7/05/2019

Cinco na mesma Vagem (Conto), de Hans Christian Andersen



Cinco na mesma Vagem
Traduzido por: Gabriel Pereira (1847-1911)
Numa vagem estavam cinco ervilhas. Estavam ainda verdes e verde era também a vagem; por esta razão acreditavam que o mundo era verde; – que o leitor se considere na posição das ervilhas, e facilmente perceberia esta ilusão. Cresceu a vagem, cresciam as ervilhas, tendo sempre o cuidado de se conservarem bem alinhadas e nas respectivas distâncias.
O sol aquecia a vagem; a chuva e as gotas de orvalho a tornavam clara e transparente, e assim, durante o dia, gozavam as ervilhas uma doce claridade e durante a noite as trevas lhes favoreciam o sono. Mas, crescendo, tornaram-se sérias e cismadoras.
– Então ficaremos sempre aqui? disse uma delas. Muitas coisas há de haver lá fora dignas de admiração. Passaram algumas semanas e elas amareleceram.
– Agora está tudo amarelo, diziam as cinco ervilhas; muitas voltas dá o mundo.
Subitamente sentiram uma viva comoção; um homem arrancara a vagem e a lançara num cesto com muitas outras.
– Ora enfim, vamos ter a liberdade, disseram as ervilhas; e esperavam com impaciência o grande e venturoso momento.
– Qual de nós irá mais longe no mundo, e chegará a uma posição mais elevada? disse a mais pequena das cinco. Em breve o saberemos.
– Seja feita a vontade do Senhor! disse a maior, com sincera resignação.
Traz! abriu-se a vagem: e as cinco ervilhas rolaram na mãozita dum rapaz.
– Oh! que belas balas para a minha espingarda! exclamou ele, e meteu uma no tubo de lata e largou a espiral.
– Vou correr mundo, pensou a ervilha cheia de entusiasmo. E desapareceu. O rapaz introduziu a segunda no cano.
– Agora vou parar ao sol, pensou a ervilha, descrevendo a sua parábola. Que vagem tão quentinha que hei de ter lá.
As três ervilhas restantes, menos ambiciosas, assustaram-se vendo as grandes cambalhotas das suas companheiras, e deixaram-se escorregar e cair no chão; mas o rapazito apanhou-as também, dando lhes o mesmo destino.
– Chegou a minha vez, disse a última, cumpra-se a vontade do Senhor! e foi cair na janela duma casa pobre, antes uma choupana, numa fenda cheia de musgo e terra.
O musgo em breve cercou e envolveu o pequeno grão. Na choupana morava uma infeliz mulher que vivia de fazer recados e de pesados trabalhos. Aceitava os trabalhos mais custosos, porque era forte e corajosa e... era mãe; e a_ filha, uma criança pálida e loura, flutuava, havia quase um ano, entre a vida e a morte.
– Também esta vai para o céu, dizia a pobre mãe; vai juntar-se à irmãzinha. Meu Deus! já me levastes uma, deixai-me esta, Senhor! Estás tão doente, tão fraca, parece-me que não escapas, filha!
Chegou a primavera, e, uma manhã, quando a mãe ia sair, o sol, rompendo a neve iluminou com tal intensidade a janela da choupana, que a doente olhou para lá admirada.
– Parece-me, disse ela, ver o que quer que é, a tremer, ali na janela. Que é?
A mãe abriu a janela.
– Olha a graça! disse ela, é uma ervilha que está aqui entre o musgo; já tem umas folhinhas; como viria ela aqui parar?
– Não a arranque, mãe, deixe ver se ela cresce muito...
– Não, filha, não a arranco. Queres vê-la mais de perto?
E aproximou o leito da janela, para que a filha visse melhor a planta delicada; depois abraçou-a e saiu.
À noite, assim que entrou, disse-lhe a pequena:
– Já estou melhor, fez-me bem o calor do sol, e, olhe, vendo como a ervilha ali nasceu e vai crescendo, pensei que me havia de curar e que o sol e o ar me fariam bem.
— Queira Deus! respondeu a mãe, ainda assim com bem pouca esperança.
No dia seguinte a pobrezinha rodeou a ervilha com um pequeno caniçado; passados dias as hastes verdes e sarmentosas se entrelaçavam cheias de viço e frescura, e não tardou muito a aparecer a primeira flor.
– Feliz presságio! pensou a mãe, e começou a ter também esperanças na cura da pobre criança. A doentinha falava já com mais animação; levantava-se e assentava-se sem ajuda, e olhava sempre com o maior prazer, com afeição até, a planta que revestira a janela com um cortinado de verdura. Uma semana mais tarde, podia ela já estar algumas horas fora do leito, todos os dias. Assentava-se junto da janela e aí, em companhia das flores alvas e rosadas, gozava da suavidade do ar e do calor do sol.
— Foi o bom Deus, dizia a alegre mãe, foi o bom Deus, minha filha, que fez crescer a pobre planta numa fenda cheia de musgo para que o seu aspecto alegrasse os teus olhos e nos desse a ambas coragem e esperança.
E as outras ervilhas? que seria feito delas? Uma caíra num telhado e foi engolida por um pombo, e a mesma sorte tiveram as outras duas; sempre serviram para alguma cousa. A outra, a tal que desejava ir para o sol, caiu mesmo no meio da regueira, e aí ficou, na lama, cada vez mais inchada.
– Se isto continua, dizia ela, arrebentarei sem dúvida. Estou certa que nenhuma outra ervilha atingiu um tão colossal desenvolvimento; das cinco que estávamos na mesma vagem sou eu a mais notável, mas muito mais notável.
Talvez minhas irmãs tenham alcançado posições eminentes? Mas o importante é engordar.
Um dia a rapariga da choupana, completamente restabelecida, os olhos brilhantes, as faces rosadas, aproximou-se da janela, elevou ao céu as mãozinhas postas e do íntimo do seu coração agradeceu a Deus o ter-lhe restituído a saúde, e o ter poupado á mãe a dor imensa de ver morrer a sua ultima filha; e depois inclinou o olhar sobre a planta, que tinha as folhas ainda verdes, mas cujas flores haviam já sido substituídas por formosas vagens.
– E tu, minha pobre planta, verde como a esperança e que foste para mim o primeiro sinal da proteção divina, tu não tardarás a amarelecer e a secar. Mas eu não te esquecerei; colherei os teus grãos e todos os anos os teus descendentes crescerão tratados pelas minhas mãos aqui nesta janela; e as suas flores serão sempre para mim as mais encantadoras e mimosas. E a ervilha, confiada nesta promessa da inocente, regozijou-se pensando que o beneficio dela seria útil à sua posteridade.
– Seja feita a vontade do Senhor! repetia ela. Pobre ervilha como sou, a minha existência limita-se a uma estação; mas como é agradável pensar que hei de sobreviver nos filhos, e que eles serão ainda protegidos pelas recordações que eu deixar! Não será este um modo de ir longe, bem longe no mundo? 
E no entretanto a regueira lá ia levando a sua água fétida e turva, murmurando:
– Cá levo a minha ervilha. Tanto engordou, tanto se saturou de lama, que se desfez em podridão. Não deixou nem um gérmen, nem uma lembrança. Serviu apenas para ajuntar alguns átomos sem nome aos que eu tenho já e que servem para alimentar a terra e os animais imundos. Fim dos ambiciosos! Querem a princípio ir para o sol e quando lhes sucede cair na lama, acham-se tão bem, tão no seu elemento que não pedem mais nada. A este respeito as ervilhas parecem-se muito com os homens.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Sugestão, críticas e outras coisas...