Bater
nos dedos não vale!
Como
os dias corressem quentes, de um sol abrasador, tinha-se construído uma barraca
que abrigasse a multidão. Esperava-se que a concorrência fosse grande, maior
que de costume, pois que o assumpto era de uma gravidade excepcional, como
nenhum outro se ventilara ainda em assembleias populares, desde que fora
implantado o constitucionalismo. Um cidadão flatulento tivera um descuido
irreverente à passagem do cortejo real, no dia em que abrira o parlamento, e
como Argus andasse por ali a farejar a hidra, com uma acuidade sensorial de hiperstesia
nevropática, logo entrou no conhecimento do caso pela dupla via do nariz e dos
ouvidos. Agarrado violentamente por um braço, o mísero cidadão lá marchou para
o calabouço, confessando o crime, mas negando a intenção criminosa, oferecendo
todas as desculpas e explicações que dele exigissem como expiação da sua falta involuntária.
Interrogado
pelo comissário, jurou pela sua honra que o seu desabafo intestinal não
obedecera a nenhum propósito de manifestação política, lamentando-se de não ter
nos esfíncteres a mesma rijeza que tinha nas convicções. E a abonar os seus
dizeres, tirou da algibeira do casaco um frasco de carvão Belloc, que ofereceu
ao exame do comissário.
Quis,
porém, a sua má sorte que, ao destapar o frasco, cometesse a mesma irreverência
que o trouxera ali, agarrado pela mão de ferro de um Argus farejador. Enviado
para juízo, respondeu em polícia correcional, e foi posto à disposição do
governo.
O
comício era para protestar contra a violência sem nome, havida para com um
cidadão sem culpa, e reivindicar ao mesmo tempo os sacratíssimos direitos da Ciência,
no que respeita às leis que regulam a expansibilidade dos gazes em recipientes
mal fechados.
O
calor era de rachar, de modo que foi fácil aos oradores aquecer a multidão.
Nunca se vira espetáculo assim grandioso, milhares de bocas gritando num entusiasmo
louco, e milhares de braços erguendo-se em gestos desesperados, como se fossem
vingar ali mesmo o nefando crime do Poder. Se não somos um bando de cobardes,
gritava um orador, é preciso que este crime não fique impune, que seja lavada
em sangue esta afronta. O cidadão condenado tem de ser posto em liberdade, e no
dia glorioso em que proclamarmos o reinado do direito e da justiça, erguendo o edifício
esplendente do futuro sobre as ruínas sangrentas do passado, será esse mesmo
cidadão quem dará as salvas do estilo... se ainda tiver flatulências.
Rasguemos
o peito heroico, e ofereçamos ao abutre do despotismo o nosso coração
generoso...
Nisto
cai um barrote, e apanhando pela cabeça um cidadão que estava à frente, fez-lhe
uma brecha larga e funda, pondo-lhe quase os miolos a descoberto. O orador
interrompe-se, e como desse com os olhos na ferida, de bordos esfarrapados,
escancarada como uma boca sem dentes, deixando ver no fundo um bocado de osso
muito esburgado e muito branco, enfiado, a tremer, com bagas de suor fino a
perlarem-lhe a testa, encostando-se à mesa, muito lívido — eu não sou para
estas coisas!... não sou para estas coisas...
E
desmaiou.
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Pesquisa, transcrição e adaptação ortográfica: Iba Mendes (2019)
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