beijar. Andei de noite, pelas ruas, a correr sem forças
para fugir de mim e dela, porque a figura surgia diante dos meus
olhos, bela de toda a perversidade e de toda a lascívia, como uma
invencível tentação, a que o maior santo sucumbe.
Às vezes conseguia distrair-me; de repente ela surgia, sentava-se na
minha frente, mostrava os vergões das chicotadas, todo o corpo impudico
perfumava e brilhava, e a boca sorria a escarnecer de mim!
Foi algum filtro que me deu.
Ia a esquecê-la e ei-la que novamente me aparece, a prender-me, a
levar-me, outra vez para a alucinação, a atiçar o incêndio que me queimava!
Talvez queira vingar-se!
Não. Não queria vingar-se. Clara veio a Lisboa, soube-o mais tarde,
atrás de um comprimário de São Carlos, seu amant de coeur.
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Pesquisa, transcrição e adequação ortográfica: Iba
Mendes (2019)
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