E a obsessão não o deixava.
– Sim, como as mais!
Ah! ele vinha suficientemente batido
dessas plagas! Nenhum amor tal qual o que se desejava, nenhuma mulher
absolutamente leal. E nisso nada havia de estranho. O que apenas nos cumpria
fazer era conservar-mo-nos sempre livres, para do alto da nossa serenidade as
podermos perdoar.
Ela, no entanto, enlaçava-o no seu
corpo de virgem, queimava-o com a boca de apaixonada, de tal modo que, fosse ao
próprio mármore que abraçasse, no mármore intumescer-se-iam veias, nas veias
correria sangue, e a pedra ficaria animada.
– Ah! por que não me amas? dizia com
soluços na voz.
– Mas se eu te amo tanto!
– Não! ela sabia que não. Este
movimento instintivo de repulsa, por mais que se queira aderência, quando a
alma não nos acompanha na ação, ela instintivamente o percebia.
No entanto, que maldade era aquela?
Que outro sacrifício ele pudera pedir além desses a que ela se entregara, tudo
por aquele amor louco, que decidira para sempre de sua sorte? Os sacrifícios
cessaram quando ele os achou suficientes. Ela vivia ainda porque ele não lhe
pedira a vida, mas se no seu coração não existia amor, se nunca poderia
existir, porque ele não lhe dera a felicidade de exigir-lhe aquela prova
suprema antes que ela reconhecesse o medonho real?!
Contudo, meu Deus, ela o sabia tão
honesto e fidalgo! Pois uma alma como a dele, alevantada e grande, uma alma
como ela ainda não vira outra sobre a terra,
acharia
justo acordar da paz o pobre espírito de uma virgem, e arrastá-la consigo
friamente, pelo simples capricho de vê-la prostrada a seus pés?!
Mas que loucura era essa? Condená-lo!
Ele não arrastara a ninguém. Fora ela que o chamara e se interpusera no seu
caminho sereno. E o que mais desejava? Pois não estava a seu lado, não podia
agora ser para sempre sua escrava, feliz em sofrer todas as humilhações que dele
viessem, porventura?
E aquele corpo de virgem tremia no
ardor daquela loucura que lhe ia pelo sangue todo!
– Dize, por que não me amas?!
– Eu te amo tanto!
Sim, como as mais, refletia. Pois
era possível que ele, ele! caísse ainda no abismo que lhe criasse uma mulher?!
Não tinham sido os seus amargos sofrimentos
apenas. Há que tempos se lhe haviam esclarecido os olhos. E então que infinita
imbecilidade ele achara nos homens! Quantas vezes não sorrira do ar tranquilo
de um venturoso amante, a que ele próprio fizera a traição! E agora voltaria
para essa ridícula fileira dos que creem, e viria a ser o brinco, o objeto de
lástima ou de irrisão dos poucos sensatos que existem no mundo?!
Verdade era que desde que
insensivelmente ele fora entrando por essa vida fútil das conquistas, a qual
acabara por amortecer-lhe inteiramente a fé, nunca mais sentira um legítimo
prazer por todo aquele caminho. Remorso e tédio!
Agora, por exemplo, ali tinha, junto
a si, aquela criatura que, na necessidade de dar curso à paixão que lhe nascia
do sangue moço, prendia-se a ele, exigindo por força um tributo, querendo a
todo transe escravizá-lo. Relutasse ele pela liberdade e ali estava aquela
mulher amanhã odiando-o mais do que hoje dizia amá-lo, sem nunca poder compreendê-lo.
E não era só isso: aí estava ela perdida para essa sociedade hipócrita e má. Ele
fizera de sedutor ignóbil.
O quanto, pois, lhe custavam aqueles
beijos, que lhe pareciam, não obstante, de uma frialdade de beijos de morto,
porque não acendiam o seu sangue, não lhe traziam a loucura e a cegueira, que o
deixassem adormecer de amor!
Ah!... que raiva contra si próprio!...
Como era fútil ainda aquele seu espírito? Não há duvida que ele era o culpado.
Reconhecer o vácuo que havia naquilo, querer ser livre, e, no entanto, não se
poder ainda furtar a esse vício baixo das estúpidas conquistas, ele, o eunuco psíquico,
o impotente pelo coração, parecendo-se com esses velhos libidinosos, de olhar acendido
quando a força já está extinta!
Ele não devia conhecer a vida,
porque não nascera para as lutas deste mundo. Que bom se fosse como todos esses
outros!
Não, concedia, não é que houvesse neles
menos perspicácia. Mas é que não sentiam tão imperiosa esta necessidade de
infinito, de absoluto, – infinito no amor, infinito na bondade, virtudes
infinitas –, que ele sentia consigo. Esta era a sua enfermidade.
Enfermidade, sem! Eles é que eram os
sadios. Tomavam a vida pelo seu lado melhor. "Mulheres, sois fracas? Temos
pena de vós. Vos cercamos dos nossos cuidados, vos protegemos, nós os amantes
com uma solicitude e uma vigilância paternais. Ah! nós sabemos que si não
formos nós mesmos a desviar-vos do abismo, caireis, inevitavelmente. Ou já caístes
nele porventura? Mas essa não é razão para vos abandonarmos com um injurioso
desprezo para sempre. A vossa fraqueza orna-se de tantas virtudes! Entes
pequenos, como sois grandes diante de nós! Sem o vosso amparo, de vós, as
amparadas, o que havíamos de ser nós, os vossos protetores?" Pensavam
assim. Não os condenava, porque eles é que estavam com a razão.
Mas por que essa ideia? Já não era
aquele um sinal da vitória dela, – de mais esta! – sobre ele?
– Ama-me! Ama-me! Por que não me
amas?
– Mas que maior amor tu queres?
– Ama-me! O que te falta? Eu sou tão
moça! Tu não sabes? Ah! sabes muito bem, eu nunca fui de outro. Acordei da
infância, fiz-me mulher para te amar. Eu nada sou, bem sei, diante de ti, mas
ao menos tenho um coração muito bom. Desde criança eu fui tão feroz nas minhas
paixões de menina, queria tão seriamente minha pobre mãe, que é morta, meus
irmãos, que eram quase meus filhos, as flores que eu plantava, tudo a que eu
dava um carinho e que me estava em redor, que muitas vezes vi minha mãe chorando,
a beijar-me, com pena de mim. Pois bem, tudo isso lá se foi, meu coração
cresceu, e agora só a ti pertence. Não sabes? eu sou moça, sou formosa, e estou
nos teus braços! Ama-me! ama-me!
E os seus beijos tão fundos faziam
círculos de fogo pelo corpo do amado.
Mas – nunca! nunca! – ele pensava.
Beijos tais lhe pareciam de morto, porque, ele o estava vendo, não acendiam o
seu sangue, não lhe traziam loucura nem cegueira para adormecê-lo no amor.
Contudo, não era bem assim como se
esforçava por ver. O orgulhoso estoico tremia, querendo fazer calma por todo o
seu ser. E, como ondas que andam sob outras ondas, debaixo daqueles pensamentos
frios tumultuava um mundo de outros pensamentos de ordem diversa. O bom, o
moço, o humano também falava.
– Mas por que, – ouvia-se lá no
fundo, – por que excluir-me assim, a todo transe, dos prazeres da vida? Pois o
que está na ordem natural nós podemos torcer? Onde se viu mocidade sem amor, e
onde se viu um amor que não seja igual aos outros amores? Depois, esta não é
como as mais, acrescentava embriagado e cego. E este não será como os outros!
Ah! o nosso amor será infinito! O nosso amor, porque, – para que eu hei de negá-lo?
Eu amo-a! amo-a!
E era verdade. Ele não representava
o tipo cético e árido que acreditava ser. Ele era bom e nobre. Se andara em
busca de conquistas fora por necessidade de afeto, e si arrastava essa moça àquele
amor é que, sem saber, primeiro fora arrastado por ele.
No entanto, ia pensando:
– Nunca! nunca!
Mas se ouvia, ao mesmo tempo, lá no
fundo:
– Ah! eu não me iludi! Acompanhei
seus passos desde a infância. O que ela diz verdade. Eu vi aquele coração ir
crescendo no seu lar honesto como uma arvore de saborosos pomos, sob um clima
fino e propício, em terreno limpo e cuidado. E agora que os frutos pendem numa
cheirosa sazão, a mim é que se oferecem, implorando-me para que os colha!
E uma vez que ela murmurava com um irresistível
choro na voz:
– Ama-me! ama-me!
– Pois bem, ele soluçou com a boca
na sua boca, eu amo-te, amo-te muito! Foi quando ela reconheceu, numa delícia
celeste, que ele lhe tinha amor!
Aquele beijo era diferente dos
outros. E vinha com um aperto no sabor tão particular que trouxe à memória dela
um fato remoto. Ela recordou-se de outro beijo com este gosto que uma vez aquele
rapaz a que ela criou tanta raiva lhe havia dado no caminho, apertando-a num
abraço de estrangular.
E, cheia de uma delícia celeste,
pensando sem querer naquele beijo ruim que recebera do outro, a quem, ignorava
por que, há tanto tempo não via, ela adormeceu aos poucos nos braços do seu
amor.
Ele, no entanto, agora, apertava
aquele corpinho nos braços, perdido o orgulho, renascendo-lhe toda a fé, bêbedo
e cego, no estado de um homem perfeitamente feliz...
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Nestor Victor dos Santos (1868-1932)
Pesquisa, transcrição e adaptação ortográfica: Iba Mendes (2019)
Nestor Victor dos Santos (1868-1932)
Pesquisa, transcrição e adaptação ortográfica: Iba Mendes (2019)
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