7/15/2019

A Vertigem em Marcha “Fisionomia de um bairro” (Crítica), de Sylvio Floreal


A Vertigem em Marcha “Fisionomia de um bairro”

O Brás, durante o dia, é um verdadeiro poema homérico de atividade e trabalho.

a ânsia em marcha, desabusada e audaciosa. É a luta em assomo febril de indômita avançada, penetrando, dominando todas as esferas da vida. O esforço aguerrido pela fúria de enriquecer multiplica-se de mil modos, toma aspectos e proporções espantosas, criando iniciativas, tramando expedientes, urdindo invenções, inventando meios que o conduzam ao triunfo monetário.

Ressumbra, paradoxalmente, uma ânsia titânica, em todas as latitudes, de ganhar dinheiro! A inércia e a ociosidade, segundo certos moralistas esquisitos da China, é que aproximam o homem da perfeição de Deus. Este dispositivo filosófico por certo que não encontra no Brás adeptos apaixonados — nele todos conspiram contra a estagnação e preguiça, trabalhando ardorosamente, distanciando-se de Deus e da perfeição e aproximando-se do Homem. O exagero e o absurdo nesse bairro atuam e prosperam num conúbio admirável de entendimento tácito. Ao lado de maltrapilhos e mendigos que pedincham uma fugitiva esmola, cruzam industriais arrogantes e garbosos.

Desfilam, em direções opostas, “mameludas” matronas e figurinhas lépidas de costureirinhas. E a vida turbilhona numa mistura incaracterística.

Se o suor fosse o símbolo da honestidade, o Brás seria, no concerto dos bairros, o mais honesto de todos. Todos os que lá vivem, acometidos do desejo de acumular fortuna, esfalfam-se, escorcham-se quase que animalescamente, no intuito de enriquecer o mais depressa possível. E tudo pulula numa agitação delirante, nevrótica, produzida por milhares e milhares de indivíduos dominados do desejo de se tornarem alguma coisa pelo dinheiro. De permeio aos que fixaram o seu destino definitivamente aqui, há também os que trabalham com os braços, mas pensando sempre na pátria longínqua. Nestes, o fundo do cérebro é cortado e recruzado por locomotivas e navios em plena voragem de locomoção. Felizmente, estes constituem a minoria. A maioria trabalha com o firme propósito de não mais sair daqui.

Perscrutado esse bairro medularmente, ele oferece um aspecto deveras curioso: é um verdadeiro tabuleiro de xadrez de raças e povos, os mais estranhos pelos sentimentos e os mais diferentes pelas procedências, onde todos, imersos em relativa harmonia, de maravilhosos apetites, jogam e disputam entre si, agressivos e astutos, maneirosos e calculistas, a partida fatal de vencer o rei dinheiro e a torre milhões!

Ao lado desses espetáculos de enorme agitação, surpreendemos, a miúdo, os que vieram para aqui e encasquetaram a ideia inamovível de fazer a América, seja lá como for. Afora estas pequenas anomalias, vemos então a plebe mourejando nas fábricas, a esbanjar saúde, concorrendo assim para a grandeza do bairro. E os ofícios mais contraditórios e os misteres mais desiguais e chocantes aí se confundem e se entrelaçam, formando uma rede extremada e resistente de múltiplas atividades que buscam invadir e dominar todas as esferas da luta pela vida.

Há duas grandes artérias, que, centralizando o grosso do comércio, cortam estouvadamente, num paralelismo irritante, esse bairro: a avenida Rangel Pestana e a rua do Gasômetro. Convergem a elas uma infinidade de pequenas e grandes ruas, ruelas, becos, travessas, e outras monstruosidades deste jaez, intransitáveis, algumas ainda em formação. E todas, como bocarras impudentes, despejam sobre as duas grandes vias a sua formidável choldra anônima e circulante. E nos dias de trabalho, à cadência redemoinhante da lufa-lufa que retroa, revira, sarabanda, controla e pinoteia, perpassam, lascando o barulho, chicoteando o ar, berros, gritos, vozes, assobios, numa debandada estridente que cloroformiza os ouvidos e verruma os nervos.

Em cada esquina desse bairro, fala-se uma língua estranha e ostenta-se um hábito disparatado. Em cada rua, exibe a sua tradição um povo diferente. Em cada praça, brincam chusmas de garotos peraltas e desbocados, produtos dessa feira de povos. E nos dias de férias escolares, então, o Brás, num grande desejo patriótico de patentear a sua extraordinária proliferação, de bom povoador do solo, exibe nas praças e nas ruas o seu incansável esforço genésico, representado em magotes e magotes de crianças de todos os feitios e tamanhos.

Brutalidade! Nessa descomunal fornalha do trabalho, onde os braços forjam o progresso, as vontades urdem a civilização e os egoísmos ululantes entesouram capitais, caldeiam-se e atletiza-se audociosamente, para variegados afazeres e diferentes misteres, uma geração de homens e mulheres, floração esplêndida de similares integralizados nessa zona de luta e atividade, originários todos dessa exótica vegetação de povos que, uma vez aqui localizados, compensam o mal material que fazem, deslocando os nossos capitais para as suas terras, com o bem moral de aqui deixarem os seus filhos, que constituirão no solo americano a família brasileira de amanhã. Todas as raças deste bairro transfundiram muito bem os seus esforços. Mas, se não se disser que os italianos fizeram o Brás, eles, logicamente, morrerão de raiva! Matemo-los a vaidade, dizendo que esse bairro é o produto quase que exclusivo dos seus esforços. A eles, tão somente a eles, é que se deve, talvez, a prosperidade do mesmo. E o Brás é bem uma possessão italiana encravada no flanco da Pauliceia. Lá, respira-se uma atmosfera eminentemente italiana, na generalidade, de ótima garrulice e entusiasmo; e também em certas particularidades percebemos umas aragens napolitanas. Bebe-se vinho feito de tudo, menos de uva; costuma-se engrolar avantajados pratos de macarrão, e joga-se também a mora aos gritos, enquanto as pimpinellas e os guagliôs passeiam sorridentes, namoricando, como se estivessem na via de Chiaia da cidade de Vesúvio. Outras nacionalidades há, é certo, crustacizadas no organismo do bairro, porém em números diminutos e dispersivos, disseminadas aqui, e acolá, por todos os recantos da grande baixada. Não se pode, contudo, negar que no seio dessa vasta aglomeração, os italianos, donos do bairro, em franca camaradagem, formam a regra; os outros, a exceção: e, apesar de bem vistos, não passam de inquilinos.

O Brás, na tela panorâmica da cidade, visto cá do alto à luz do dia, é uma pincelada berrante de zarcão, onde as trompas insolentes das chaminés das suas fábricas expelem, numa ejaculação insistente para o alto, mascarando de negro a fisionomia do céu, atropelados rolos de fumaça! Tem o aspecto de um anfiteatro em combustão, fervilhante, gerando em seu seio um monstro apocalíptico!

Todo ele é Progresso em fantástica escalada para o Futuro!


Jornal "Ronda da Meia-Noite", ano 1925.


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Fonte:

Rafael Rodrigo Ferreira: "O 'literato ambulante': antologia e estudo da obra de Sylvio Floreal - 1918-1928" (Tese). Universidade de São Paulo - USP. São Paulo, 2018.

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