Em
1911 escrevíamos num jornal logo extinto, noticiando a próxima publicação das Últimas Páginas:
É
curioso que ao ter de dar aos leitores uma grande nova literária, o faça com
melancolia, quase com amargura. Tão certo é que as consolações da existência,
ainda estas da Arte, "a única flor da Vida", são eivadas muita vez
dum travor singular...
Parece
que o extraordinário artista, deixando-nos para agora este seu livro inédito,
como um tesouro escondido das Mil e uma noites, nos quis dar, com uma satisfação suprema, uma dolorosa saudade.
Ninguém
trabalhou com mais graça a prosa portuguesa. Outros têm possuído mais ritmos,
maior opulência verbal, sintaxe mais lusitana e mais válida; nenhum o excedeu
em bom gosto (como outrora a Garrett), em cintilações de humorismo, na harmonia
lenta e vaga, na cultura amorosa da imagem, que ele trata como se cuidasse das
flores dum jardim encantado. Nas combinações desse criador de Beleza, — sem
preciosismos, sem parnasianismos, — a palavra ganhou novo viço, como se fosse
uma já gasta moeda que ele cunhasse de novo. Deu a um léxico às vezes
maltrapilho foros de idioma rico; soube-o vitalizar, criar-lhe outra expressão
cheia de frescura e leveza. Fez entrar o vocabulário pobre no salão das nossas
Letras — expressivo, sugestivo, todo vestido de novo. Porque as palavras
parecem feitas de cera, para cada grande artista as moldar diversamente nas
mãos felizes e criadoras...
E
cada vez o escritor foi sendo mais perfeito, mais opulento, com mais amplitude,
mais ar, mais sonho e ritmo. A língua enriquecera-se-lhe no cultivo dos
clássicos, mas nunca perdeu o caráter pessoal, esse quid indefinível a que chamamos estilo, um relevo muito seu,
elegante, sem maneirismos, e porventura, nas páginas derradeiras, mais
soberanamente formosa.
Diante
do novo livro de Eça de Queirós não podemos furtar-nos à impressão que nos
daria um incêndio que, poupando uma galeria de Velásquez, devastasse nas
rajadas de fogo telas de primitivos, de que apenas nos ficassem alguns frescos
imortais... Esse incêndio é o da Morte, a ceifeira negra e misteriosa.
Deixou-nos a obra naturalista de Eça, mas roubou-nos, em grande parte, a obra
de idealismo, de imaginação e de candura, que o próximo volume iniciava.
Deixou-nos as rosas púrpuras, as orquídeas elegantes, as dálias o seu tanto
artificiais, (outrora tão queridas do mestre como o perfume forte da
lúcia-lima); mas secou-nos as flores modestas da piedade, da humildade, da
renúncia. Deixou-nos, enfim, os quadros da vida contingente e efêmera, e as
figuras da cena quotidiana, que só a Arte tem condão de imortalizar; e
levou-nos aquele pedaço de sonho e de vida enigmática, cuja serenidade é como a
das funduras do oceano, onde de certo estarão os germens mais puros da vida.
De
Eça ficou-nos a obra revolucionária, a obra demolidora, evidentemente grande;
mas quase se perdeu a obra augusta de reconstrução e de amor, cujas páginas
alvorecem, como um lindo dia de maio, na Cidade
e as Serras.
O
novo livro no prelo tem duas partes. Uma delas — Artigos Diversos — é, como tudo do autor, uma maravilha. Eça é aí o
crítico e o humorista que sabemos, o cronista cujo valor, entre outros volumes,
as Notas Contemporâneas, gravaram
duma forma indelével, e que ninguém excedeu em brilho, em espírito, e naquela
maneira de vestir a Erudição e a História das roupagens mais deliciosamente
leves e de mais nobres linhas. Mas há outra parte, e vasta, que é a fundamental
do volume: Lendas de Santos (S.
Cristóvão, Santo Onofre, S. Frei Gil). É esse o livro novo; é aí que o Artista
é outro: um grande pintor de frescos à Fra Angélico, sem a candura ingênua e
sem a fé escaldante do visionário de Fiésole, naturalmente, mas em que
vitoriosamente se sente o poeta, alumiando as almas com outra lanterna mágica,
que é a do lume eterno da bondade e do amor. E é sempre consolador anotar isto:
que a poesia é a senhora invisível do mundo, e que é a estrela antiga que mais
encaminha ainda o olhar triste dos homens. Através de todas as convulsões, em
meio de todos os egoísmos, é ela a única flor imorredoura. E poesia quer dizer
amor, quer dizer justiça — e uma infinita, trasbordante piedade. O resto é
fumarada, às vezes resplandecente como as nuvens de ouro. A Arte mais bela será
de certo a que tiver a alumiar-lhe a forma esbelta e pura, lume que nos aqueça no
meio deste frio, música que embale a todos os que vamos na verdadeira onda
humana; e essa onda é a dos que têm um grande sonho, de todos os que têm fome,
de todos os que escutam amorosamente os gemidos cansados dos que avançam
nobremente na vida...
É
claro que Eça de Queirós não nos aparece agora, íntegro e lapidar, como por
milagre, sem raízes que o prendam à sua obra anterior. Essa florescência de
mistério, de imaginação, de poesia, palpita romanescamente revolta nas Prosas Bárbaras; mas neste regresso aos
seus amores primitivos, e ao fundo mesmo da sua consciência estética, houve um
largo estádio percorrido, que cristalizou divinamente as emoções e as formas. O
apologista de Courbet nas conferências do Cassino faria agora o panegírico dum
Memling, sem todavia perder o poder evocativo dum prodigioso reconstrutor de
épocas extintas, à Flaubert (já visto na Relíquia),
mas tocando tudo de outra luz, com um adorável lirismo português, e por vezes,
como hão de ver nessas lendas de Santos, da maneira mais amorosa, mais piedosa
— mais intrinsecamente poética. Dessas vidas de Santos só está incompleta a de
S. Frei Gil — e que imensa pena! Nessa primeira redação, duma rara facilidade e
perfeição admirável, — ao contrário do que muitos pensam do grande escritor —,
hão de ver a maravilha da sua arte espontânea e suprema. É certo que Eça de
Queirós emendava muito nas provas; refundia de alto a baixo; ampliava a ponto
de transformar um pequeno conto (Civilização)
num livro de trezentas páginas (A Cidade
e as Serras). Mas a primeira forma saía-lhe sempre fluente; e talvez com
uma graça e uma frescura de tintas, que mais punha em destaque as suas nativas
qualidades líricas, a que o Naturalismo prendera e crestara as asas — mas que
afortunadamente batem nas Últimas Páginas
um voo largo e rítmico.
***
Vem
agora a propósito acrescentar algumas notas acerca da Obra póstuma de Eça de Queirós, tão extraordinariamente bela. Essa
obra começou em edição da Ilustre Casa de
Ramires. Fomos nós quem reviu, a pedido dos editores, nossos velhos amigos,
o resto do volume, que o grande escritor deixara em manuscrito, na primeira
redação; e nesse volume, melhor que em nenhum outro, se pode verificar a
afirmação já feita: que a prosa de Eça de Queirós era já, na primeira forma,
límpida, fluente, luminosamente expressiva. Quem se der à tarefa de cotejar com
as anteriores as páginas da Casa de
Ramires que o autor desventuradamente já não pôde rever, mas que estão
intactas, não lhes encontrará desequilíbrios sensíveis, nem desfalecimentos de
escritor. São um largo e belo rio, que vai correndo claro, espelhando
deliciosamente os céus e a terra. O artista é sempre dum gosto e duma graça
admiráveis. Esses capítulos finais seriam com certeza acrescentados e
refundidos; mas os que da primeira inspiração brotaram ficaram vivos,
harmônicos, perfeitos. Só um artista sutil e de estética congênere veria aqui
ou ali um adjetivo provavelmente alterável, algum ritmo a modificar, alguma
tinta a esbater.
O
segundo volume póstumo, A Cidade e as
Serras, coube a Ramalho Ortigão revê-lo — ao velho e ilustre camarada das Farpas. E vejam que maravilha essa, na
única redação que tivera, que páginas incomparavelmente cristalinas!
As
Últimas Páginas, derradeiro livro,
como ficou dito, impresso sobre o manuscrito, foi o Sr. Luís de Magalhães quem o reviu — como
fora o mesmo insigne publicista quem tomara dedicadamente a seu cargo a amorosa
tarefa de selecionar e de organizar os diversos volumes de crônicas e trabalhos
dispersos, que os editores mandaram trasladar escrupulosamente nas bibliotecas
de Portugal e do Brasil: — Prosas
Bárbaras (estas excelentemente prefaciadas pelo Sr. Jaime Batalha Reis, o
J. Teixeira de Azevedo da Correspondência
de Fradique Mendes), Contos, Cartas de Inglaterra, Ecos de Paris, Cartas
Familiares e Notas Contemporâneas.
A
obra póstuma de Eça de Queirós parecia assim integral, quando, há poucos anos,
José Pereira de Sampaio lembrou aos editores a publicação de outro volume, em
que se coligissem vários artigos e uma série de dezoito correspondências,
dirigidas de Londres, em 1887, ao jornal portuense de então — a Atualidade. Opinava Bruno que o livro
seria digno da obra do morto ilustre; e foi combinado que se intitularia Páginas Esquecidas, escrevendo um longo
proêmio o crítico eminente da Geração Nova.
Não
concordaram, porém, com a publicação dessas Páginas
os herdeiros do grande romancista, certamente por motivos ponderáveis, e a
edição não se fez,
Mas
estará completa, dando-nos todos os seus contrastes e cambiantes, a obra
póstuma de Eça de Queirós? Em nosso humilde juízo não está. Falta ainda que se
imprimam um ou mais volumes com a sua correspondência particular,
cuidadosamente reunida e escolhida. A figura do escritor e do homem ganhará com
certeza algum outro relevo ou novo encanto — como o seu valor excepcional de
polemista se perdia, se não têm aparecido há tempos, coligidos em volumes,
alguns dos seus artigos formidáveis.
Nós
continuamos a ver nesses livros de Cartas documentos literários e psicológicos
dum valor incontrastável. E, falando-se de Eça de Queirós, que de primores
inéditos se não perdem, inestimáveis de ironia e de leveza, talvez de notas
imprevistas e esplêndidas!
O
valor das Cartas excede ainda, a
nosso ver, o das Memórias. Falam com
mais clareza, com despreocupação, com mais verdade. Rasgadas, deitariam sangue,
— como diria Emerson. São confessionários, tanta vez, de palavras profundas e
eternas. A alma, torva ou luminosa, fica ali em farrapos, no rescaldo das
lágrimas ou na asa crespa do riso. Valem a peso de ouro. Nas Memórias, como nos Diários, sobretudo de literatos, de artistas e políticos, ainda se
descortinam com frequência os homens a esconder-se, um ou outro autor a
espreitar... A história, os costumes, a vida enfim, nas suas mil facetas de
entremez e de tragédia, reflete-se na intimidade das Cartas como num espelho que ninguém foi embaciar. Mas não queremos
insistir no que, sobre o assunto, escrevemos a propósito de Garrett.
Cremos
que, em qualquer parte, tratando-se dum homem como Eça de Queirós, alguns volumes
de Cartas estariam publicados.
Verdade é que, por cá, raro há tempo de sobra para homenagens àqueles que são a
nossa mais legítima glória. As cartas de Herculano começaram a publicar-se
outro dia... Julgamos, contudo, haver prestado um serviço às Letras de
Portugal, se estas nossas palavras conseguirem salvar da dispersão e do
esquecimento as páginas deliciosas que hão de ser a correspondência particular
do grande romancista. Sem elas ficará incompleta a sua obra póstuma.
---
JÚLIO BRANDÃO
"Poetas e Prosadores: à margem dos
livros" (1920)
Pesquisa e adequação ortográfica: Iba
Mendes (2019)
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