7/05/2019

A penitência (Conto), de Brito Camacho



A penitência

Ontem o Núncio assistiu ao
espetáculo, em São Carlos,
representava-se a Passagem
do Mar Vermelho.
(Dos jornais)
— É curioso! Tinham-me dito que as damas vinham escandalosamente decoladas, num à vontade quase libertino...
— Como constou que vossa eminência viria hoje...
— Mais uma razão para virem como de costume. A estética é sempre moral, e na completa nudez de uma mulher bela, há o quer que seja de divino.
— Quem ouvisse falar assim um ministro da Igreja...
— Diria que esse ministro da Igreja é um homem, e poderia acrescentar que esse homem, mesmo que houvesse nascido em Roma, nas imediações do Vaticano, não teria cantado nunca na Capela Sextina.
— A música é linda...
— Pois sim, mas a gente é estúpida. Um teatro não é uma igreja, onde convém não mostrar a carne para fugir ao pecado da luxúria.
— Se vossa eminência quer retirar-se...
— Não; havemos de ficar até ao fim. Provavelmente aquela gente do palco, depois de atravessar o Mar Vermelho põe a farpeia a enxugar, e pode ser que alguma coisa se mostre, digna de ser vista.
— Vossa eminência já reparou, em frente...
— Há quanto tempo! Parece uma pintura do Jordão, com um colar de chouriços.
— Mas dizem...
— Qual história!... Faz o que pode para agradar, mas não pode muito. E então agora, já no entardecer, com os seus quarenta bem puxados...
— Parece mais nova.
— Sem filhos, não admira.
— O marido creio que...
— É um bom católico... Disse-me, um dia, que enganava a mulher. Ela estava tão perto de nós, que ouviu. Por um triz não estraga tudo, com um froixo de riso.
— E a penitência, se confessou o pecado?...
— Leve. Disse-lhe que fosse a Roma, ajoelhar aos pés do Papa, e confessar a culpa, indo depois a Jerusalém, arrepender-se sobre o santo sepulcro.
— Peregrino e cavaleiro...
— Com bordão e armadura.
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Pesquisa, transcrição e adaptação ortográfica: Iba Mendes (2019)

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