(Ao
Sr. José de Sousa Monteiro)
Naquela serena tarde de primavera, a princesa descera com as pequeninas
aias e a camareira-mor as escadas de mármore branco e de mármore róseo do
suntuoso palácio real.
Era numa corte de complicada pragmática. Os movimentos eram feitos
consoante regras antigas; cada passo, cada mesura, cada sorriso, vinham
marcadas no grosso livro que um mordomo-mor coligira, a exemplo do que fizera
um imperador bizantino.
Apesar disso, porém, na corte esplendida havia um pouco de mocidade. E
detrás dos leques de varetas rendilhadas, os lábios abriam-se em sorrisos os
olhos franziam-se, quando estava distante a hirta, camareira-mor.
Os bailes tinham solenidade como os ofícios divinos; mas as cores
frescas das raparigas, a ligeireza com que dançavam, a graciosidade que
florescia nas suas atitudes rapidamente desmanchadas, logo substituídas,
davam-lhes o ar de festas.
No grande palácio brilhante, as gentes andavam lentamente, como em procissão.
No rosto do mais alegre era preciso espelhar-se, sombria, a tristeza que
emagrecia a face pálida do rei. Era mister que ninguém perturbasse, com o tinir
fresco de um riso, a dor real. Se alguma vez as donzelas deixavam passar o riso
através das rendas finas dos seus leques, logo a camareira-mor intervinha,
severa, a repreender. Nos tapetes morriam os sons dos passos; os grossos
reposteiros abafavam o ruído das vozes. O silêncio era eterno, como essa grande
e aniquiladora mágoa que abatera a vigorosa mocidade do Rei.
Em tempo, o palácio vibrara com o clamor das festas; as músicas
saltitantes riam nas amplas salas. Os vestidos claros, em cujos decotes os
peitos brancos se mostram, sublinhavam a alegria. Um bobo pequenino e
monstruoso punha um chocalhar de guiso em cada frase. E junto da Rainha, loira,
pálida, delgada, o Rei também sorria, a olhar a flor preciosa e frágil que pelo
braço levava, em movimentos musicais, como uma ave.
Junto à sua frescura luminosa, as joias pareciam flores. E o diadema pesado,
sobre os cabelos louros, era como uma aureola maior nessa cabeça fina.
Ela também sorria, olhando os olhos escuros do Rei. E pela boca vermelha
havia como um palpitar de beijos. A festa continuava. Havia no ambiente claro
de tantas luzes, tantas joias, tantos olhos contentes, uma alegria maior.
Vaporizavam-se os movimentos. As rendas tremiam nos vestidos das mulheres, nos
gibões de seda dos gentis-homens. As conversas de amor faziam arfar os seios...
O Rei e a Rainha continuavam a sorrir-se, como dois amantes rústicos, que se
encontram na vinha, por um suave outono.
Uma noite, porém, a dor entrou nesse palácio claro. Ligeiros, para não
fazer ruído, como sombras, os cortesãos, as damas de honor, as aias, passavam,
murmurando rezas, ou trocando, baixinho, as impressões. Era como um ciciar leve
de brisa sobre um campo de flores. Os vultos cruzavam-se:
— Então?
— Na mesma...
— Impossível salvar-se...
— O físico não atina com o remédio...
Era a Rainha, que, como certos arbustos que morrem, depois de florir, finava-se
ao dar à luz a pequena princesa.
A dor trágica e calada do moço Rei! Nem uma palavra se lhe ouviu da boca
crispada. Nem um grito na lutuosa câmara onde carpiam as senhoras da corte. De
joelhos junto ao leito magnífico, onde se postara depois de ter cerrado os
largos olhos garços, o Rei chorava em silêncio. Os frades diziam monotonamente,
como um esvoaçar de insetos, as rezas rituais. Um ou outro soluço, a desolação
de um ai, cortavam a fúnebre quietude; mas o rei, entre as suas as mãos finas e
amarelecidas da Rainha, não tinha um grito, nem uma palavra. Nos lábios da
morta ainda havia o sorriso, esboçado a olhar para o marido...
O Rei mandou retirar a todos do quarto. Quis ele próprio vestir aquela
que tanto amara. Beijou-lhe os olhos de pálpebras azuladas, beijou os cabelos,
que na imprecisa penumbra, tinham um brilho de ouro... Outra vez caiu de
joelhos.
Então as palavras de dor, abundantes, saíram dos lábios tanto tempo
represos. Disse-lhe o grande amor e a grande mágoa. Prometeu-lhe viuvez eterna;
que a sua alma se conservaria fechada, como um relicário, a guardar a imagem
quase divina da mulher primeira amada, única...
Longo tempo se conservou, as mãos frias da morta entre as suas, no
quarto silencioso, onde apenas os seus queixumes davam uma nota de vida. No
lampadário já se extinguiam as luzes, que, de quando em quando lançavam, altas,
dentadas, labaredas azuis e de ouro.
A madrugada clara entrou pelas janelas, como um chilrear de
pássaros. A vida renascia, musical, da noite escura. No coração do Rei a dor
fizera uma sombra eterna.
Entre os brandões acesos levaram o cadáver, vestido por mãos
mercenárias, que as do Rei nem tinham forças para o peso dos anéis...
Filas de bispos mitrados, graves e compungidos, seguiam o féretro
através as ruas da cidade e por estradas risonhas, até o convento magnífico em
cuja igreja jaziam todos os numerosos reis e rainhas da casa real; seguiram os
fidalgos como seus escudeiros de luto; seguiu, comovido, o povo, que pranteou a
morte daquela que fora linda e nas ruas sorria às criancinhas pobres, que lhe
pediam a benção...
Era uma comprida fila que se perdia nas corcovas da estrada. As
confrarias, os conventos mandaram os irmãos e os frades, com as insígnias. E
àquele radioso sol de agosto, que punha na atmosfera uma tremura, tudo
resplandecia, como uma apoteose. Brilhavam as lanças, brilhavam os ouros,
brilhavam os báculos e sobretudo refulgiam as insólitas pedrarias dos bispos,
caminhando majestosos e tristes. E o salmejar dos padres, ouvido ao longe,
perdia a nota de lamento: era como o último eco de um canto de vitória, no dia
glorioso...
No palácio quase deserto, o Rei ficara no quarto vazio. Como arredá-lo
de lá? De joelhos ainda, pensava talvez ter entre as suas mãos os dedos
finos da Rainha morta. De quando em quando um soluço parecia estalar a
garganta. E as lágrimas desciam pela face, iam morrer na barba perfumada.
Olhava para o grande espelho, onde a Rainha costumava ajeitar, à noite,
os cabelos fartos. Lembrava-se de ter ali visto o gesto grácil, aquele pó de
ouro, e o corpo que tinha a frescura e a elegância de uma flor que vai a
desabrochar. Por que não guardam os espelhos as imagens refletidas? Teria ali,
viva, a Rainha, na atitude de compor as sedas das suas tranças... Mas os
espelhos deixam tudo escapar. Assim os lagos não guardam, no seio ligeiro, volúvel,
o voo curvo das pombas que fogem...
E para ali se quedava, vivendo do passado, como um velho... Que
importava que as guerras na fronteira distante assolassem o país? Que tinha que
os povos gemessem, que as catástrofes aluíssem as cidades fulgentes ao luar e
ao sol nas suas catedrais preciosas, que os rios, saltando os leitos,
invadissem as aldeias claras? Que importava a vida se ele só vivia da morte?
Mergulhassem os outros no passado os olhos cobiçosos e vivessem de tanto
esplendor de batalhas e de riquezas que listravam de clarões a história do
reino afortunado. Na miséria presente, que se recordassem!
A própria princesa entre as mãos das açafatas, delicada e linda, ia
vivendo, nos grandes olhos verdes, uma tristeza, como quem sabia... No palácio
severo, lúgubre, sem os tinidos das alabardas e os mantos que formavam lagoas,
nas alcatifas, ninguém se via. E ela, a pequena princesa, não aprendera a rir e
também não chorava.
Uma vez ou outra, ao atravessar silencioso e só as câmaras, o Rei via a
princesa; maquinalmente as suas mãos pálidas passavam pelos cabelos louros da
filha. E seguia, taciturno, sempre diante de si a imagem daquela que morrera a
sorrir e o esperava na cripta silenciosa do austero templo gótico.
Ensinavam as aias à princesinha, não relatos cruéis de contendas, nomes
temidos dos reis seus avós, mas histórias maravilhosas. Diziam-lhe que à noite,
os grandes cálices das magnólias abriam-se, com um ruído musical. E de dentro
saíam cortes de fadas minúsculas, vestidas com mantos tecidos com raios de
luas-cheias. Pelo parque andavam livremente entre as roseiras esplêndidas...
Contavam-lhe que à meia-noite, as árvores se desprendem da terra e vão beber,
como os gados, às límpidas ribeiras. Ela sabia que entre si os animais falavam,
as andorinhas nos bicos dos telhados, os cisnes brancos nas lagoas azuis, os
pavões sobre as árvores, quando espalmam as enjoalhadas caudas, as pombas
brancas à beira dos poços, sobre o mármore polido.
Conhecia os trabalhos ligeiros dos gnomos, que nas cavernas escuras
trabalhavam o ouro e o ferro; distinguia os alfagemes, que afiam as espadas
mortíferas, e os ourives, que afilagranam os metais.
Diziam-lhe as lendas floridas dos amantes, de cujos túmulos saem
sorrisos carregados de rosas, que num arco perfumado se abraçam a misturar os
perfumes...
Mas a pobre princesa, apenas núbil, não conhecia a Vida, nem o Amor, nem
o Riso.
Um dia, pois, a princesa, com as pequenas aias, desceu ao jardim do
suntuoso palácio.
Misterioso por tantas sombras, tantos caminhos que se contorciam por
entre rugosos troncos, tantas águas que cantavam nos mármores brancos, tantas
flores que dentre a verdura perfumavam...
De socalco em socalco abriam-se, em leques, as escadarias; saltavam as
águas das cascatas, despenhavam-se as trepadeiras floridas, rastejavam as
ervas, rosas de toucar e jasmins lançavam os ramos frágeis.
Junto ao palácio o jardim era cuidado, como uma cabeça garrida. As
largas flores espargiam os aromas; os repuxos finos esguichavam fios de prata,
pelas ruas areadas passavam, majestosos os pavões solenes... Mas depois,
começava a floresta. As altas árvores lutavam, estorcidas: algumas subiam,
magras como pedintes, numa aspiração, muito direitas para o sol. Outras
torciam-se, esta sem forças, esgarçava-se mirrada. E a hera crescia, vestia os
troncos, até nas árvores secas vicejava, como uma mascara risonha numa face de
morto. Alguns troncos de seculares carvalhos continham grutas escuras. E os
pássaros, dentre os galhos, ao ruído dos passos, levantavam voo, alvoroçados.
Era o "Caminho das Rosas", que ali levava. Rosas de toda a
cor: ensanguentadas, brancas, cor de mel e de marfim, cor de carne, rosas para
florir peitos de danados e para tranças de primeiras comungantes, rosas que
abrem chagas no verde das roseiras, outras que chamam beijos, como colos nus em
festas iluminadas, rosas que têm toda a pureza de uma noiva, outras toda a
garridice de uma amante, rosas para túmulos, brancas, mortas quase, rosas
cheias de vida, que pareciam querer saltar das hastes, e oferecer-se,
lascivas...
Vinha do seu conjunto um perfume entontecedor. Por tanto aroma lançarem
no ar, nas noites quentes de agosto, algumas damas da corte caiam, em delíquio.
E todas tinham medo daquele pórtico encantado, que parecia abrir para um
paraíso, mas que podia descer a algum abismo.
Foi para ali, que, correndo atrás de uma borboleta, se dirigiu a
princesa. Em vão lhe prenderam as vestes de seda os espinhos das roseiras, em
vão a chamaram as pequenas aias; mesmo foi debalde que a voz seca da
camareira-mor gritou por ela, entre respeitosa e autoritária. A princesa, a
rir, corada, continuava atrás da grande borboleta, deixando tiras de seda nos
galhos em flor que, sacudidos, lançavam sobre a sua cabeça pétalas finas.
Ninguém, contudo, se atreveu a ir atrás dela.
Corria no palácio e na cidade uma lenda estranha sobre a floresta, que
continuava o jardim, depois do perfumado "Caminho das Rosas".
Dizia-se que numa época remota, no tempo em que pela cidade luminosa e
culpada ainda passavam os santos ensinando a Lei e edificando as gentes,
governava o reino uma rainha pagã. No jardim murmuroso e claro havia frêmitos
de beijos. Nas águas dos tanques brilhavam corpos ligeiros. Nas salas que as
tochas e os lampadários iluminavam, mulheres quase nuas dançavam levemente ao
som de músicas alegres. E o vinho levava das taças lavradas às bocas vermelhas
a alegria e o Amor.
Por toda a parte havia flores, havia risos, havia festas. Os cavaleiros,
nas justas, paravam; morriam as centelhas em que ardem as espadas no choque dos
combates, e das bocas frescas saíam vozes a cantar a formosura das
florestas, a elegância das mulheres, a limpidez das águas cantantes.
Um dia, um santo bispo entrou, andrajoso e cansado, a pedir pousada; a
rainha, ao vê-lo tão miserável, mandou-o recolher no canil, com os criados das
matilhas. Os cães, piedosamente, foram lamber os pés em sangue do santo homem.
Mas a Rainha não o quis receber. Como de São João Batista, as palavras
subiam para as portas, ásperas e condenatórias. Toda a noite a sua voz rude
anunciava o castigo.
A Rainha, cansada de ouvir a voz rouca, mandou-o açoitar e expulsar do
palácio, em que reviveu a alegria. Mas durou pouco, porque um dia uma língua de
fogo saiu da terra, e agitou-se no ar, de sangue e ouro; espavorida, toda a
corte fugiu, para não mais voltar, para a floresta misteriosa, que ninguém
sabia ao certo onde acabava.
E todo o reino teve medo, como de um inferno, dessa floresta que
começava por uma estranha floração de rosas e terminava porventura pelos
eternos gelos, pelas labaredas, talvez...
Por ali seguira a princesa, a rir-se. Em vão o Medo guardou durante
séculos a misteriosa entrada. Em vão as rosas se agitaram, como turíbulos, para
a entontecer com o perfume, e os galhos a prenderam, e os espinhos lhe
rasgaram as rendas e as sedas. Foi correndo. A borboleta enorme parecia
uma joia a fugir por entre as flores. A princesa era como uma ave, delgada e
linda, atrás dela.
Subitamente a paisagem modificou-se. Do dia glorioso que estava no jardim
do palácio, nasceu um crepúsculo dourado, como um velho damasco amarelo.
A luz parecia um convalescente a rir-se por cima das árvores, pelos
tanques quietos, pelos mármores. E as folhas das árvores tremiam fazendo
brilhar os filamentos de ouro. As flores tinham todas um aroma ligeiro, como os
frascos de perfumes, que durante longos anos se guardam, vazios, nos armários
fechados. Eram brancas todas as rosas e as pétalas enrugadas, como peles finas
de velhas, que viveram nos claustros, entre cosméticos.
Quando a princesa deu pela mudança da luz e da paisagem lembrou-se da
lenda pavorosa que afastava as gentes da floresta e do Caminho das Rosas.
— Onde estão as línguas ávidas do fogo? perguntava-se. Onde os gelos que
prendem e matam? Onde os dragões?
A paisagem era toda serena e de um riso triste. Dir-se-iam anêmicas as
flores pálidas, as anêmonas de seda velha, de cera transparente, que por toda a
parte deixavam cair, de cansadas, as pétalas finas. E nos caminhos a areia
preta era cruzada pelos veios das ervas rasteiras, coberta pelos galhos
dos arbustos, aqui sacudiam-se rosas, além os gerânios frescos. Pelos troncos
direitos das árvores a hera enroscava-se, a subir. Nas curvas dos tanques,
dormiam os nenúfares. Nos mármores dos poços as trepadeiras cobriam os lavores.
Havia um silêncio leve, por onde perpassava o espírito de um canto, como um
aroma que a brisa traz de longe.
Os templos tinham as portas abertas. A princesa para eles entrou, a
medo, a espreitar, afastando os loureiros e os mirtos, que quase fechavam a
entrada.
Ninguém. Apenas os deuses de mármore, calmos, esperavam as oferendas.
Mas as aras dos sacrifícios tinham umidade da lavagem recente. As cinzas eram
quentes; no templo de uma deusa havia grinaldas de rosas e penas de pombas
brancas soltas pelo chão.
Alguém ali vivia, pensava a princesa. Mas quem? Gênio malfazejo, que a
mataria, ou fada carinhosa? Seria ali que nas noites claras viriam passear as
cortes suntuosas que moram nos cálices das magnólias?
Habituada ao silêncio sombrio da corte não a inquietava aquele silêncio
leve. E continuava a explorar a encantada floresta, onde parecia agitar-se um
simulacro de vida.
Como um coração que vive da saudade dos tempos remotos, assim ali
parecia existir a repercussão de uma vida antiga. A cada passo a princesa
encontrava sinais de sandálias, flores cortadas, uma fita, indícios de vida.
Mas de onde partiam? Quem os deixava?
Viveria ali, naquele país de luz anêmica, uma corte de feiticeiras
trágicas, que esperam, para sair das cavernas, as badaladas lúgubres da
meia-noite? Mas não. As feiticeiras escolhem as montanhas altas e escarpadas
onde chegue o canto soturno do mar revolto, sem árvores que impeçam o voo
incendiário das blasfêmias e das imprecações para o céu sem lua e sem estrelas.
Ia caminhando a princesa. Via ribeiros claros que escorregavam sobre
seixos brancos; lagoas azuis, fachadas de templos, quincôncios bordados por buchos
altos. E as ruas seguiam entre filas de altas árvores formando túnel, até serem
cortadas por novas ruas, com árvores ou flores.
Cansou-se a pequena princesa. Um vago terror a invadiu. Quis regressar
ao palácio, mas não podia. As ruas de árvores, os templos, os ribeiros, as
estatuas, sucediam-se. Parecia-lhe estar num complicado labirinto. Como
conseguir o mágico fio?
Uma noite, que parecia artificial, espalhara-se pelo céu e envolvia as
coisas. À tonalidade dourada, sucedia uma tonalidade branca, como se tudo
fosse feito de prata. A princesa sentou-se num banco, a chorar.
Ouviu de longe como um passar de brisa leve por harpas suspensas em
árvores. Escutou. Era um canto que um coro fazia subir, ligeiro como um fumo.
Mais se aproximava. As vozes eram cansadas, mas límpidas. Cantavam a vida e as
festas, o rir das flores, a alegria das árvores na primavera.
Cada vez se aproximavam mais. Dirigiam-se, certamente, para o sítio onde
ficara a princesa, um jardim junto de um templo de mármore verde.
Já via as canéforas, com açafates de flores, seguidas pelas escravas com
tamboretes; depois a numerosa teoria de mulheres, com archotes, que, ao
queimar-se, iluminavam e perfumavam. Não havia homens. Certamente que vinham
para a festa ateniense das Tesmofórias.
Eram as habitantes da floresta. Caminhavam lentamente, as cunháricas
flutuantes sobre as túnicas amarelas. As hidróforas traziam as urnas na cabeça.
Num gesto gracioso, seguravam-as com uma das mãos; os braços nus eram tão
brancos como os mármores transparentes das urnas.
Quando viram a princesa, medrosa, a esconder-se entre as árvores, a
procissão parou, as vozes calaram-se, a meio do canto.
Em voz baixa concertavam entre si a resolução a tomar. A princesa ouvia
apenas um zumbido confuso, como os das abelhas, quando nos dias quentes se
cruzam pelos jardins floridos. Colada a um tronco, pálida como um ex-voto de
cera, viu com pavor aproximar-se dela uma das habitantes da floresta. Era
porém, tamanha a sua beleza e a sua gracilidade, que o medo tombou do espírito
da princesa. Pensava-se ver uma haste florida a andar. Vagarosa, os seus gestos
curvos e lentos pareciam fazer nascer no ar quieto uma harmonia...
— Perdi-me aqui! Perdi-me aqui!
— De onde vens?
— Do palácio. Sou a princesa. As minhas aias não se atreveram. Eu corri
para apanhar uma borboleta. A borboleta fugiu. Fiquei sem saber onde estava,
que caminho tomar. Isto é tão lindo! Mas faz tanto medo não se saber onde se
está!
— E queres voltar? Deixaste teu pai e tua mãe...
— Minha mãe morreu. Meu pai não o vejo... quase nunca. É um velho triste
e duro, que não fala... Tenho medo da camareira-mor. E as aias estão a chorar
às escondidas dela como sempre... A vida é triste, triste, no palácio...
— Preferes ficar conosco?
A boca fina pareceu sorrir-se. A princesa olhava para as mais que se
tinham acercado. Eram todas lindas e moças, mas sem frescura, como as
rosas que abrem pelas chuvas e ventanias.
— Se me quiserem. Se me quiserem.
— Pois ficarás! Ficarás! Vem conosco!
Pôs-se em marcha o cortejo, novamente. Entraram no templo com a
princesa.
E a princesa ali ficou, porque nos rostos se conservava a mocidade e não
havia a dor, nem o constrangimento. Tudo era claro e sereno. E não voltou mais
ao palácio, onde as aias choravam e a camareira-mor, seca e hirta, tinha uma
voz esganiçada e autoritária.
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Pesquisa, transcrição e adequação ortográfica: Iba
Mendes (2019)
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