A Tia Martinha
A lâmpada abria um halo largo de
luz; grilavam insetos, fora, na fenda dos muros, pela quietude estrelada da
noite enquanto, da sala perto, vinha o rumor abalante, apressado e trépido da máquina
a costurar linhos brancos – que era a Amanda, coitada, a tisicar sobre as
costuras.
Nós, em camisolos, já prontos para o
deitar, grupávamo-nos no corredor para o mate – um corredor extenso de grossas
paredes e largas janelas. Ao centro sentava-se a tia Martinha, em um bancozinho
baixo, com os seus óculos de aros de aço e o livro de orações nas mãos.
Contava-nos, então, os seus lindos contos: o martirológio dos príncipes
andantes, a história das fadas benfazejas, e nos dava, por vezes, à curiosidade
dos olhos o gozo de estampas coloridas de um Velho Testamento – um grande livro
largo que abríamos no chão, nós ao redor, a folheá-lo, página por página.
Ai! Doces estampas que eram, onde
anoitecia o negror cetinoso dos cabelos fartos de Rute e andava, pela messe
dourada das lavouras, a mancha clara das barbas longas de Abraão!...
Apoteoses de prazer, com estrídulos
de chilreio alegre, aquele suceder de figuras e cores, de trigais e montanhas,
de homens em túnica e mulheres sobraçando púcaros!... De repente eram os de
Israel, por entre muralhas d´água, atravessando o solo areento de um mar
talhado ao meio, guiados pelo vulto do velho profeta com os seus raios geniais
à fronte, pasmando-nos, provocando dúvidas de que fossem chifres aquelas
irradiações do seu espírito de previsão e de sabedoria! E mais adiante era, na
vasta desolação de um deserto, a figura sofredora de Agar, a quem a Dulce, a caçula de todos nós, apontava logo com o
dedinho gordo, a chamá-la Ari, que
vinha a ser na algaravia silábica dos seus dois anos, a Maria Rita, a ama que a
criara, a Bá negra, em cujo seio
amoroso e farto sugara, por meses, gulosa e linda, com a mãozinha sobre a teta e o botão da boca apinhado em beijo, toda a vida que
ora corria-lhe escaldante nas veias.
Por um cerrar de noite – havia uivos
lúgubres de vento nas casuarinas da chácara – a tia Martinha começara: – Era
uma vez... E, de repente, quedou-se – os olhos abertos e a boca incerta...
Sentados no chão, à sua frente, em semicírculo, olhavá-mo-la surpresos,
esperando continuasse – as mãozinhas caídas ao colo e os nossos olhos pasmos
nos seus olhinhos quietos...
A Dulce, para animá-la, sentindo-a
tardar, tatibitou: – Ela u´a vez...
Mas, a tia Martinha... Deus nosso!... Dali, de onde nos falava, ali se ficou
como uma santa...
No dia seguinte levaram-na, no dia
seguinte – ai! Que tristeza que foi!... em uma caixa negra, estreita, com
galões dourados... Puseram-lhe flores por cima e, nós, beijos, no pano preto
dos seus sapatos sem salto.
E de todos, a quem mais pungiu aquela
ausência, em quem mais ficou a amargura daquele deixar, foi à Dulce – ela, então...
para quem as bonitas histórias da tia Martinha não contentavam com uma só
narração!... Queria que as contasse – e indicava o número, exigente, numa
careta grácil de amuo, com os dedozinhos minúsculos abertos em ângulo: – Duza vez... Duza vez...
Por fim... foi-se também, a Dulce,
um dia, na garra adunca da angina e na seda branca de um caixão pequeno... uma
tarde triste, fria, de Ave-Maria triste – atrás, quem sabe? das bonitas histórias
que a tia Martinha tinha levado... A querer ouvi-las ainda, a querer ainda,
talvez, que lhas contasse, lá em cima: duza
vez, a Dulce, duza vez...
---
César Câmara de Lima Campos (1872-1929)
Pesquisa, transcrição e adaptação ortográfica: Iba Mendes (2019)
César Câmara de Lima Campos (1872-1929)
Pesquisa, transcrição e adaptação ortográfica: Iba Mendes (2019)
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Sugestão, críticas e outras coisas...