As freiras de Lorvão(A
Antônio de Serpa Pimentel)
Meu amigo. — Escrevo-lhe do
fundo do estreito vale de Lorvão, defronte do mosteiro onde repousam as filhas
de Sancho I; deste mosteiro melancólico e mal-assombrado como as montanhas
abruptas que o rodeiam por todos os lados: escrevo-lhe com o coração apertado
de dó e repassado de indignação. Descendo a examinar o arquivo das pobres
cistercienses, penetrei no claustro por ordem da autoridade eclesiástica. Lá
dentro, nesses corredores úmidos e sombrios, vi passar ao pé de mim muitos
vultos, cujas faces eram pálidas, cujos cabelos eram brancos. Esses cabelos nem
todos os destingiu o decurso dos anos: a amargura embranqueceu os mais deles.
Quase todas essas faces tem-nas empalidecido a fome. Morrem aqui lentamente
umas poucas de mulheres, fechadas numa tumba de pedra e ferro. Estas mulheres
ouvem de lá, do seu túmulo, o ruído do burgo apinhado na encosta fronteira, e
dividido do mosteiro apenas por um riacho. Naquelas casas de telha-vã, negras, gretadas,
desaprumadas, com o aspecto miserável da maior parte das aldeias da Beira, vive
uma população laboriosa, que até certo ponto se pode chamar abastada, e a que,
pelo menos, não falta o pão nem a alegria. No mosteiro suntuoso, vasto,
alvejante, com um aspecto exterior quase indicando opulência, é que não há pão,
mas só lágrimas. Lorvão é pior do que um carneiro onde se houvessem metido
vinte esquifes de catalépticos, selando-se para sempre a lájea da entrada. O cataléptico,
fechado no seu caixão, ouve, sente, tem a consciência de que foi sepultado
vivo. Nas trevas e na imobilidade, o terror, a desesperação, a falta de ar
matam-no em breve: a sua agonia é tremenda, mas não é longa. Aqui é outra
coisa: aqui vê-se, por entre as grades de ferro, a luz do céu, a árvore que dá
os frutos, a seara que dá o pão, e tudo isto vê-se para se ter mais fome. Todos
os dias uma esperança duvidosa e fugitiva atravessa aquelas grades de envolta
com os primeiros raios do sol: todos os dias essa esperança fica sumida debaixo
das trevas que à tarde se precipitam sobre Lorvão das ladeiras do poente.
Depois as noites de insônia; depois o choro; depois, sabe Deus se a blasfêmia!
Dez vezes que tenhamos lido
o Dante, ao chegarmos à descrição da torre de Ugolino erriçam-se-nos sempre os
cabelos. Mas Lorvão é uma torre de Ugolino. A diferença está em que no cárcere
da Divina Comedia havia um
homem forte de alma e de corpo, afeito à dor e às cenas de dor: aqui há dezoito
ou vinte mulheres na idade decadente, que se afizeram na juventude aos cômodos,
aos regalos, e até ao luxo compatível com as condições da vida monástica. Lá
o fiero pasto acabava, e
depois morria-se rápido. Aqui não: aqui há justamente quanto basta para
prolongar por meses e por anos o martírio. Dir-se-ia que existe uma providência
infernal para que não falte às freiras de Lorvão o restritamente indispensável
para, lento e lento, se lhes irem os membros mirrando num longo expirar, débeis
e senis.
Imagine, meu amigo, uma
noite de inverno, no fundo desta espécie de poço perdido no meio da turba de
montes que o rodeiam: imagine dezoito ou vinte mulheres idosas, metidas entre
quatro paredes úmidas e regeladas, sem agasalho, sem lume para se aquecerem,
sem pão para se alimentarem, sem energia na alma, e sem forças no corpo, comparando
o passado, sentindo o presente e antevendo o futuro. Imagine o vento que ruge,
a chuva ou a neve fustigando as poucas vidraças que ainda restam no edifício;
imagine essas orgias tempestuosas da natureza que passam por cima das lágrimas
silenciosas das pobres cistercienses, e as horas eternas que batem na torre.
Imagine tudo isto, e sentirá acender-se-lhe no ânimo uma indignação
reconcentrada e inflexível.
Há poucos dias passou-se em
Lorvão uma cena tremenda. Num acesso de desesperação, parte destas desgraçadas
queriam tumultuariamente romper a clausura; queriam ir pedir pão pelas
cercanias. Custou muito contê-las. Tinha-se apoderado delas uma grande ambição;
aspiravam à felicidade do mendigo, que pode apelar para a compaixão humana; que
pode fazer-se escutar de porta em porta. Era uma vantagem enorme que obtinham.
A sua voz é demasiado fraca, e os muros de Lorvão demasiado espessos. Gemidos,
brados, prantos, tudo é devorado por esse túmulo de vivos. Ao menos, surgiam
como Lázaro da sua sepultura.
Gemidos, brados, prantos,
nada disso chega aos ouvidos dos homens que exercem o poder nesta terra; nada
disso os incômoda. Entretanto, se eu falasse com eles, dar-lhes-ia um conselho.
Talvez o ouvissem, porque a minha voz é um pouco mais forte que a das velhas
freiras. Era o de enviarem aqui sessenta soldados, formarem as monjas de Lorvão
em linha no adro da igreja e mandarem-lhes dar três descargas cerradas.
Desaparecia, a troco de poucos arráteis de pólvora, um grande escândalo, e
resolvia-se afirmativamente um problema a que nunca achei senão soluções
negativas, o da utilidade da força armada neste país.
Sim, isto era útil, porque
era atroz; porque era uma festa de canibais; porque se gravava na mente dos
homens; porque ficava na história, como um padrão maldito, para instaurar no
futuro o processo desta geração. Mas não era infame, não era covarde; não era o
assassínio lento, obscuro, atraiçoado, feito com a mordaça na boca das vítimas.
Corria o sangue durante alguns minutos: não corria o suor da agonia durante
anos. Era uma cena de delírio revolucionário; mas não era um capítulo inédito
para ajuntar aos anais tenebrosos do santo ofício.
A história recente de
Lorvão é simples. Os bens acumulados naquele cenóbio durante dez séculos
tinham-no tornado demasiadamente rico. A sua renda anual dizem que orçava por
mais de oitenta mil cruzados. Como mosteiro cisterciense, Lorvão dependia dos
monges brancos. Cem freiras de que se compunha a comunidade, e que viviam
opulentamente, gastavam muito, mas não gastavam tudo. Cinco frades bernardos,
aposentados num palacete contíguo ao mosteiro, consumiam o resto. Eram eles que
administravam as grossas rendas da casa. Os banquetes e as festas sucediam-se
ali sem interrupção. Os hóspedes eram contínuos. O manto da religião cobria
todos os excessos da opulência. A crônica dos bernardos em Lorvão subministra
mais de um capítulo curioso para a história dos bons tempos que já lá vão.
Até aqui nada há estranho.
Mas os frades entenderam que deviam comer a renda e o capital das cenobitas
laurbanenses. Refere-se que certa vez, não sabendo explicar plausivelmente o dispêndio
de uma verba de 600$000 réis, escreveram numas contas irrisórias que mostravam
anualmente à abadessa: Palitos
—600$000 réis. Pode ser fábula. O que, porém, não é fábula é que durante
muitos anos o dinheiro das décimas que o mosteiro devia pagar esqueceu em
Alcobaça, dando-se em conta como pago. Por outro lado as necessidades da casa tinham feito
com que suas reverências empenhassem a comunidade em 6:000$000 ou 8:000$000
réis. Os juros desta dívida também se não pagaram. Veio o ano de 1833.
Desapareceram os dízimos, principal rendimento do mosteiro. Os direitos
senhoriais desapareceram também. Os frades, enxotados do seu feudo de Lorvão, saíram
dali, mandando primeiramente derribar todas as árvores que povoavam aquelas
encostas e vendendo as madeiras. Era o último vale que davam a suas irmãs. Ainda assim, ficava às monjas uma
honesta subsistência. Passado, porém, apenas um ano, o fisco arrebatou-lhes
quase tudo pela dívida de 25 contos de réis de décimas, e os credores
particulares levaram-lhes depois os demais bens. Restavam-lhes apenas alguns
pequenos foros espalhados por diversos distritos, os quais geralmente lhes são
recusados, ou cuja difícil cobrança quase consome o produto deles. Vacilantes
entre a vida e a morte, as freiras de Lorvão prolongam uma existência de dor e
miséria pendente das eventualidades desse tênue rendimento. Há um ou dois anos,
o governo deu-lhes a esmola de um subsidio: este subsidio, porém, cessou.
Ignora-se o motivo. Por ventura alguma secretaria de estado precisava de novos
estofos nas suas cômodas poltronas, ou os felpudos tapetes das salas
ministeriais tinham perdido o brilho das suas cores variegadas, e cumpria
renová-los. São despesas inevitáveis, e é necessária a economia. Se assim foi,
respeitemos as exigências imperiosas da dignidade governativa. Alta noite,
durante o inverno, vinte mulheres curvadas pela inedia e pela velhice podem
dirigir-se ao coro, calcando quase descalças as lájeas úmidas e frias destes
claustros solitários; mas as botas envernizadas de suas excelências devem
ranger molemente sobre um pavimento suave, e as suas cabeças, afogueadas pelas
profundas cogitações, reclinarem-se em fofos espaldares. Todavia a majestade das
secretarias e os ápices da economia não excluem a tolerância, nem a
indulgência. Faço essa justiça ao poder. Quando a última freira de Lorvão
expirar de miséria, ou debaixo de alguma dessas paredes interiores do mosteiro
que ameaçam desabar, os ministros sofreram com ânimo paternal que mãos piedosas
vão lançar o cadáver da pobre monja no ossuário de sete séculos, onde repousam
as cinzas de milhares de suas irmãs. Depois venderam o edifício e acerca a
algum destes judeus do século XIX, a que chamamos agiotas, se algum houver a
quem passe pelo espírito ter uma casa de campo em Lorvão.
Meu amigo: se a indignação
consentisse o riso, se não se tratasse de uma questão grave e triste, eu riria
do afã da imprensa em ventilar os meios de acudir à desgraçada ilha da Madeira.
O remédio há de ser o abandono. Quando vejo a facilidade com que a sorte das
freiras de Portugal se tornaria feliz, e considero o estado de Lorvão, de
Celas, e de tantos outros mosteiros, como hei de esperar que remedeiem um mal
cuja cura é mil vezes mais difícil?
Na secretaria da justiça
encontram-se as provas de que a renda dos bens que ainda possuem os conventos
do sexo feminino em Portugal excede a 200:000$000 réis, e todavia há centenares
de freiras que morrem à míngua. São dois fatos que não carecem de comentário. É
a manifestação mais eloquente de que não há governo nesta terra. Existem
mosteiros, cujas habitadoras vivem na opulência, e onde o supérfluo se
desbarata de um modo escandaloso. Não digo quais. E para que apontá-los? Aposto
meia moeda, uma moeda até, contra mil ações da companhia Hislop, que se
lembravam logo de reduzir esses mosteiros à mendicidade para fazerem com o
rendimento deles sessenta coronéis e duas secretarias de estado novas. Antes
assim como está. Defendiam-nos mais, e administravam-nos mais. Deus nos livre
disso!
É certo, porém, que para as
freiras de Lorvão viverem tranquilamente os seus últimos dias, bastava que nos
homens do poder tivesse existido um leve instinto de equidade. Os frades de
Alcobaça roubaram 25:000$000 réis a Lorvão. Eram responsáveis por eles. A sua
responsabilidade passou para o fisco seu herdeiro e sucessor. As décimas de
Lorvão deviam ir buscar-se aos bens de Alcobaça, logo que se provasse que
Alcobaça espoliara fraudulentamente Lorvão. Averiguou-se o fato? Não. O fisco
executou as freiras, e recebeu duas vezes a mesma dívida. Onde houvesse
moralidade na administração pública praticava-se isto?
Mas porque o importuno com
esta larga história? Não é, meu amigo, só para desabafo: é para lhe pedir um
favor. Suponha que viu, como eu vi, as faces enrugadas e pálidas das monjas de
Lorvão, por onde as lágrimas se penduravam quatro a quatro, enquanto vozes
convulsas descreviam cenas do longo drama de miséria de que este sepulcro de
vivos tem sido teatro durante vinte anos: suponha que olhava para estas janelas
mal reparadas, para estas paredes verdoengas, cujo aspecto produz um sentimento
inexplicável de frio, apesar do calor da atmosfera num dia de julho; para as
alfaias roçadas e puídas; para os próprios trajos das freiras; que lia em tudo
isso, repetida por cem modos, uma palavra só: infortúnio, infortúnio, infortúnio! Que fazia? Com o seu coração,
com os seus princípios, e redator de um jornal que tem largas simpatias,
sentia-se grande e forte pondo a sua pena eloquente ao serviço da desgraça e da
fraqueza. Faça-o, meu amigo; faça-o! Peça esmola para as freiras de Lorvão, que
foram ricas e felizes na mocidade, e que na velhice tem fome. A velhice é
santa! Ponha esse contraste do passado e do presente perante os olhos dos
opulentos e ditosos, para que se lembrem com alguns cruzados das pobres que
gemem debaixo destas abóbadas escondidas no meio dos montes ladeirentos e
agrestes do concelho de Penacova. Ao governo não peça nem diga nada; deixe
esses homens ao seu destino; deixe-os estofar poltronas e dormir nelas. Deus e
os vindouros hão de julgar-nos a todos.
Se entender que esta carta
de uma testemunha ocular pode servir de tema às suas considerações, publique-a.
O homem que vê o que eu vi e abafa no peito o grito da indignação ou é um
malvado ou um covarde, e eu espero não merecer jamais nenhum desses títulos.
Imprima esta carta no todo ou em parte, se quiser; porque folgarei com isso. O
que importa é ver se obtemos despertar a compaixão publica a favor destas
infelizes.
Autorizando-o, porém, a
publicar as ideias que me assaltaram ao presenciar o espetáculo atroz e
repugnante que está diante de mim, advirta que não há nisso nem virtude, nem audácia.
Incomodam-me mediocremente as cóleras de certa gente, e a malevolência ou antes
o ódio dela é título que aprecio, porque creio que há de honrar perante a
posteridade quem quer que o possuir, se é que este país não caminha fatal e
irremediavelmente à dissolução social.
---
ALEXANDRE HERCULANO
Escrito em 1853, e publicado
em: Opúsculos, 1909.
Pesquisa e adequação
ortográfica: Iba Mendes (2019).
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