7/14/2019

A velhinha (Conto), de Afonso Arinos




A velhinha
Quando já não me lembra, mas foi em tempo que vai longe.
Passeava uma tarde por uma rua solitária de pequena cidade em ruína. Ao defrontar uma casinha de gelosias abertas, mergulhei o olhar indiscreto nas paredes interiores, onde me pareceu divisar telas antigas — magníficas talvez — esquecidas ali, ou melhor, poupadas à profanação de algum adelo pela providência benfazeja de uma lembrança querida que elas representassem.
Nesta nossa terra, onde as tradições tão depressa se apagam, tão cedo se esquecem as velhas usanças, — o encontro, muito raro de algum objeto antigo, tem sempre, para mim alguma coisa de delicado e comovente. Móveis ou telas, papéis ou vestuários — na sua fisionomia esmaecida, no seu todo de dó — eles me falam ab sentimento como uma música longínqua e maviosa onde se contam longas histórias de amor, ou se referem dramas pungentes de não sabidas lutas e misérias.
O espírito se compraz, então, no tecer uma trama de romance ou de tragédia, em que cada um dos velhos objetos vive na vida de mil personagens evocados; uma longa estrada, sinuosa e branca, se rasga para o país do sonho, e a alma, seguindo-a, deixa embular-se como Leila, ao som de guslas, ou à plangente harmonia das bailadas.
O certo é que, ao perscrutar as paredes escuras de uma pobre salinha, pela janela aberta sobre a rua, não só telas descoloridas, como um antigo cravo, primoroso na fábrica, incrustado de bronze e ornado de finos lavores de talha na madeira negra prenderam de todo a atenção.
— Restos de uma grandeza extinta! que triste fadário vos impeliu ao casebre mesquinho de quem por certo, vos não conhece a história nem o valor? Cravo centenário! que lânguida açafata ou melindrosa sinhá-moça esflorou o marfim de teu teclado, desfiando o ritmo grave de uma dança solarenga ou, a furto, a denguice feiticeira de um fado vilão?
Isto pensando, aderguei a uma pequena porta ao lado, cuja aldraba a mão ergue involuntariamente. Neste ponto, o sonho começado interrompeu-se e eu, desconcertado, verifiquei a indiscrição daquele passo. Nova reflexão sucedeu a esta: um pouco daquele fatalismo que o grande Loiola entregou a solução do primeiro problema de sua vida de pecador já redento e de seareiro de Deus no grande agro do mundo. — Ora, se cá vieram ter meus passos, não será sem alguma funda causa ignota. Entremos.
Bati algum tempo e, não acudindo alguém de dentro, entrei sem mais cerimônia. Pus-me a examinar um quadro a óleo com uma velha moldura de madeira envernizada; representava dom João V quando infante, na posição e na idade. Era uma criança loura de rosto vivo, vestida de camisola de seda branca com uma larga faixa azul; tinha na mão esquerda, a modo de menino Deus, um orbe, e na direita, um cetro de marfim. A um lado, sobre uma grande almofada de veludo cor de granada, fulgia o escudo de armas dos Braganças.
Passei ao cravo e admirei a perfeição do puro estilo Luís XV, artificioso, arrebicado, mesureiro, revelando no bem acabado da minúcia, no trabalhado do pormenor, as mil regras da etiqueta do tempo.
Na grande tábua inteiriça do fundo, sob o teclado, avultava um belo corpo de Baco, coroa de pâmpanos, trazendo nas costas, em forma de manto régio, uma grande pele de tigre. Aos cantos, anjinhos anafados, com cintos de rosas caindo-lhes nos quadris roliços, abraçavam os fustes de colunazinhas e tocavam com os polegares estendidos as folhas do acanto, como se esforçando por colhê-las.
Um leve ruído fez-me voltar o rosto e ver então, emoldurada pelas ombreiras da porta, ao fundo, uma estranha figura de mulher, vestida de algodão muito branco, com o torso pendido a uma dor intensa, sopitada a custo, e a fisionomia cansada, emurchecida, repuxada de rugas, onde mal se adivinhavam os olhos sem brilho, quase inexpressivos, a não ser um "quê" muito fugaz de carinho, que neles boiava ainda como uma flor desprendida da haste e já quase fenecida, flutuando na superfície de um lago dormente.
Meio admirado, meio constrangido, por ter penetrado, sem mais nem menos, naquela casa desconhecida, dirigi-me para a mulher e balbuciei:
— Perdoo-me a confiança. Tinha andado muito pela cidade e estava com muita sede... Bati; não vendo gente, entrei assim mesmo. Perdoe-me a confiança, não é?
— Sente-se, nhonhô: vou buscar a água — disse-me ela com voz trêmula, e saiu, querendo fazer-se pressurosa, arrastando pelo chão as chinelas de couro.
Ao voltar sobre os passos para entrar no interior de casa, pareceu abafar um gemido... E lá foi, apoiando-se às paredes do corredor, sempre curvada, premida sempre por uma dor que seus lábios não diziam, mas seu aspecto nos contava de modo a fazer pena.
Sentei-me num catre grosseiro, mesquinho, cujo assento era um tecido de couro cru, destoando do cravo, tão elegante, tão aristocrático, que até evocava requintes de luxo e de galanteria numa corte já morta.
A mulher demorou-se um pouco, polindo, talvez, o cristal de um velho copo há longo tempo fora do uso.
Quando voltou, corri ao seu encontro, por evitar-lhe alguns passos mais, e, enquanto bebia, demorei a vista sobre aqueles restos venerandos de uma — quem o sabe? — talvez extinta beleza.
— Agradou-lhe aquilo? perguntou-me apontando para o cravo. Foi da casa de meu sinhô.
— Mas que é dos filhos ou dos netos de seu sinhô? Eles não quiseram ficar com isso?
— Ele não deixou filhos — acrescentou a velha com voz sumida.
— Ah! não deixou filhos...
Ela abanou a cabeça e ficou alguns momentos de olhos abertos, vagos, vagos...
Eu, fingindo não perceber sua comoção, levantei a cabeça: deparou-se-me, então, dependurado num torno de madeira, um chapéu de homem.
— Mas a senhora tem um filho, não é? Seu filho faz-lhe companhia, não é assim, minha tia? Está trabalhando fora com certeza.
Do tamborete de como onde se tinha sentado, a velha surpreendeu-me a olhar; levantou os olhos também, mas baixou-os logo, escondendo o rosto nas mãos.
Esteve assim muito tempo... Depois, como que continuando um período já começado, disse:
— Coitado! assim desamparado... ninguém sabe!... Nem o consolo de um lugar bento...
— Como!?
Ela fez-me um gesto, e por ele compreendi que seu filho era louco. Depois, quase por monossílabos me fez compreender que o desventurado, sua única alegria, apesar de enfermo da mais triste das enfermidades, desaparecera de casa havia mais de dez anos, sem que soubesse até então de seu destino. Era crença de todos que fora arrastado pela corrente do rio ou tragado por algum boqueirão da serra. — "E acabou-se tudo" — acrescentou. — "Nem mais esperança, nem nada!" Depois, apanhou a barra da saia e nela tentou afogar o pranto.
— Que página sentida escrevestes, ó intérpretes do coração humano, que doa mais do que a só vista desse velho pergaminho mudo engelhado no rosto da velhinha! Essa dor infinda e resignada, essa dor desamparada e humilde naquele despojo humano é mais dolorosa do que a do mito imortal de Prometeu
Tomei insensivelmente, uma das mãos da velhinha e beijei-a como o de uma mãe venerada.
O cravo ancião e o quadro do rei infante, representando as passadas grandezas, diziam como através dos séculos, vencendo-os, sobrepujando suas glórias, — alguma coisa inominável, mas sempiterna, pode encontrar-se oculta na prece de um mísero ou no coração de uma velhinha.
Cheguei a saber então qual a causa ignota que me guiara os passos inconscientes à pobre casa de gelosias abertas.
E — não me envergonho de contá-lo — saí daquela casa com os olhos marejados de lágrimas.

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Afonso Arinos de Melo Franco (1868-1916)
Pesquisa, transcrição e adaptação ortográfica: Iba Mendes (2019)

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