A velhinha
Quando já não me lembra, mas foi
em tempo que vai longe.
Passeava uma tarde por uma rua
solitária de pequena cidade em ruína. Ao defrontar uma casinha de gelosias
abertas, mergulhei o olhar indiscreto nas paredes interiores, onde me pareceu
divisar telas antigas — magníficas talvez — esquecidas ali, ou melhor, poupadas
à profanação de algum adelo pela providência benfazeja de uma lembrança querida
que elas representassem.
Nesta nossa terra, onde as
tradições tão depressa se apagam, tão cedo se esquecem as velhas usanças, — o
encontro, muito raro de algum objeto antigo, tem sempre, para mim alguma coisa de
delicado e comovente. Móveis ou telas, papéis ou vestuários — na sua fisionomia
esmaecida, no seu todo de dó — eles me falam ab sentimento como uma música
longínqua e maviosa onde se contam longas histórias de amor, ou se referem dramas
pungentes de não sabidas lutas e misérias.
O espírito se compraz, então, no
tecer uma trama de romance ou de tragédia, em que cada um dos velhos objetos
vive na vida de mil personagens evocados; uma longa estrada, sinuosa e branca,
se rasga para o país do sonho, e a alma, seguindo-a, deixa embular-se como
Leila, ao som de guslas, ou à plangente harmonia das bailadas.
O
certo é que, ao perscrutar as paredes escuras de uma pobre salinha, pela janela
aberta sobre a rua, não só telas descoloridas, como um antigo cravo, primoroso
na fábrica, incrustado de bronze e ornado de finos lavores de talha na madeira negra
prenderam de todo a atenção.
— Restos de uma grandeza extinta!
que triste fadário vos impeliu ao casebre mesquinho de quem por certo, vos não
conhece a história nem o valor? Cravo centenário! que lânguida açafata ou
melindrosa sinhá-moça esflorou o marfim de teu teclado, desfiando o ritmo grave
de uma dança solarenga ou, a furto, a denguice feiticeira de um fado vilão?
Isto pensando, aderguei a uma
pequena porta ao lado, cuja aldraba a mão ergue involuntariamente. Neste ponto,
o sonho começado interrompeu-se e eu, desconcertado, verifiquei a indiscrição
daquele passo. Nova reflexão sucedeu a esta: um pouco daquele fatalismo que o
grande Loiola entregou a solução do primeiro problema de sua vida de pecador já
redento e de seareiro de Deus no grande agro do mundo. — Ora, se cá vieram ter
meus passos, não será sem alguma funda causa ignota. Entremos.
Bati algum tempo e, não acudindo
alguém de dentro, entrei sem mais cerimônia. Pus-me a examinar um quadro a óleo
com uma velha moldura de madeira envernizada; representava dom João V quando
infante, na posição e na idade. Era uma criança loura de rosto vivo, vestida de
camisola de seda branca com uma larga faixa azul; tinha na mão esquerda, a modo
de menino Deus, um orbe, e na direita, um cetro de marfim. A um lado, sobre uma
grande almofada de veludo cor de granada, fulgia o escudo de armas dos Braganças.
Passei ao cravo e admirei a
perfeição do puro estilo Luís XV, artificioso, arrebicado, mesureiro, revelando
no bem acabado da minúcia, no trabalhado do pormenor, as mil regras da etiqueta
do tempo.
Na grande tábua inteiriça do
fundo, sob o teclado, avultava um belo corpo de Baco, coroa de pâmpanos,
trazendo nas costas, em forma de manto régio, uma grande pele de tigre. Aos
cantos, anjinhos anafados, com cintos de rosas caindo-lhes nos quadris roliços,
abraçavam os fustes de colunazinhas e tocavam com os polegares estendidos as folhas
do acanto, como se esforçando por colhê-las.
Um leve ruído fez-me voltar o
rosto e ver então, emoldurada pelas ombreiras da porta, ao fundo, uma estranha
figura de mulher, vestida de algodão muito branco, com o torso pendido a uma dor
intensa, sopitada a custo, e a fisionomia cansada, emurchecida, repuxada de
rugas, onde mal se adivinhavam os olhos sem brilho, quase inexpressivos, a não
ser um "quê" muito fugaz de carinho, que neles boiava ainda como uma flor
desprendida da haste e já quase fenecida, flutuando na superfície de um lago
dormente.
Meio admirado, meio constrangido,
por ter penetrado, sem mais nem menos, naquela casa desconhecida, dirigi-me
para a mulher e balbuciei:
— Perdoo-me a confiança. Tinha
andado muito pela cidade e estava com muita sede... Bati; não vendo gente,
entrei assim mesmo. Perdoe-me a confiança, não é?
— Sente-se, nhonhô: vou buscar a
água — disse-me ela com voz trêmula, e saiu, querendo fazer-se pressurosa,
arrastando pelo chão as chinelas de couro.
Ao voltar sobre os passos para
entrar no interior de casa, pareceu abafar um gemido... E lá foi, apoiando-se
às paredes do corredor, sempre curvada, premida sempre por uma dor que seus lábios
não diziam, mas seu aspecto nos contava de modo a fazer pena.
Sentei-me num catre grosseiro,
mesquinho, cujo assento era um tecido de couro cru, destoando do cravo, tão
elegante, tão aristocrático, que até evocava requintes de luxo e de galanteria
numa corte já morta.
A mulher demorou-se um pouco,
polindo, talvez, o cristal de um velho copo há longo tempo fora do uso.
Quando voltou, corri ao seu
encontro, por evitar-lhe alguns passos mais, e, enquanto bebia, demorei a vista
sobre aqueles restos venerandos de uma — quem o sabe? — talvez extinta beleza.
— Agradou-lhe aquilo?
perguntou-me apontando para o cravo. Foi da casa de meu sinhô.
— Mas que é dos filhos ou dos
netos de seu sinhô? Eles não quiseram ficar com isso?
— Ele não deixou filhos — acrescentou
a velha com voz sumida.
— Ah! não deixou filhos...
Ela abanou a cabeça e ficou
alguns momentos de olhos abertos, vagos, vagos...
Eu, fingindo não perceber sua comoção,
levantei a cabeça: deparou-se-me, então, dependurado num torno de madeira, um
chapéu de homem.
— Mas a senhora tem um filho, não
é? Seu filho faz-lhe companhia, não é assim, minha tia? Está trabalhando fora
com certeza.
Do tamborete de como onde se
tinha sentado, a velha surpreendeu-me a olhar; levantou os olhos também, mas
baixou-os logo, escondendo o rosto nas mãos.
Esteve assim muito tempo...
Depois, como que continuando um período já começado, disse:
— Coitado! assim desamparado...
ninguém sabe!... Nem o consolo de um lugar bento...
— Como!?
Ela fez-me um gesto, e por ele
compreendi que seu filho era louco. Depois, quase por monossílabos me fez compreender
que o desventurado, sua única alegria, apesar de enfermo da mais triste das
enfermidades, desaparecera de casa havia mais de dez anos, sem que soubesse até
então de seu destino. Era crença de todos que fora arrastado pela corrente do
rio ou tragado por algum boqueirão da serra. — "E acabou-se tudo" — acrescentou.
— "Nem mais esperança, nem nada!" Depois, apanhou a barra da saia e nela
tentou afogar o pranto.
— Que página sentida escrevestes,
ó intérpretes do coração
humano, que doa mais do que a só vista desse velho pergaminho mudo engelhado no
rosto da velhinha! Essa dor infinda e resignada, essa dor desamparada e humilde
naquele despojo humano é mais dolorosa do que a do mito imortal de Prometeu
Tomei insensivelmente, uma das
mãos da velhinha e beijei-a como o de uma mãe venerada.
O cravo ancião e o quadro do rei
infante, representando as passadas grandezas, diziam como através dos séculos,
vencendo-os, sobrepujando suas glórias, — alguma coisa inominável, mas
sempiterna, pode encontrar-se oculta na prece de um mísero ou no coração de uma
velhinha.
Cheguei a saber então qual a
causa ignota que me guiara os passos inconscientes à pobre casa de gelosias
abertas.
E — não me envergonho de contá-lo
— saí daquela casa com os olhos marejados de lágrimas.
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Afonso Arinos de Melo Franco (1868-1916)
Pesquisa, transcrição e adaptação ortográfica: Iba Mendes (2019)
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