Cinco na mesma Vagem
Traduzido por: Gabriel Pereira
(1847-1911)
Numa
vagem estavam cinco ervilhas. Estavam ainda verdes e verde era também a vagem;
por esta razão acreditavam que o mundo era verde; – que o leitor se considere
na posição das ervilhas, e facilmente perceberia esta ilusão. Cresceu a vagem,
cresciam as ervilhas, tendo sempre o cuidado de se conservarem bem alinhadas e
nas respectivas distâncias.
O
sol aquecia a vagem; a chuva e as gotas de orvalho a tornavam clara e
transparente, e assim, durante o dia, gozavam as ervilhas uma doce claridade e
durante a noite as trevas lhes favoreciam o sono. Mas, crescendo, tornaram-se
sérias e cismadoras.
–
Então ficaremos sempre aqui? disse uma delas. Muitas coisas há de haver lá fora
dignas de admiração. Passaram algumas semanas e elas amareleceram.
–
Agora está tudo amarelo, diziam as cinco ervilhas; muitas voltas dá o mundo.
Subitamente
sentiram uma viva comoção; um homem arrancara a vagem e a lançara num cesto com
muitas outras.
–
Ora enfim, vamos ter a liberdade, disseram as ervilhas; e esperavam com
impaciência o grande e venturoso momento.
–
Qual de nós irá mais longe no mundo, e chegará a uma posição mais elevada?
disse a mais pequena das cinco. Em breve o saberemos.
–
Seja feita a vontade do Senhor! disse a maior, com sincera resignação.
Traz!
abriu-se a vagem: e as cinco ervilhas rolaram na mãozita dum rapaz.
–
Oh! que belas balas para a minha espingarda! exclamou ele, e meteu uma no tubo
de lata e largou a espiral.
–
Vou correr mundo, pensou a ervilha cheia de entusiasmo. E desapareceu. O rapaz
introduziu a segunda no cano.
–
Agora vou parar ao sol, pensou a ervilha, descrevendo a sua parábola. Que vagem
tão quentinha que hei de ter lá.
As
três ervilhas restantes, menos ambiciosas, assustaram-se vendo as grandes
cambalhotas das suas companheiras, e deixaram-se escorregar e cair no chão; mas
o rapazito apanhou-as também, dando lhes o mesmo destino.
–
Chegou a minha vez, disse a última, cumpra-se a vontade do Senhor! e foi cair
na janela duma casa pobre, antes uma choupana, numa fenda cheia de musgo e
terra.
O
musgo em breve cercou e envolveu o pequeno grão. Na choupana morava uma infeliz
mulher que vivia de fazer recados e de pesados trabalhos. Aceitava os trabalhos
mais custosos, porque era forte e corajosa e... era mãe; e a_ filha, uma
criança pálida e loura, flutuava, havia quase um ano, entre a vida e a morte.
–
Também esta vai para o céu, dizia a pobre mãe; vai juntar-se à irmãzinha. Meu
Deus! já me levastes uma, deixai-me esta, Senhor! Estás tão doente, tão fraca,
parece-me que não escapas, filha!
Chegou
a primavera, e, uma manhã, quando a mãe ia sair, o sol, rompendo a neve
iluminou com tal intensidade a janela da choupana, que a doente olhou para lá
admirada.
–
Parece-me, disse ela, ver o que quer que é, a tremer, ali na janela. Que é?
A
mãe abriu a janela.
–
Olha a graça! disse ela, é uma ervilha que está aqui entre o musgo; já tem umas
folhinhas; como viria ela aqui parar?
–
Não a arranque, mãe, deixe ver se ela cresce muito...
–
Não, filha, não a arranco. Queres vê-la mais de perto?
E
aproximou o leito da janela, para que a filha visse melhor a planta delicada;
depois abraçou-a e saiu.
À
noite, assim que entrou, disse-lhe a pequena:
–
Já estou melhor, fez-me bem o calor do sol, e, olhe, vendo como a ervilha ali
nasceu e vai crescendo, pensei que me havia de curar e que o sol e o ar me
fariam bem.
—
Queira Deus! respondeu a mãe, ainda assim com bem pouca esperança.
No
dia seguinte a pobrezinha rodeou a ervilha com um pequeno caniçado; passados
dias as hastes verdes e sarmentosas se entrelaçavam cheias de viço e frescura,
e não tardou muito a aparecer a primeira flor.
–
Feliz presságio! pensou a mãe, e começou a ter também esperanças na cura da
pobre criança. A doentinha falava já com mais animação; levantava-se e
assentava-se sem ajuda, e olhava sempre com o maior prazer, com afeição até, a
planta que revestira a janela com um cortinado de verdura. Uma semana mais
tarde, podia ela já estar algumas horas fora do leito, todos os dias.
Assentava-se junto da janela e aí, em companhia das flores alvas e rosadas,
gozava da suavidade do ar e do calor do sol.
—
Foi o bom Deus, dizia a alegre mãe, foi o bom Deus, minha filha, que fez
crescer a pobre planta numa fenda cheia de musgo para que o seu aspecto
alegrasse os teus olhos e nos desse a ambas coragem e esperança.
E
as outras ervilhas? que seria feito delas? Uma caíra num telhado e foi engolida
por um pombo, e a mesma sorte tiveram as outras duas; sempre serviram para
alguma cousa. A outra, a tal que desejava ir para o sol, caiu mesmo no meio da
regueira, e aí ficou, na lama, cada vez mais inchada.
–
Se isto continua, dizia ela, arrebentarei sem dúvida. Estou certa que nenhuma
outra ervilha atingiu um tão colossal desenvolvimento; das cinco que estávamos
na mesma vagem sou eu a mais notável, mas muito mais notável.
Talvez
minhas irmãs tenham alcançado posições eminentes? Mas o importante é engordar.
Um
dia a rapariga da choupana, completamente restabelecida, os olhos brilhantes,
as faces rosadas, aproximou-se da janela, elevou ao céu as mãozinhas postas e
do íntimo do seu coração agradeceu a Deus o ter-lhe restituído a saúde, e o ter
poupado á mãe a dor imensa de ver morrer a sua ultima filha; e depois inclinou
o olhar sobre a planta, que tinha as folhas ainda verdes, mas cujas flores
haviam já sido substituídas por formosas vagens.
–
E tu, minha pobre planta, verde como a esperança e que foste para mim o
primeiro sinal da proteção divina, tu não tardarás a amarelecer e a secar. Mas
eu não te esquecerei; colherei os teus grãos e todos os anos os teus
descendentes crescerão tratados pelas minhas mãos aqui nesta janela; e as suas
flores serão sempre para mim as mais encantadoras e mimosas. E a ervilha,
confiada nesta promessa da inocente, regozijou-se pensando que o beneficio dela
seria útil à sua posteridade.
–
Seja feita a vontade do Senhor! repetia ela. Pobre ervilha como sou, a minha
existência limita-se a uma estação; mas como é agradável pensar que hei de
sobreviver nos filhos, e que eles serão ainda protegidos pelas recordações que
eu deixar! Não será este um modo de ir longe, bem longe no mundo?
E
no entretanto a regueira lá ia levando a sua água fétida e turva, murmurando:
–
Cá levo a minha ervilha. Tanto engordou, tanto se saturou de lama, que se
desfez em podridão. Não deixou nem um gérmen, nem uma lembrança. Serviu apenas
para ajuntar alguns átomos sem nome aos que eu tenho já e que servem para
alimentar a terra e os animais imundos. Fim dos ambiciosos! Querem a princípio
ir para o sol e quando lhes sucede cair na lama, acham-se tão bem, tão no seu
elemento que não pedem mais nada. A este respeito as ervilhas parecem-se muito
com os homens.
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