Bendigamos
o amor que foi tão curto,
O
sonho vago que expirou tão cedo,
Soçobrado
no porto antes do surto!
Feliz
o idílio que não teve história!
Salvando-nos
do tédio, o nosso medo
Foi
uma porta de ouro para a glória!
Olavo Bilac – “Tarde”
— Hoje, sinto a volúpia imensa de
rememorar somente as grandes desilusões que tive na vida; que volúpia rascante,
não achas?... Ao longe, na fímbria do horizonte, as montanhas se esfumavam
suavemente, nas tonalidades imprecisas da púrpura do crepúsculo...
E Armando, com toda a magnificência
vesperal dentro da alma, continuou:
— Eu pensei que a sua alma fosse um
espelho, onde a minha, devastada, pudesse refletir-se e refazer nela todos os
estragos do passado... Mas, encontrei uma alma mais devastada do que a minha.
— Quem é essa criatura tão enigmática?
— Marta era o seu nome, verdadeiro ou
não; nunca lhe descobri outro, mesmo porque esse me era tão agradável que não
quis ir mais além...
Encontramos-nos numa tarde de outono
em Florença, num parque todo afestoado de flores cheias de tédio.
E ali, sob a tepidez do crepúsculo,
fui acometido de um arroubo estuante por essa mulher: fascinou-me a sua cabeça,
onde dois outonos se fundiam maravilhosamente...
Silenciosamente, como duas sombras que
se beijam numa penumbra, as nossas almas se entrelaçam.
— Quanto tempo durou essa união, pouco
importa sabê-lo! Sei somente que não achei nesse amor a chama comburente que me
queimasse, a enormidade que me absorvesse! E por isso, separamos-nos num
silêncio igual ao que nos uniu...
— Pensei de encontrar uma alma
intacta, um coração vibrante; puro engano! Ela havia amado tanto, que as
experiências a haviam crestado!
Às vezes, nos momentos de febre, ela
estreitava violentamente a minha cabeça entre seus braços, e dizia-me, em
surdina, ao ouvido, com a sua voz que era um misto de ternura e revolta: —
Chama-me a tua esperança, a tua ânsia, o teu sonho, a tua imagem longínqua!...
E eu, com a alma diminuída, os nervos lassos, o sangue entibiado, somente
queria chamá-la, aos gritos, minha desilusão! Meu veneno!...
E assim passávamos horas e horas,
fingindo um afeto postiço: ela procurando surpreender em meus olhos a futura
confirmação do seu amor; eu procurando nos seus um vestígio que me falasse dos
seus amores passados...
Numa tarde como esta, em que
perpassava pelo espaço uma languidez de abandono, sem nenhuma surpresa para
nós, caiu o cenário sobre a nossa comédia sentimental, ficando eu do lado da
plateia, tendo a impressão de ouvir uma surriada que me apupava e ela do outro
lado das gambiarras, talvez serena. A despedida foi dolorosa, mas não triste...
Ah! A dolorosa sensação de ver um
sonho ruir, quando já o tínhamos integralizado na introspectividade dos nossos
nervos!...
— Não te lamentes, Armando, sê forte!
Na terra há tantas mulheres para o teu desejo, quantas estrelas há no céu para
o teu sonho!
— Banir a lembrança de uma paixão
ardente é mais forte do que substituí-la por outra! Como a superfície dos lagos
que somente refletem imagens quando estão desondulados e serenos, assim são os
nossos nervos; somente recebem novas sensações quando expira o frêmito das
últimas vibrações... A vida não se repete com os mesmos encantos: uma esperança
que nasce, uma ilusão que morre, uma ânsia estrangulada, um desejo que se
estiola recalcado no labirinto dos nervos! Eis tudo!
— E ao cabo de tudo, ficamos à margem
da vida, com um ressábio de angústia dentro da alma, a rememorar todos os
fracassos da nossa existência afetiva.
— Tens, acaso, saudades dessa mulher?
— Não! O que tenho é uma grata
lembrança, por ter ela provocado em mim duas profundas emoções!
— A primeira, quando veio, ebriante,
rugidora, dionisíaca, — escravizou-me —, ilusão esplêndida! A segunda, quando
partiu, silenciosa, fria, indiferente, — libertou-me, — desilusão sublime!...
As primeiras estrelas começavam a
tremeluzir no céu cor de hortênsia, como rútilas pupilas de animais felinos,
que lá do alto, ansiosos, esperassem a noite para melhor brilhar.
E Armando, como se tivesse a sua
alegria prisioneira entre baças muralhas de tédio, fumava, tão absorto, que eu
tinha a impressão de que ele não dialogava comigo, monologava consigo mesmo.
— Marta! Amargurada e alegre criatura:
— em vez de remoçar a alma com a essência de cada novo amor, a cada novo amor
mais ela se estarrecia, mais ela se mutilava interiormente! O seu outono
exterior ocultava um inverno...
Quando todas as mulheres têm nessa
idade o sabor hidromelino do fruto sazonado, ela tinha o sabor amargo do fruto
seco, que, amaldiçoado pela natureza, amadurece antes do tempo!
A sua alma era um abismo cheio de
esperanças mortas, ilusões truncadas, desejos pulverizados...
Todas as perfídias, todos os cinismos
elegantes e brutais dos seus amantes passados, formavam dentro de sua alma uma
lousa, onde estava escrito:
— Oh
passante, aqui jaz uma alma morta, atormentando um corpo que quer viver!
— Já entraste, às escuras, numa
catedral cujos vitrais das rosáceas, partidos pela cólera sacrílega do vento,
cobrissem o solo, como um tapete pintalgado, e iludido por essas cores
fascinantes, sangrasses as mãos e os joelhos no embevecimento da prece?
— Pois bem, comigo se deu a mesma
coisa; entrei naquela alma de um grande passado de aventuras, que era um abismo
atupido de vitrais partidos e cegamente feri a minha alma!...
Ah! As mulheres! As mulheres todas têm
um abismo inconsciente, uma miragem nos seus desertos interiores que sempre nos
engana...
Revista
"A Cigarra", 1 de agosto de 1919.
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