O que mais me impressiona na "questão"
Shakespeare é que se tenha tido a ideia de inventá-la.
Sim, confesso, isso me aborrece.
O leitor dirá que não tenho razão, e que meu
descontentamento indica um espírito pouco objetivo. Dir-se-ia ainda que no dia
em que a erudição tiver demonstrado que o autor das peças atribuídas a
Shakespeare não é o personagem até então chamado Shakespeare, mas um outro
senhor, serei obrigado a acreditar.
Sim. Inclinar-me-ei diante desse fato brutal, mas
com uma perfeita indiferença. O que me interessa aqui, e com toda certeza há de
sempre me interessar, é a obra e não o homem, são as peças (que eu as admiro no
palco ou simplesmente lendo-as), os dramas e não a identidade mundana de seu
autor. Percebe-se o alcance desta distinção. Respeito o autor, pois tenho-o por
um dos gênios mais completos e harmoniosos da humanidade, tendo sido a fonte de
onde nasceu o rio imenso de tragédias, dramas, "feerias” , esse jorro
infinito de lirismo. Mas ao estado civil desse autor, seu traje humano, se
assim posso dizer, às aparências corporais em que o destino encerrou esta alma
prodigiosa, não presto nenhuma atenção, não dou nenhuma importância. Os
eruditos, que, com uma paciência pasmosa, estão, desde muitos anos, a chicanar
sobre os textos para estabelecer que Shakespeare não era Shakespeare,
parecem-me desprovidos, num grão elevado, de senso literário. Evidentemente
esse trabalho lhes é um divertimento, faz-lhes passar o tempo, esse tempo que
têm de sobra, não tendo mais que fazer senão classificar fichas. Mas nós, o público,
o que nos importa no fundo?
E, em primeiro lugar, nada há de menos provado de
que essa não-identidade de Shakespeare. Eu bem sei; existe uma cópia formidável
de argumentos. O seu conjunto, porém, impressiona sem convencer. Há algo de
intencional em tudo isso, uma espécie de intimação. Querem nos envergonhar da
nossa opinião, da nossa boa velha opinião, cândida e tradicional, como se fosse
completamente idiota o fato de pensar que um simples ator pudesse ter um
tamanho gênio poético.
Entretanto, não se chega a um acordo sobre a
individualidade que convém substituir ao ilustre cômico. A tese Stanley, hábil
e minuciosamente defendida, permanece plausível e nada mais. A tese Bacon,
extraordinária de complicação como um romance-folhetim, conclui de modo tão
absurdo que nos põem estupefatos.
Não é por preguiça de espírito que me inclino para a
hipótese tradicional. Eu a rejeitaria de boa vontade se a reconhecesse falsa.
Todavia, até hoje, é pelo menos tão provável quanto as outras.
Julgo que se proporciona grande prejuízo a
Shakespeare ator, contestando-lhe a paternidade das suas peças, sob pretexto de
que, socialmente, não era digno delas. O gênio sopra onde quer. Por que não
teria visitado aquela cabeça?
É um mistério profundo nascer-se gênio, mistério
análogo ao do primeiro frêmito da vida. Em Stanley ou em Bacon, ele é tão
admirável, tão incompreensível como em Shakespeare; nem mais nem menos. Que
papel representam no caso as considerações acerca da fortuna, da posição, das
viagens diplomáticas? Tudo isso não passa de infantilidades. O gênio tudo
adivinha, sem precisar ver coisa alguma.
Não temos ainda, quase sob os olhos, o exemplo
empolgante de Balzac, a quem um trabalho esmagador e uma vida irrequieta não
permitiam frequentar a décima parte dos personagens que criou, com tão
flagrante realidade? Os homens de simples talento sim, são obrigados a
verificar por eles mesmos aquilo que vão descrever... sob pena de fazerem obra
incolor, incerta, artificial. Quanto aos homens de gênio, é nisso precisamente
que reside a sua força. Sabem tudo desde o berço, e o mais furtivo relance lhes
basta para abranger um fato em conjunto ou compreender um ser até as
profundezas.
O erro fundamental dos exegetas da questão
Shakespeare, consiste em tratar um gênio com os métodos ordinários com que se
explica as manifestações dos simples talentos.
Não pretendo estar seguro de ter sido Shakespeare o
autor do Teatro da Rosa, mas afirmo que ainda não se provou que o não tenha
sido. E persisto em acreditar possui maiores probabilidades de conservar o nome
ao mesmo tempo que a glória, porque o gênio escolhe mais raramente os palácios
de que as choupanas para morada. Sabe-se o que era Francisco Bacon? um triste
indivíduo, apesar (ou talvez por causa) do enigma real da sua origem, um triste
indivíduo e um filósofo cuja fria doutrina está nos antípodas da concepção
radiosa do mundo que nos revelam as peças de Shakespeare. Quanto a Stanley, é presumível
que fosse um fidalgo encantador, culto, requintado – um europeu, se quiserem,
um perfeito humanista. No entanto, entre tudo isso e o gênio há um abismo, que
nada nos autoriza a considerar desapercebido. E, como no caso, tudo é
probabilidade, que me seja permitido sugerir a minha. Sabe-se que, ao ponto de
vista do lirismo e da psicologia, os viajantes extraem pouca coisa de sua
experiência, por mais vasta que seja. Stanley não passou de um amador, e
justamente por isso está condenado como criador."
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FRANCIS DE MIOMANDRE
Revista
"America Brasileira", 23, novembro de 1923.
Pesquisa e
adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)
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