O Brás, durante o dia, é um verdadeiro
poema homérico de atividade e trabalho.
a ânsia em marcha, desabusada e
audaciosa. É a luta em assomo febril de indômita avançada, penetrando,
dominando todas as esferas da vida. O esforço aguerrido pela fúria de
enriquecer multiplica-se de mil modos, toma aspectos e proporções espantosas,
criando iniciativas, tramando expedientes, urdindo invenções, inventando meios
que o conduzam ao triunfo monetário.
Ressumbra, paradoxalmente, uma ânsia
titânica, em todas as latitudes, de ganhar dinheiro! A inércia e a ociosidade,
segundo certos moralistas esquisitos da China, é que aproximam o homem da
perfeição de Deus. Este dispositivo filosófico por certo que não encontra no
Brás adeptos apaixonados — nele todos conspiram contra a estagnação e preguiça,
trabalhando ardorosamente, distanciando-se de Deus e da perfeição e
aproximando-se do Homem. O exagero e o absurdo nesse bairro atuam e prosperam
num conúbio admirável de entendimento tácito. Ao lado de maltrapilhos e
mendigos que pedincham uma fugitiva esmola, cruzam industriais arrogantes e
garbosos.
Desfilam, em direções opostas,
“mameludas” matronas e figurinhas lépidas de costureirinhas. E a vida
turbilhona numa mistura incaracterística.
Se o suor fosse o símbolo da
honestidade, o Brás seria, no concerto dos bairros, o mais honesto de todos.
Todos os que lá vivem, acometidos do desejo de acumular fortuna, esfalfam-se,
escorcham-se quase que animalescamente, no intuito de enriquecer o mais
depressa possível. E tudo pulula numa agitação delirante, nevrótica, produzida
por milhares e milhares de indivíduos dominados do desejo de se tornarem alguma
coisa pelo dinheiro. De permeio aos que fixaram o seu destino definitivamente
aqui, há também os que trabalham com os braços, mas pensando sempre na pátria
longínqua. Nestes, o fundo do cérebro é cortado e recruzado por locomotivas e
navios em plena voragem de locomoção. Felizmente, estes constituem a minoria. A
maioria trabalha com o firme propósito de não mais sair daqui.
Perscrutado esse bairro medularmente,
ele oferece um aspecto deveras curioso: é um verdadeiro tabuleiro de xadrez de
raças e povos, os mais estranhos pelos sentimentos e os mais diferentes pelas
procedências, onde todos, imersos em relativa harmonia, de maravilhosos
apetites, jogam e disputam entre si, agressivos e astutos, maneirosos e
calculistas, a partida fatal de vencer o rei
dinheiro e a torre milhões!
Ao lado desses espetáculos de enorme
agitação, surpreendemos, a miúdo, os que vieram para aqui e encasquetaram a
ideia inamovível de fazer a América, seja lá como for. Afora estas pequenas
anomalias, vemos então a plebe mourejando nas fábricas, a esbanjar saúde,
concorrendo assim para a grandeza do bairro. E os ofícios mais contraditórios e
os misteres mais desiguais e chocantes aí se confundem e se entrelaçam,
formando uma rede extremada e resistente de múltiplas atividades que buscam
invadir e dominar todas as esferas da luta pela vida.
Há duas grandes artérias, que,
centralizando o grosso do comércio, cortam estouvadamente, num paralelismo
irritante, esse bairro: a avenida Rangel Pestana e a rua do Gasômetro.
Convergem a elas uma infinidade de pequenas e grandes ruas, ruelas, becos,
travessas, e outras monstruosidades deste jaez, intransitáveis, algumas ainda
em formação. E todas, como bocarras impudentes, despejam sobre as duas grandes
vias a sua formidável choldra anônima e circulante. E nos dias de trabalho, à
cadência redemoinhante da lufa-lufa que retroa, revira, sarabanda, controla e
pinoteia, perpassam, lascando o barulho, chicoteando o ar, berros, gritos,
vozes, assobios, numa debandada estridente que cloroformiza os ouvidos e
verruma os nervos.
Em cada esquina desse bairro, fala-se
uma língua estranha e ostenta-se um hábito disparatado. Em cada rua, exibe a
sua tradição um povo diferente. Em cada praça, brincam chusmas de garotos
peraltas e desbocados, produtos dessa feira de povos. E nos dias de férias
escolares, então, o Brás, num grande desejo patriótico de patentear a sua
extraordinária proliferação, de bom povoador do solo, exibe nas praças e nas
ruas o seu incansável esforço genésico, representado em magotes e magotes de
crianças de todos os feitios e tamanhos.
Brutalidade! Nessa descomunal fornalha
do trabalho, onde os braços forjam o progresso, as vontades urdem a civilização
e os egoísmos ululantes entesouram capitais, caldeiam-se e atletiza-se
audociosamente, para variegados afazeres e diferentes misteres, uma geração de
homens e mulheres, floração esplêndida de similares integralizados nessa zona
de luta e atividade, originários todos dessa exótica vegetação de povos que,
uma vez aqui localizados, compensam o mal material que fazem, deslocando os
nossos capitais para as suas terras, com o bem moral de aqui deixarem os seus
filhos, que constituirão no solo americano a família brasileira de amanhã.
Todas as raças deste bairro transfundiram muito bem os seus esforços. Mas, se
não se disser que os italianos fizeram o Brás, eles, logicamente, morrerão de
raiva! Matemo-los a vaidade, dizendo que esse bairro é o produto quase que
exclusivo dos seus esforços. A eles, tão somente a eles, é que se deve, talvez,
a prosperidade do mesmo. E o Brás é bem uma possessão italiana encravada no
flanco da Pauliceia. Lá, respira-se uma atmosfera eminentemente italiana, na
generalidade, de ótima garrulice e entusiasmo; e também em certas
particularidades percebemos umas aragens napolitanas. Bebe-se vinho feito de
tudo, menos de uva; costuma-se engrolar avantajados pratos de macarrão, e
joga-se também a mora aos gritos,
enquanto as pimpinellas e os guagliôs passeiam sorridentes,
namoricando, como se estivessem na via de Chiaia da cidade de Vesúvio. Outras
nacionalidades há, é certo, crustacizadas no organismo do bairro, porém em
números diminutos e dispersivos, disseminadas aqui, e acolá, por todos os
recantos da grande baixada. Não se pode, contudo, negar que no seio dessa vasta
aglomeração, os italianos, donos do bairro, em franca camaradagem, formam a
regra; os outros, a exceção: e, apesar de bem vistos, não passam de inquilinos.
O Brás, na tela panorâmica da cidade,
visto cá do alto à luz do dia, é uma pincelada berrante de zarcão, onde as
trompas insolentes das chaminés das suas fábricas expelem, numa ejaculação
insistente para o alto, mascarando de negro a fisionomia do céu, atropelados
rolos de fumaça! Tem o aspecto de um anfiteatro em combustão, fervilhante,
gerando em seu seio um monstro apocalíptico!
Todo ele é Progresso em fantástica
escalada para o Futuro!
Jornal
"Ronda da Meia-Noite", ano 1925.
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Fonte:
Rafael Rodrigo Ferreira: "O 'literato ambulante': antologia e estudo da obra de Sylvio Floreal - 1918-1928" (Tese). Universidade de São Paulo - USP. São Paulo, 2018.
Fonte:
Rafael Rodrigo Ferreira: "O 'literato ambulante': antologia e estudo da obra de Sylvio Floreal - 1918-1928" (Tese). Universidade de São Paulo - USP. São Paulo, 2018.
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