As
peles
Uma
coisa horrível!
Produzira-se
um pequeno abalo de terra à hora matinal em que a cidade acorda, já começando a
movimentar-se a rua.
Todas
as tabernas estavam abertas, para a matadela do bicho, e já alguns marçanos,
sob a vigilância dos patrões, iam recolhendo os taipais e escancarando as
portas, no empenho de caçar o freguês adventício.
A
atmosfera, ligeiramente parda, tinha o aspecto banal das horas calmas, nos dias
bons de inverno, nem batida de ventos, nem carregada de nuvens. O mar, lá embaixo,
sereno, muito quieto, parecia dormir ainda, já a terra, afadigada, começava a
labutar, como nos outros dias.
Senão
quando, ouve se um ruído de trovão seco e prolongado; a terra estremece como
nas convulsões de uma catástrofe geológica, e desabam prédios em todo o
circuito da cidade, formando se em pontos diversos grandes montes de escombros,
saindo de alguns fumo e labaredas. Ouviam-se gritos lancinantes; gemidos que eram a tortura de
quem sofre, soterrado em vida. Havia lágrimas em todos os olhos; soluços em
todas as gargantas; dores cruciantes em todos os corações; farrapos de loucura
em todos os espíritos.
Passada
a hora do pânico, verificou-se que eram em grande número os mortos, que eram
sem conta os feridos, e as perdas materiais, de que ainda não podia fazer-se um
cálculo aproximado, deviam ser qualquer coisa de apavorante, gerando a miséria
negra em muitas dezenas de famílias.
Logo
que o telégrafo informou a Capital, do trágico sucesso, produziu-se um
movimento de piedade que avassalou todas as classes, desde as mais afortunadas
às mais desprotegidas.
Como
sempre acontece, em casos semelhantes, foram as mulheres quem mais duramente
sentiu os horrores daquele inferno, quem mais intensamente evocou os lances daquela
tragédia, visionando-a nos seus mínimos detalhes, só não os exagerando por não
ser isso possível.
D.
Fredegundes procurou três das suas amigas mais íntimas, e as quatro assentaram
em que se constituísse uma comissão que angariasse, por várias formas,
donativos para acudir aquela gente mísera. Vagamente pensaram num festival no
Jardim Zoológico, uma subscrição nacional, um peditório nas ruas de Lisboa, uma
quermesse no Terreiro do Paço e mais tarde, já na Primavera, uma corrida no
Campo Pequeno, à antiga portuguesa.
Expediram-se
convites, numerosos convites, devendo efetuar-se a reunião preparatória num dos
mais elegantes dancings de Lisboa.
Não
compareceram todas as pessoas convidadas, naturalmente, mandando algumas das
que não puderam comparecer a sua plena adesão às deliberações que fossem
tomadas, e palavras de incitamento para que se fizesse obra de estrondo.
Enquanto
D. Fredegundes não abria a sessão, como lhe competia-as ilustres damas
presentes entretinham se a falar de coisas substanciais — teatros, animatógrafos,
serões dançantes. Todas sumariamente vestidas, no rigor da moda, algumas
carregadas de joias caras — ricas pulseiras, ricos anéis, colares de pérolas
que deveriam ter custado alguns milhares de escudos... se fossem verdadeiras.
No ponto de vista artístico, algumas vezes o adorno falso vale mais que o
verdadeiro, e isso permite às madamas pouco afortunadas ombrearem, em
joalheria, comas fidalgas ou burguesas de fortuna à americana.
Dizia
uma, pernas cruzadas, a bola do joelho furando a meia de seda:
—
Os teatros estão ingrámaveis. As peças, em geral, não prestam a não ser uma ou
outra, traduzida, e os atores, quase sem exceção, mais parecem amadores, que
artistas de carreira,
Acrescentava
outra, acendendo um bout doré:
—
Mal por mal antes o animatógrafo. Se houvesse mais cuidado e bom gosto na
escolha das fitas, podiam fechar de vez os teatros, que não faziam falta.
Comenta
uma terceira:
—
Pois eu nem vou ao teatro nem frequento os animatógrafos. Uma chatice, tudo
isso! Desforro-me quando vou ao estrangeiro, pelo menos duas vezes por ano, uma
no inverno, outra no verão. E bem feitas as contas, gasta a gente menos,
andando lá por fora, uma temporada, que estando aqui metida. Este ano vamos à Itália,
mas de automóvel, e na volta demoramo-nos umas duas semanas na Suíça, que é, de
todos os países da Europa, como Natureza, o que eu acho mais interessante.
—
E uma visita à Rússia?...
—
Vira! Para a maior parte dos estrangeiros aquilo é o poço da má hora, quem lá
vai não torna.
—
O perigo é o maior encanto de certas viagens; o êxito crescente dos aviões,
como automóveis ou comboios do ar, é principalmente devido aos perigos de
viajar nas alturas. Eu gostava, muito de ir à Rússia, e se lá fosse, à certa
que não vinha de lá sem um fornecimento de peles para o resto da minha vida. País
de gelos, de neves eternas, deve lá haver peles magnificas e lindas.
—
Talvez; mas nenhuma de nós foi à Rússia, e nem por isso deixamos de usar peles
como as melhores que se usam em qualquer parte do mundo.
—
Nem tudo o que luz é ouro, e muitas peles que nos encantam os olhos, ricas de
cores bem combinadas, são o produto de uma indústria química, de cada vez mais
perfeita. Ainda ontem, no Ramiro, eu vi uma pele, que era um amor, uma pele
como ainda não vi outra em Lisboa.
—
Era pele de quê?
—
O Ramiro disse o nome do bicho, mas não me lembra.
—
Seria igual a esta minha? — perguntou D. Fúfia dos Remédios e Silva.
—
Não; esta é mais bonita. Como a outra ainda não vi nenhuma em Lisboa; mas como
esta não me lembro de ter visto alguma em Paris.
—
Pois foi de lá que esta veio. O nome do bicho não sei; é um nome muito
esquisito.
D.
Brígida Fragoso Compota de Marmelada, abrindo se num riso malicioso, fingindo
que examina a pele, declara secamente, como se atirasse uma bofetada:
—
Eu sei, porque tenho uma igual, que não uso — é pele de Tanso.
—
De Tanso! — exclamaram todas, assombradas pela revelação, porque nunca tinham
ouvido falar de semelhante animal como fornecedor de peles ricas.
Nestas
alturas entrou a Marquesa de Bergamota, velhita ainda fresca, muito rica, mas
sempre modesta no seu trajar, nem carregada de sedas, nem salpicada de joias,
temida na sociedade que frequentava, pela ironia acerada dos seus ditos.
—
A senhora marquesa é que vai dizer...
Informada
do objeto em controvérsia, envolvendo no mesmo olhar terno e malicioso D.
Brígida e D. Fúfia, a senhora Marquesa sentenciou:
—
Pois é pele de Tanso, não há dúvida.
E
acrescentou:
—
A grande maioria das peles que a gente por aí vê, um pouco por toda a parte,
são como esta — peles de Tanso.
—
Ó senhora Marquesa! É lá possível tanta variedade do mesmo animal!
—
O engano das meninas está em julgarem que o Tanso é um animal.
—
Então o que é, senhora Marquesa?
—
É... uma Categoria.
D.
Fredegundes declarou aberta a sessão, oferecendo a Presidência, por entre
aplausos calorosos da Assembleia, à excelentíssima senhora Marquesa, que a
assumiu jubilosamente, rindo-se lhe os olhitos maganos por detrás das lunetas
de vidros curvos.
---
Pesquisa, transcrição e adaptação ortográfica: Iba Mendes (2019)
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Sugestão, críticas e outras coisas...