Publicado
na Europa o livro Suspiros Poéticos,
Magalhães volta ao Brasil, desembarcando no Rio de Janeiro a 14 de maio de 1837.
Ao
que dizem, a frase que lhe assoma aos lábios, ao entrar na baía de Guanabara e
diante de maravilhas tamanhas, é esta exclamação desdenhosa: "Ó terra de
ignorantes!" Parece tratar-se de invencionice fabricada para malquistá-lo
com os compatriotas. Ao invés do que se propala, Magalhães dá mostras, em
versos inflamados, de quanto se julga venturoso em rever
O pétreo gigante majestoso
Sobre as cerúleas ondas ressupino...
Do golfo ingente, que do mundo as naves
Todas pode conter no âmbito imenso;
e
o sol dos trópicos que refulge ainda
Nestes climas
Da Providência esmero
Onde se apraz a amiga liberdade
Tão grata aos corações americanos;
e
a terra em que nasceu:
Se em ti não venho achar da Europa o
fausto...
Também não acharei suas misérias
Maiores que seu brilho.
Desembarca,
e é recebido como um triunfador pelos contemporâneos.
Assim
estimulado, recomeça imediatamente a atividade literária.
Em
fins de 1837, ou começos do ano imediato, escreve para João Caetano dos Santos
a tragédia Antônio José ou o Poeta e a
Inquisição. É a primeira obra desse gênero que empreende. Não há contar, de
fato, o "elogio dramático em aplauso do dia aniversário da Independência,
representado no teatro particular da Rua dos Arcos em 7 de setembro de
1831", alegoria detestável, em que o Brasil, a Liberdade, o Fado e o Coro
das Províncias se entregam a copioso intercâmbio de sensaborias, à sombra de
"aprazível bosque as margens do Rio de Janeiro".
A
tragédia vai á cena em 13 de março de 1838, no Teatro da Praça da Constituição,
conhecido também por Teatro Constitucional Fluminense. João Caetano desempenha
o papel do protagonista; Estela Sezefredo, o de Mariana; Costa, o de frei Gil; Amaral,
o de Conde de Ericeira.
Noite
memorável. A sala, repleta e vibrante: "em todas as dependências do teatro
(notícia o Jornal do Comércio na
edição de 21 de março), o público se apinhava ardoroso e exaltado, como se
tivesse consciência do momento histórico". O êxito, formidável: o autor se
recordaria mais tarde, com desvanecimento, dos elogios e aplausos conquistados
pela tragédia, e especialmente pelo quinto ato, nas repetidas vezes em que
subiu à cena.
Justificam-se
as aclamações da plateia carioca e a ufania de Magalhães. Não pelo que vale Antônio José, mas pelo que representa.
O
que representa, disse-o muito bem José Veríssimo. Refervem ainda as esperanças
e ilusões suscitadas pela Independência, que data apenas de quinze anos. É
nessa atmosfera abrasada pelo patriotismo que se desenrola este espetáculo
inédito: atores brasileiros ou abrasileirados interpretam em um teatro
brasileiro a produção de um brasileiro, que se destina a evocar a figura de
outro brasileiro martirizado pela metrópole. Naturalíssima a repercussão que
tem na alma do povo essa primeira tentativa de nacionalização do teatro.
O
que vale é, em verdade, muito pouco.
Magalhães,
que dera um passo à frente com os Suspiros
Poéticos, recua acintemente para o passado com o Antônio José. A fim de tornar bem manifesto o seu divórcio da
corrente literária, a que se filiara durante a estadia na Europa, não escreve
um drama histórico à mania dos românticos, com as suas paixões descabeladas, os
seus lances violentos, a sua preocupação da cor local e do pormenor pitoresco;
nem um melodrama consoante a receita de Pixérecourt e Ducange, rápido na ação, violento
e pueril nos processos, e moral no desenlace, que é o triunfo inevitável da
virtude. Não: em vez de escolher uma dessas fórmulas teatrais, que são as do tempo
em que vive, Magalhães mergulha no passado e volta de lá com uma tragédia em
cinco atos. Não lhe consente o engenho tomar por modelo qualquer das obras-primas
da idade áurea. Inspira-se nos frutos abortícios da decadência. De modo que Antônio José encerra todos os defeitos
do gênero, e nenhuma de suas belezas.
Justíssima,
a crítica de Sílvio Romero: obra incolor, sem vida, sem ação. A fabulação?
Pueril. As personagens? Tudo quanto há de mais falso. O estilo? Tudo quanto há
de mais empolado, cerimonioso, retórico. O verso? Tudo quanto há de mais
prosaico, lembrando, a cada instante, o dito de Rivarol: c'est là de la prose, ou des vers se sont mis.
Desse
juízo, que é o dos críticos, poderia o autor apelar para o das multidões.
Alguma coisa ficou, na memória coletiva, da versalhada de Antônio José. Há ainda quem proclame: "Nasce de cima a
corrupção dos povos..." Existe ainda quem diga sentenciosamente:
"Poetas por poetas sejam lidos, poetas por poetas entendidos". A glória
é isso mesmo, afinal de contas: uma palavra, uma atitude, um gesto, que
sobrevivem.
Reincidindo
no pecado, Magalhães comete, logo depois, nova tragédia em cinco atos. Olgiato é representado a 7 de setembro
de 1839, por ocasião da reabertura do Teatro São Pedro de Alcântara, em que se
transforma o Teatro Constitucional Fluminense. Nem João Caetano, nem Estela
Sezefredo figuram entre os intérpretes. Cedem a autores secundários os papéis
que lhes destinara o autor.
Parece
não ter sido dos maiores o êxito da peça. Em Olgiato sobram os vícios literários de Antônio José. O enredo está fora do plano da realidade, e também pela
pobreza de invenção, abaixo do plano da poesia. As personagens são meras
abstrações. A linguagem insossa, quando não pretensiosa. O que salva a obra anterior
é a circunstância de versar assunto nacional. Nem essa atenuante se pode
invocar a favor de Olgiato, que se
vai abeberar num episódio minúsculo da história de Milão.
Coisa
diferente não temos o direito de esperar de quem se revela, em matéria de arte,
escravo de preconceitos infantis. "Se eu introduzisse Galeazzo em
cena", diz ele, "ver-me-ia forçado a dar-lhe o seu torpe e infame
caráter; o que, além de vexar o ator que o interpretasse, incomodaria os
espectadores e vexaria a moral pública... Que jogo de cena poderia haver com um
tigre que ia direito ao crime, de que alardeara?.... E quereriam os apaixonados
da realidade vê-lo assim em cena?" Sem comentários.
A
seguir, Magalhães traduz Otelo, a
pedido de João Caetano, que representa em sua festa artística a tragédia. Não a
produção de Shakespeare; mas a ignóbil adaptação de Ducis, em que Desdêmona
aparece desfigurada em Hedelmonda, e, de vergonha, lago se esconde sob a
máscara de Pésaro...
Além
dessa, Magalhães trasladou para o vernáculo outras produções teatrais, de que
não há notícia precisa. Diz ele, com efeito, haver excluído da edição de suas
tragédias "outras menos aceitas".
---
ALCÂNTARA MACHADO
ALCÂNTARA MACHADO
"Gonçalves de Magalhães ou o
romântico arrependido" (1936)
Pesquisa e adequação ortográfica: Iba
Mendes (2019)
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