Os dias passaram-se e a
Árvore era um colosso esbranquiçado e mudo. Nessa noite o Astrônomo encontrou o
Pita desvairado, com o xale-manta ao vento.
– Pita, você tem um ar
estranho. E o Pita, transido, murmurou:
– Você deve tê-los visto.
Nascem, irrompem da treva...
O outro, cheio de
serenidade, afiançou:
– Foi a primavera.
– A primavera isto! O amigo
desvaira. Como a primavera? Eles só aparecem de noite, criam-se nos saguões.
Deparo com criaturas que nunca vi. Uns são lama viva, outros que são?... Homem,
dir-se-ia que todos os sonhos tomaram corpo.
– Tomaram. Tenho pensado
nisso. Pois foi a primavera. Você tem visto um charco, lama e água revolvida?
Vem a primavera e aquilo transforma-se. O mesmo sopro que faz bater mais alto;
o coração dos montes cria naquele palmo negro a vida – murmúrios, gritos, um
arrancar de mistério. A primavera faz isto; transforma o húmus inerte numa vida
furiosa. Eu já vi...
– Então...
– Então, Pita, você medite,
é isto... Esta lama que e cria nos saguões, homens, gebos,
emparedados, pôs-se com estas noites a criar... Veio dali – e apontou para os
lados do Hospital – um eflúvio, o mesmo que faz nascer as árvores, e eles
estremeceram abalados.
– A noite tem realmente
qualquer coisa que aflige...
Opressão, mistério...
– Emoção que foi até às
tocas onde eles criam. Puseram-se a sonhar e criaram. Ora escute... Ouve um frêmito,
o escachoar dum rio, gritos?... E, como se a gente pusesse o ouvido de encontro
à terra...
– Criaram?
– Criaram. Isto que nós
vemos não são eles, são aparições. É o que eles sonharam. Os sonhos dos
desgraçados tomaram corpo. Só nós é que não podemos sonhar.
– Nós não, nunca mais... Os
sonhos dos desgraçados tomaram enfim corpo!
– Tanto sonharam! tanto
sonharam!...
– Mas foi a Noite então?...
– A Noite. Uma primavera
negra, feita de emoção e de noite. Eles só deitam flor à noite e só podem
sonhar noite.
– São afinal, é certo,
sonhos. Uns parecem estátuas vivas, outros são disformes...
– Eu tenho visto. É uma
amálgama singular. Criaturas de fogo, outras de crime. Di-las-íeis revolvidas,
homens e sonhos misturados, um rio que tudo acarrete...
– O que eles sonhariam para
chegar a materializar!
– De cada canto
surgem. É inesperado e imprevisto. E dos sítios mais negros é que eles irrompem
em brasa. Ontem vi um que parecia uma flor – branco, todo branco ou de luar
gelado...
– E falam!
– Falam, pregam! Ouve-lhe
os gritos?
Era na realidade uma
mistura de sonho e vida. O bairro leproso estremecia. O Prédio, queria ele
própria criar. O rio subterrâneo estropia cóleras, engrossara, rompera para a
luz. E a Árvore imensa enchia o mundo. Não era uma árvore como as outras,
cheias de frescura e rumores – uma construção viva, com pernadas e folhas que
se agitam, um gigante forte e simples. A Árvore era enorme e só dor,
esbranquiçada e só dor. E aquela dor materializada e de pé, chamava todos os
desgraçados, atraía-os de muito longe até ao fundo do saguão, em frente do
hospital de pedra, compacto, e monstruoso. Noite revolvida até às entranhas,
fisionomias revolvidas até ao âmago – espectros de ladrões, de prostitutas e de
pobres... À roda a cidade confusa e indistinta, léguas de pedra uniforme, e
para lá mais pedra aglomerada. – A cidade era odiosa ou a vida é que era odiosa?
Falaram baixo. Depois
calaram-se... A Árvore vibrava toda sensibilidade, duma vida só dor, duma vida
irreal e estranha – só dor...
Silêncio. E eles no saguão
imundo viram primeiro (todos encolhidos, e encostados uns aos outros) uma paisagem ao luar. Choupos direitos. Uma poça com limos. E o
luar trespassando as camadas das folhas, até reluzir num fio à tona de água...
– Murmúrio leve de folhas... – Talvez fosse a Árvore a falar... A névoa vem do
fundo e flutua em rendas como fantasmas... Ao longe a ternura duma fonte caindo
pingue que pingue numa lasca de pedra – e mais perto outra coisa, outra coisa
maior, um sentimento que nos põe em comunicação com não sei quê que não
entendemos, mas cujas mãos benéficas sentimos – uma lei que domina os pobres
bichos e o homem só reflexão e cérebro, impressão angustiosa que nos leva
aturdidos...
– Que sentes?
– Espera! espera!
– Ouço gritos e vejo uma
grande brancura! O que eu ouço! o que eu ouço de vozes!
– É a Árvore!
– Calem-se! calem-se!...
Calaram-se todos e depois
durante um momento, sob o luar magnético tiveram a visão nítida duma floresta
imensa... Viram a floresta prodigiosa, a floresta calada, sob o jorro. branco
do luar. Silêncio e depois do silêncio corre um murmúrio que vinha de muito
longe, agitou as folhas, trouxe consigo vozes de bichos, ruídos indistintos e
por fim o vento carregado de pólen e a voz dum mar que se espraia. Tudo outra
vez se imobilizou e ouvia-se cair o jorro do luar todo branco sobre a floresta
impenetrável... O rumor dum bicho na folhagem tornou o
silêncio mais profundo e mais sagrado. Na noite, e muito. ao longe, reluzia uma
estrela enorme... Os desgraçados olhavam sufocados. Cheirava-lhes a terra,
pressentiam outra vida desconhecida. Aquilo durou minutos – mas durante esses minutos
alguns seres compreenderam, outros deram as mãos e as mulheres choravam. Só o
homem que vivera sempre emparedado ficara mais desvairado depois da comunicação
da Árvore e pregava aos desgraçados.
Viam-no curvar-se sobre os
míseros e falar-lhes baixo, precipitado, rouco. Deixava-os a cismar de olhos
febris.
As suas palavras ardiam. E
subterrâneo, incansável, férreo, minava. Ia à procura de ódios para os atiçar.
Pregava-lhes, apontando o Hospital:
– É ali! ali!...
Falava dos montes e das
águas, mas confundia tudo: aquela noite de Março esbraseara-o.
– É uma coisa esplêndida! É
ao mesmo tempo a frescura e o fogo, um incêndio verde que pacifica e estanca
toda a sede. Águas a rolar e árvores esgalhadas falando... Sabeis o que são
árvores? Há ali montanhas de riqueza, tesouros para lá da dor... Deitai abaixo!
deitai-o abaixo!...
Todos os desesperados
conheciam essa figura que surdia com a noite.
– Há montes todos de ouro
erguidos para o céu, há ouro nas árvores, ouro nos montes e no tojo... Todas de
ouro são as águas a rolar. Há seda viva e árvores... Há
árvores! E tantas vozes a falar... Tudo fala! tudo fala!
E os pobres, os transidos,
os homens encardidos de desgraça, escutavam-no e punham-se a falar sozinhos.
Primeiro a Árvore, e depois aquelas palavras, empoeiravam-nos de inquietação e
tristeza. A noite era como um brasido que alguém remexe. Ouvira-se o primeiro
murmúrio, a zoada como um rio que incha e trasborda.
– Há ouro! para lá há ouro!...
E era como se do globo
tivesse irrompido uma torrente de sonho. O Prédio parecia abalado. Todo aquele
terriço de criaturas o esbraseara.
– Tanto sonharam! tanto
sonharam!...
Pobres, que fariam senão
deitar as mãos tábidas a um outro universo que eles pressentiam ígneo? À força
de sonhar materializaram o sonho.
Ei-los gastos e ardidos.
Depois de dar luz, um toro converte-se em cinza, e no rescaldo todos os toros
se confundem. Não conheciam da vida senão a dor. Gesticulavam, olhavam
absorvidos, perdidos de emoção, como quem descobre nova terra, e deitavam-se a
falar uns para os outros sem se entenderem. Nem sequer se ouviam. Cada um
narrava a sua ânsia, dizia a história pobre ou doirada da sua alma. Pelos
sótãos, nas mansardas e nos saguões, encontrava-se aquela levada cismática,
tolhida de sonhar. Duns para os outros ia o emparedado e falava-lhes com
palavras que os doloriam e lhes faziam precipitar as
ilusões represas...
É verdade afinal que há
árvores e fontes todas de ouro? Por que é que eu nasci para sofrer? Por que é
que existem vidas, como a de certas sementes, que não chegam a ter força de
germinar?
Tocados dessa primavera
negra cada um, à força de sonhar, criara uma figura, desdobrava-se. Dos seres
trágicos, rotos, calcados, nascera uma aparição de beleza estranha; de outros
névoa, fantasmas. Todos traziam o seu companheiro – e havia homens acompanhados
por árvores, pelo ódio, pelo riso e por monstros... Um momento e estas figuras
adquiriram a sua verdadeira expressão, um momento e Árvore, Hospital, pedras,
tiveram outra significação... E os desgraçados querem ver. Querem ver o que se
passa para lá das pedras, para lá do mundo atroz.
– Ei-los que deitam flor!
ei-los que deitam flor!...
E na noite eles botavam
realmente flor, sonhos tristes, mealhas, almas que nem sequer podiam exalar
ilusões, sonho de sebes, de calhaus, de tudo que no planeta se cria de
ignorado, de calcado e de humilde.
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