Breves reflexões sobre alguns pontos de economia agrícola
Ajuda, 8 de março de 1849:
Circunstâncias meteorológicas extraordinárias ameaçam
o nosso belo país de uma colheita nula. Perto de três meses de aridez, na época
do ano em que as chuvas são mais necessárias, têm quase destruído as esperanças
dos agricultores. Um mês mais que dure esta situação, e o mal tornar-se-á intensíssimo
e, em grande parte, irremediável.
Os espíritos fracos contentam-se com blasfemar ou
carpir-se. Isto é cobardia. Muitos voltam-se para Deus e imploram a
Providência. Isto é respeitável. Outros pensam nos alvitres para ocorrer à
miséria e à fome, que pode vir a pesar sobre a população menos abastada. Isto é
generoso e nobre. Mas aquilo em que poucos pensam é em converter esta situação
assustadora numa lição salutar; em deduzir do mal presente proveito para o
futuro.
O nosso povo atual é um pouco semelhante a seus avós,
os marinheiros do século XVI, que afrontavam as procelas dos mares da Índia e
da América. Rudes e feros na bonança, voltavam-se para o céu quando a
tempestade ameaçava submergi-los. Era daqueles trances que os sacerdotes, seus
companheiros de riscos e aventuras, se aproveitavam para os revocar às santas
doutrinas da fé, e era ordinariamente então que nessas almas rudes achavam
acesso o arrependimento e as verdades da religião.
Desejaríamos que a imprensa fosse também um pouco
semelhante aos bons missionários do século XVI; que nos dias da angústia
dissesse algumas verdades duras aos povos, quando mais não fosse, ao menos para
interromper a monotonia das que diariamente diz aos reis. A imprensa que vive
da publicidade, da publicidade que se estriba na bolsa do povo, praticaria um
ato de devoção mais corajosa, falando severamente aos seus naturais patronos,
do que dirigindo-se aos príncipes, de quem ela depende incomparavelmente menos
para existir e prosperar.
Por isso nós a convidaríamos para que, sem distinção
de partidos, sem lhe importar com a diversidade da sua missão política ou
literária, aproveitasse o ensejo de temores que assaltam geralmente os ânimos,
para insinuar nestes importantes verdades.
A natureza do flagelo que nos oprime, as observações
que fizemos numa pequena excursão para o lado de Cintra, nos suscitaram estas
reflexões, a que esperamos associem outras de mais valor as pessoas
competentes. Posto que dominados por uma viva afeição à agricultura, a essa
rainha das indústrias, somos apenas curiosos nesta matéria. Há, porém, uma
certa soma de verdades iniciais na ciência que estão ao alcance de todos os que
as buscam, seja como estudo, seja como curiosidade.
Portugal tem uma agricultura incompleta. Se
excetuarmos o Minho, podemos dizer que o produto do nosso solo é exclusivamente
representado pelos cereais, pelo vinho e pelo azeite. Por importantes, contudo,
que sejam os dois últimos, o principal é, como em todos os países, o dos
cereais.
Mas é doutrina incontestável que para a cultura destes
poder prosperar é necessária a cópia de estrumes; que para haver cópia destes é
necessário gado; que este não existe, ou tem uma existência precária onde não
há pastagens, e estas são sempre miseráveis e insuficientes num país onde
a intensidade, digamos assim, do sistema agrícola não é
proporcional à sua extensão; onde a arte não ajuda energicamente a natureza a
suprir a alimentação dos animais.
Portugal não tem criações de gado: queremos dizer, não
tem neste ramo de indústria rural senão o restritamente necessário para a
lavoura, pelo que respeita a gado grosso; e o seu gado lanígero é pouco numeroso,
imperfeito, e rareado anualmente pelos resultados de um tratamento quase
selvagem. Por quê? Porque ainda não adotamos a doutrina fundamental de toda a
agricultura judiciosa, a criação dos animais numa larga escala, nem buscamos
ainda os meios para isso adequados.
As nossas terras mais férteis produzem de 10 a 15
sementes, e a produção das medíocres é entre 5 e 8. Tendo a cultura adquirido
uma grande extensão, com esta produção acanhada o lavrador acha-se colocado
entre dois extremos deploráveis. Se o ano é mau, a limitada proporção entre a
semente e o produto torna-se ainda mais restrita, e embora suba o preço do
gênero, o fabrico absorve quase a colheita: se o ano é propício, a barateza no
mercado vem a inutilizar a abundância, e o cultivador fica sempre miserável.
A imperfeição das máquinas e dos métodos, o péssimo
sistema, ou antes a negação de sistema nas rotações, e várias outras causas,
contribuem para este estado violento; mas a causa principal é a desproporção
enorme na distribuição do solo: o homem crê fazer para si a parte do leão, e
engana-se. Espoliando os animais que o ajudam nas suas laboriosas tarefas, os
animais que o vestem ou lhe fertilizam os campos, do quinhão que lhes cabe nos
frutos destes, torna-se desgraçado a si no meio de uma abundância mais aparente
que real.
Na Inglaterra, o país modelo da agricultura, os
produtos de um terço, pelo menos, da terra cultivada pertencem aos animais
domésticos. Nós talvez não lhes reservamos um centésimo. O erro nesta parte
produz uma infinidade de fatos, que principalmente determinam a falta de
progresso de intensidade na agricultura nacional.
Um ano pouco favorável, como o que vai correndo,
descobre logo por diversos modos a nossa situação deplorável.
De que ouvimos principalmente queixar os agricultores,
quando os interrogamos sobre os fatais efeitos deste estio inesperado, que veio
pesar sobre nós no coração do inverno? De que esse pouco gado que possuem
morrerá à fome. Por quê? Porque o lavrador põe quase exclusivamente as suas
esperanças nas ervagens espontâneas; entrega à Providência o cuidado dos seus
bois e das suas ovelhas. Esta confiança nem é prudente, nem religiosa. Deus não
deu inutilmente ao homem a faculdade de refletir, nem os braços para o
trabalho. A proteção da Providência não vai até o ponto de suprir o desprezo da
nossa atividade intelectual e material.
Perdemos os poucos gados, que possuímos, quando o
inverno é seco; perdemo-los se é excessivamente chuvoso. Pode-se dizer que este
fato pinta e resume o estado do nosso progresso agrícola.
Que prevenções faz em geral o cultivador para obviar a
qualquer delas hipóteses terríveis, tão fáceis de verificar-se, principalmente
a segunda? Nenhumas. Onde estão os fenos devidamente colhidos e reservados,
onde as raízes das plantas chenopodeas e crucíferas, onde os prados
artificiais, regados pelos ribeiros, onde, enfim, todos esses recursos, de que
o agricultor dos países centrais e do norte lança mão para resistir às
incertezas das estações?
O lavrador cultivou cereais, muitos cereais, e repousou,
pelo que tocava ao seu gado; nos dons espontâneos do inverno. O inverno
negou-os. Resta pedir a Deus que reduza à regularidade as variações
atmosféricas, variações incertas só para nós, e dependentes de leis naturais,
que porventura os progressos da meteorologia virão ainda revelar-nos, e que não
cremos se hajam de alterar a favor da nossa imprevidência.
Sabemos o que se costuma responder a isto: "Esses
fenos, esses prados, essas raízes fusiformes, que constituem uma alimentação
abundante para os animais, são possíveis nos países úmidos do norte. O nosso
clima adusto torna impossível a aplicação de um sistema análogo."
Seria longo, mas pouco difícil, mostrar sob todos os
aspectos o sofistico deste argumento; mostrá-lo por fatos. Impressionados pelo
que, com tristeza, acabamos de ver num trato de terra de cinco léguas,
limitar-nos-emos a algumas considerações especiais.
E primeiro que tudo, com que direito se invoca, para
defender a incúria agrícola, falta de humidade no nosso clima, quando deixamos
correr anualmente para o mar milhões de pipas d'água pelos grandes rios e por
centenares de regatos, que podiam, muitas vezes com leve trabalho, fertilizar
os campos vizinhos e alimentar prados, cuja produção excederia quanto a cultura
dos países do norte oferece, neste gênero, mais admirável?
Depois, que meios se empregam para temperar pela arte
os efeitos da nossa situação meridional? Os hábitos adversos a esses meios são
os que dominam entre a população campestre. É sabido que as árvores, ainda nas
noites mais secas do estio, atraem à terra uma grande porção de umidade. A que
deve o Minho a frescura dos seus vales, os enormes produtos do seu solo, que
não sofre comparação com as nossas terras fortes da Estremadura? A uma
arborização admirável. O homem do sul tem ódio, literalmente ódio, não só às
selvas, mas até à árvore solitária, que pode assombrar-lhe algumas paveias de
cereais, porque os cereais são o ídolo que resume todos os seus afetos, embora
a cruel experiência lhe venha provar, nos anos desfavoráveis à cultura das gramíneas,
que o seu sistema acanhado e exclusivo conduz facilmente à miséria e à
perdição.
Este ódio às matas e arvoredos tem-se tornado numa
espécie de contágio, que vai lavrando e ameaça as províncias setentrionais. A
Beira há muito que começou a ser despojada dos seus magníficos bosques, que por
partes a tornavam rival do Minho. Os efeitos, porém, do destroço insensato dos
grandes vegetais sentem-se principalmente na Estremadura, e sobretudo neste
trato de terra entre dois mares, onde se acha situada a capital. Os vapores,
que as árvores, povoando os cimos dos montes, atrairiam para os vales, não
descem à terra: os ventos do norte, precipitando-se livres dos visos calvos das
colinas, fustigam as encostas do sul, remoinham nas planícies, e não consentem
sequer que o orvalho console à noite a vegetação devorada pelo sol do meio-dia.
Na verdade, a aridez dos campos na estação estival pouco importa ao cultivador
exclusivo de cereais; mas quando causas desconhecidas impedem, durante o inverno,
o curso dos ventos chuvosos, quando o verão vem substituir-se ao inverno, não
sabemos se como castigo se como advertência, então ele maldiz essas torrentes
de ventania, que produzem mais secura em vinte e quatro horas do que três dias
de sol ardente. Maldi-las, sem se lembrar ou sem saber, que seus pais e ele
próprio contribuíram para a existência de semelhante flagelo pela destruição
das matas, ou, quando menos, pelo descuido no plantio delas.
O ciúme cego com que a menor leira de terra arável é
disputada aos arvoredos, por causa do predomínio exclusivo dos cereais, explica
indiretamente esse furor com que são perseguidas as árvores, até nos sítios
mais inférteis; com que se lhes disputa a vida até por entre as penedias das
serras. Como a cultura das forragens é insignificante, e enormemente
desproporcionada à dos cereais; como o céu está encarregado, pelo comum dos
agricultores, de prover à sustentação dos gados, o baldio é o segundo artigo do
credo agrícola deles. Os pastos comuns são a cidadela da inércia e o teatro
reservado pela ignorância às maravilhas da Providência. Todas as desvantagens
de conservar incultos terrenos que poderiam servir ao homem se adotássemos um
sistema misto, ou se atendêssemos às indicações da ciência e à natureza do
nosso clima, para promovermos a arborização nos lugares acomodados para ela,
não são comparáveis ao delicioso espetáculo de ver retouçar meia dúzia de
ovelhas, vacas, e bois héticos, nas gandras bravias, quando, num sistema de
cultura judicioso, conservaríamos gordos e anafados dobrado número de animais,
unicamente com a produção da nossa propriedade particular, sem que
deixássemos de colher nesta a mesma quantidade de trigo, que nos produz o
deplorável método da cultura exclusiva.
A existência dos baldios municipais, dos pastos
comuns, é um dos mais graves embaraços ao progresso da agricultura entre nós.
Favorecendo a natural indolência do homem do campo, facilitando-lhe recursos
que, até certo ponto, suprem os defeitos de um método errado e incompleto de
afolhamentos, de uma cultura sem proporção nem equilíbrio, eles opõem uma
barreira, as mais das vezes invencível, à introdução de um sistema sensato e profícuo.
Ignorando os melhoramentos que as rotações judiciosas trazem ao solo, as
vantagens da estabulação, os métodos de multiplicar em quantidade e em energia
os adubos animais, desconhecendo a aplicação dos corretivos minerais, o
agricultor baseia nos maninhos, não só uma substituição à cultura das
forragens, mas também um meio de adubar as suas terras, embora os estrumes
vegetais que deles tira, pessimamente preparados, deem à terra uma alimentação miserável.
É-lhe necessário que as urzes povoem as serras nuas de arvoredo, tanto para aí
pascerem os gados durante uma parte do ano, como para suprirem a carência de estrumes,
resultado dessa alimentação erradia do gado, em que o cultivador, podemos
dizer, lança fora o mais rico tesouro de princípios restauradores, um dos
produtos mais importantes da criação dos animais.
Se as grandes verdades na ciência são, em regra, férteis
de consequências proveitosas, os grandes erros não são menos férteis de
consequências fatais. Como as urzes expulsam as árvores dos terrenos incultos,
é justamente nas vizinhanças de extensos maninhos onde muitas vezes mais se
experimenta a falta de lenhas, e que por consequência os povos mais rapidamente
destroem as cepas desses mesmos matos que os suprem de pastagens e de estrumes.
Sendo esse o único meio de obter combustível, e não correspondendo o
desenvolvimento das raízes lenhosas à rapidez e extensão do consumo, o
resultado final é fácil de prever. Há de chegar um dia em que a imprevidência
tenha dado inteiro o seu fruto. Esses cabeços e gandras, rareados pela mão do
mateiro, espoliados enfim, dos últimos fragmentos da sua triste coroa de
piornos e tojos, achar-se-ão convertidos em arneiros escalvados, onde a falta
absoluta de húmus torne impossível a vida da erva mais rasteirinha. É um fato
que, por muitas partes, se tem já verificado, e que sucessivamente se vai
verificando por outras. Então os efeitos dos erros agronômicos, a que a gente
do campo tem um afeto tão cego, pesarão terrivelmente sobre ela, vindo depois o
remédio só pelo excesso do mal.
Admitindo por um pouco as supostas vantagens dos
baldios, e no interesse desses mesmos pastos comuns, a necessidade de dedicar
uma porção deles à silvicultura torna-se evidente. Em Cintra, por exemplo,
cujos antigos bosques desapareceram há muito, e onde a cepa já começa a escassear,
como é fácil de conhecer à simples inspeção do terreno correndo os recessos da
serra, os habitantes daqueles contornos deviam, por muitas razões, mas
sobretudo por causa do combustível, forcejar para que os cimos escalvados das
cordilheiras se povoassem de pinhais ou de soutos e devesas de outras árvores,
que esses magros terrenos consentissem. Independentemente das influências, que
a nudez ou o selvoso daqueles escarpados rochedos possa ter na cultura dos
campos vizinhos; ainda sem atender a que Cintra perde de dia para dia, pela
devastação dos grandes vegetais, os encantos que aí atraem os felizes do mundo,
e que por longos anos têm sido para os povos dos arredores um manancial de
prosperidade; ao menos a consideração de que a falta de um dos objetos mais
necessários à vida, igualmente indispensável para o rico e para o pobre, vai em
sensível progresso, devia conduzi-los a reconhecer que a arborização da serra é
reclamada talvez já pelo interesse da geração atual, e sem dúvida pelo das
gerações que hão de vir.
E todavia, um sucesso recente, um sucesso que fez
certo ruído, prova que ou todas estas ideias se desconhecem, ou se pospõem a
considerações de um egoísmo, que nem sequer tem o mérito de ser hábil, ou que
finalmente o nosso país está condenado a ver sujeitar ao arrebatamento das
paixões políticas as questões mais estranhas, as conveniências econômicas, os
meios de progresso material, as indicações da experiência, trazendo-se para um
campo neutro, e que para todos devera ser sagrado, as lutas deploráveis dos
nossos bandos civis. O fato a que aludimos foi lançado nos debates da imprensa,
e por isso é hoje do nosso domínio.
Sua Majestade El-Rei pretendeu aforar uma porção das cumiadas
da montanha de Cintra contíguas ao parque da Pena. Aquela porção de terreno
ingrato e calvo era destinado à sementeira ou plantio de um bosque que cobrisse
de verdura e de vida uma pequena parte dessa ossada de rochedos, que se vão
prolongando até a beira do oceano.
Muitos moradores das aldeias circunvizinhas viram,
porém, neste empenho uma calamidade. O maninho era ameaçado nos seus direitos inauferíveis,
o dorso dos penhascos ofendido na sua pudibunda nudez. Realmente o caso era
grave. Agitou-se tudo, protestou-se, requereu-se. A urze e o piorno acharam
logo advogados contra o pinheiro orgulhoso, contra o luxo da vegetação. Isto é
absurdo e incrível. Embora. A célebre frase "creio porque é impossível"
não tem só aplicação aos mistérios do céu; tem-na às misérias da terra.
Se os princípios mais sólidos da economia agrícola não
são uma solene mentira, a pretensão Del-Rei era legítima; as suas intenções
liberais. Não se tratava de constranger os povos a abandonarem subitamente o
deplorável sistema dos pastos comuns: tratava-se de dar um exemplo de
previdência e de progresso: tratava-se de aplicar ao solo um capital, que só
depois de quinze ou vinte anos poderia produzir um diminuto redito: decerto não
havia aqui, pelo menos, uma inspiração de cobiça. Nenhum homem desapaixonado e
que ame sinceramente o desenvolvimento da indústria agrícola, pondo a mão na
consciência, deixará de qualificar a pretensão de justa, e a intenção de
progressiva.
E nós limitamo-nos a estas qualificações, porque o
lirismo em matérias econômicas é um pouco sem sabor; porque nos fazem náusea os
êxtases e as metáforas de velho estilo, com que se costumam sempre avaliar os
atos dos príncipes. Ainda não decoramos as frases fundidas com que é de uso
exaltar esses atos, sejam maus, indiferentes ou bons, e que só servem de
desvirtuar os últimos. Somos péssimos cortesãos, e, demais, incorrigíveis. Mas
também não sabemos lisonjear o povo; porque a lisonja perde-o, como perde os
príncipes: temos por isso bastante consciência de nós mesmos, para reclamar a
favor Del-Rei, que não tem o hábito das discussões públicas, que não pode vir a
essa arena, a justiça que lhe compete e a que tem tanto direito como o cidadão
mais obscuro. Não acreditamos que um homem, porque se chama rei, esteja banido
do direito comum; que, pária de nova espécie, deva sofrer em silêncio que lhe
caluniem uma intenção pura, que o condenem por atos que noutro qualquer seriam
louvados. Quando a imprensa se perturba e cega até o ponto de assim o praticar,
entristecemo-nos por ela; porque estamos convencidos da santidade da sua
missão, e temos os olhos fitos, não nas paixões pequenas do presente, mas sim
nas esperanças do futuro.
Consideramos aquele aforamento em si, no seu
resultado, nas ideias que o aconselhavam. Não sabemos se, no modo de o
realizar, se faltou a alguma das solenidades legais. Não valia a pena. Que
valesse, os agentes de Sua Majestade deviam ser dobradamente zelosos em
guardá-las. Fizeram mal se as preteriram. Do que porém já foi confessado em um
jornal se deduz que não aconteceu assim.
O requerimento a favor da santidade do deserto, da
integridade do maninho, apareceu estampado. É um monumento: não podia ser outra
coisa. Pinta o país.
Se os nossos governos de todas as épocas e de todas as
opiniões tivessem gastado a centésima parte do dinheiro, que tantas vezes malbaratam,
em ensinar a ler os habitantes do campo, em inculcar-lhes as verdades práticas
com que a ciência tem vivificado outros povos, não apareceria, no ano do Senhor
de 1849, um tal requerimento.
Como epigrafe a ele faça-se uma advertência. O maninho
total de Cintra abrange dez milhões de braças quadradas: os pedregais aforados
têm quatrocentas e sessenta de comprido sobre cento e cinquenta de largo. A
mutilação é horrível. Os requerentes declaram que esta área abrange uma grande
parte da serra.
Quando Sancho Pança, o aldeão manchego, se persuadiu
de que subira às solidões do espaço, e mirara das alturas o nosso planeta,
disse que lhe parecera a terra do tamanho de uma avelã, e os homens mais
pequenos que carneiros. O bom Sancho era um tipo!
Pondera-se a escassez de lenhas nos arredores da
serra. Qual é o remédio? É impedir que num ângulo dela sejam semeados pinhais
ou se façam plantios de outras árvores. O alvitre é infalível e sobretudo
lógico.
Na história, na literatura, nos documentos, achareis
testemunhos frequentes e irrecusáveis de um fato. Cintra foi por séculos a
montanha das selvas. Onde estão estas? Caíram sob o machado da imprevidência.
Os estevais seguiram-nas. Agora revolve-se o chão para arrancar algumas raízes.
Que arrancarão as gerações futuras? Pedras? Cristo converteu-as em pão: mas os
moradores daqueles contornos não têm absoluta certeza de que seus filhos e
netos serão capazes de maravilhas análogas: de as converter em combustível.
E que têm eles com seus filhos e netos? Eles que
pertencem a uma época profundamente caracterizada pelo egoísmo?
No requerimento figuram os operários indo ao domingo
buscar lenha à serra, por não poderem dispensar um dia de semana para esse
mister, o que prova evidentemente não ser lícito aforar sessenta e tantas mil
braças quadradas de terreno num baldio de dez milhões delas.
Depois, os mesmos trabalhadores aparecem de mãos cruzadas
por falta de trabalho, mandando os filhos arrancar mato para viverem, prova de
igual força e de uma concordância admirável com a antecedente. Estes
jornaleiros, ocupados e desocupados, são pobres e miseráveis que possuem
ovelhas, vacas, éguas, etc., situação na verdade só comparável à dos operários
de Betnal-Green, símbolo e resumo da miséria industrial inglesa. Por fim
invocam-se as leis; leis modificadas pela jurisprudência administrativa
moderna; leis promulgadas em épocas, nas quais ou eram desconhecidos os
verdadeiros princípios de economia agrícola, ou estes eram ignorados pelos
legisladores; leis que, se o uso não houvesse obliterado uma grande parte das
suas disposições, iriam lançar nas garras do fisco muitos desses tratos de
cultura chamados vulgarmente tomadas, que se encontram hoje onde só
existiam, há um ou meio século, extensos maninhos, e em cujo aforamento os
homens laboriosos que os desbravaram se viram sempre combatidos pelo ciúme do
vulgo, que não pode tolerar irem-lhe encurtando os domínios da indolência,
romperem-lhe um só lanço da barreira mais forte, que se opõe ao verdadeiro
progresso agrícola.
Isto não se discute. Pelo menos a nós falecenos o
ânimo para tanto.
Como demonstrar que dois e dois são quatro a quem quer que sejam cinco?
Deploramos o abandono em que se deixa a inteligência
do povo: deploramos que a classe média, que tem a força porque está organizada;
que tem a força porque possui a riqueza; que tem a força porque é ilustrada,
não vote uma parte dos seus recursos a alumiar os rudes, os homens de trabalho,
que são seus irmãos, e que têm direito não só ao pão do corpo mas ao do
espírito, ou antes que sem este não chegarão nunca a minorar as dificuldades
com que lutam para obter aquele, nem a rodear-se dos confortos que são
compatíveis com a sua condição. Deploramos, sobretudo, o talento naturalmente
nobre quando sacrifica às conveniências transitórias verdades que, em outra
situação, proclamaria sem hesitar; deploramo-lo nesses momentos aziagos, em que
se esquece de elevar-se acima das antipatias ou simpatias pessoais. Quando se
tem um passado de independência e de probidade política, é generoso não vacilar
ante a viciosa vergonha de fazer justiça aos que se creem poderosos, embora
essa justiça haja de remontar até um rei.
A questão dos maninhos de Cintra é a questão perpétua
dos pastos comuns, que tem agitado todos os países, e que em toda a parte está
resolvida em teoria e em prática, menos na Península. Submetida essa questão às
discussões da imprensa, mal haveria inteligência que não vergasse na tentativa
de defender o baldio; o baldio no que ele tem de mais nocivo e absurdo.
Confundiram-se ideias que importa distinguir; estabeleceram-se proposições que
julgamos contrarias ao melhoramento da agricultura, inconvenientes ao bem-estar
futuro do homem de trabalho, aos seus interesses reais. Persuadidos de que as
nossas opiniões na questão geral, que ess’outra particular veio suscitar, podem
ser uteis, acrescentaremos num subsequente artigo algumas reflexões sobre a
distribuição e aplicação dos maninhos.
---
ALEXANDRE HERCULANO
Escrito em 1849, e publicado
em: Opúsculos, 1909.
Pesquisa e adequação
ortográfica: Iba Mendes (2019).
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