Lá
fora, uma chuva miudinha escurecia a tarde melancolicamente, parecendo encher a
atmosfera, por igual, de uma fumarada espessa. Entreviam-se apenas, embaciados,
os tufosos cimos de algumas árvores, com os ramos pendentes, imóveis, como
dorsos que se curvassem, encolhidos, para resistir melhor à chuva fria. Através
dos vidros, onde brilhavam raras pérolas de chuva, passava a tristeza e a
sombra da tarde que penumbravam dolorosamente a mornez do quarto. E Guiomar,
alva na alvura do leito, num convicto pressentimento de morte, recordava...
recordava... lentamente, como saboreando a vida.
Fora
também no inverno, mas num dia cheio de luz, radiante, ao aroma de acácias todas
em flor, orvalhadas de oiro, que o primeiro beijo tão sonhado, tão apetecido —
e tão retardado —, se trocara entre ela e Eduardo, num inexplicável momento heroicamente
ousado, fundindo por uma outra, mal-prevista maneira aquelas duas almas que,
havia muito, os olhares, as palavras, os silêncios, os contatos longos e
ingênuos, tinham docemente fundido já... Lembrava-se bem, sempre se lembraria
bem: uma perfumada aragem, de mansinho, como se fora tocada por um anjo,
traspassava num murmúrio alegre as louras copas rendilhadas, e uma lenta e rara
chuva de oiro caíra, numa enternecida bênção do céu, quando os seus lábios se
uniram. O sol aquecia palidamente a beleza da tarde...
Depois,
mal ficara absorta naquela perturbação, Eduardo beijara-lhe ardentemente a
garganta com um beijo súbito, devorador, — e ela, que nunca havia pensado em um
beijo assim, muito agitada por aquela imprevista e estonteante revelação,
sentiu-se logo resvalar para um torpor estranho, e deixou-se cair,
desfalecendo-se, de encontro ao peito dele, de encontro ao seu peito forte,
como haste débil que se ampara, flexuosa, a um tronco robusto. E entre a
indecisão nevoenta do seu novo sonhar, ela pressentia que as suas almas se
aproximavam intimamente e se confundiam numa só. E quando se arrancara de junto
dele, da pressão dos seus braços cariciosos, parecera-lhe que nele deixara toda
a sua alma e que, no vazio que em si ficara, vagueava inebriante, indelével, o
perfume da alma de Eduardo...
E
recordava... recordava..., lentamente...
Ao
encontrar-se, depois, sozinha a cismar, afigurava-se-lhe que era outra. E sim,
era outra! A sensação daqueles beijos, sob o conchego carinhoso e discreto das
árvores, que aromatizavam vivamente a solidão mais terna do jardim, refizera-lhe
sem dúvida todo o ser, dando-lhe anseios indefiníveis, desejos sem forma,
obscuros, uma diversa atração da sua alma e da sua carne para ele. Havia nela
um vago prazer aflito que procurava com avidez, com desespero, uma satisfação
ignorada, penosamente inapreensível.
Começou
então a sentir-se mais dele, mais para ele, e na sua presença, às vezes,
contrariando os anelos que a endoidavam, queria resistir à tentação de o beijar...
Mas, ao primeiro beijo quente de Eduardo, ela apertava-o muito e muito, esmagando
com sofreguidão a tenrura dos seios contra o peito forte dele, e desejando que ele
a cingisse bem, a estreitasse com vigor, a magoasse contra a sua carne em
abraços cada vez mais intensos, e lhe sorvesse demoradamente os beijos
mordendo-lhe os lábios... E ficava por fim sem ideias, abstrata, mole, sustida
nos braços de Eduardo... — e insatisfeita. Que enigma torturante vivia no seu
corpo?
Quando
estava longe de Eduardo tinha longos sonhos, ora deslizantes, ora inconexos,
que muitas vezes a imobilizavam em êxtases sem fim. E pensava em muitas coisas
que lhe havia de contar, mil preguntas, mil dúvidas, mil receios, mil promessas...
e, mal chegava ao pé dele, sentia-se fascinada, com a cabeça vazia, sem que
nela relampejasse uma ideia, e um zumbido misterioso lhe fazia vibrar todos os nervos...
Então, só queria ver Eduardo, os seus olhos, os seus gestos, a sua boca...
Acabava por lhe fixar os lábios, finos, palpitantes, esperando com ânsia
medrosa que ele a beijasse, — e as duas bocas, úmidas, suspirantes, sugavam-se
num frenesi de beijos...
E,
lentamente, recordava... recordava...
Recordava
toda a sua ventura inquieta, sobressaltada, do tempo de solteira. Revivia por miúdo,
sem ordem, instantes da sua vida, ainda os mais fúteis, como quem esfolheia um
livro amado e conhecido, para trás, para diante, lendo aqui, lendo acolá...
Ele
brincava também. Era quando parecia voltarem ao tempo de crianças, e um ruidoso
contentamento os unia, obscurecendo-lhe, a ela, venturosamente, os anseios
enigmáticos, que a torturavam, com delícia embora.
E como Eduardo porfiava em troçar dos temores supersticiosos
que ela tinha amiúde! Como ele se rira, num dia de novembro, quando lhe
oferecera um fino punhal de cabo de marfim, e ela, quase chorosa, se tomara de
apreensões assustadas, pensando logo em mortes sinistras! E Eduardo, rindo
sempre, apontara uma densa moita de flores em cachos rubros, dizendo que já lhe
parecia haver sido uma onda de sangue fumegante que roçara por aquelas
florescências e as tingira assim tragicamente. E brandia ao sol a lâmina luzente,
arrepiante, delgada como um estilete, onde bailavam reflexos de gelar. Como ela
se lembrava bem!
E,
ao cabo, fora-se acostumando àquele punhalzito, e ei-lo ali estava perto, na
mesa do seu quarto, morando honradamente entre livros, para os abrir.
Talvez
fossem tolarias as crenças dela, talvez! Intrigas entre os dois, porém, só as
houve quando Eduardo lhe dera um ramo de formosas dálias! E que formosas! —
Seriam tolarias, seriam. Coincidências talvez. Aquilo, no entanto, vinha-lhe lá
de dentro, galgando todos os raciocínios.
Certo
era que se habituara àquele punhal; o tempo lhe havia delido pouco a pouco o ar
terrível, e o tornara por fim em um bom companheiro inofensivo e útil — e até
querido, pois que fora para aquele quarto no dia do seu casamento.
O
seu casamento, a sua vida de casada! Primeiro, ficara aturdida com aquela
ventura excessiva, inédita, que, pelo deslumbramento, a não deixava discernir,
apreciar a felicidade, — qual pupila muito dilatada que não vê por excesso de
luz. Fora como se na concha pequenina das suas mãos, subitamente, de um jato
impetuoso, caíra um sem-número de preciosidades maravilhosas, — indistinguíveis
na sua estonteadora confusão.
Depois,
gradualmente, conseguira deliciar-se, analisando atenta a sua felicidade,
sentindo-a com sabor, ardorosa ou tranquila, em todos os seus aspectos, sempre
queridos, — e o seu viver tornara-se em um delírio de amor.
E
recordava... recordava...
Tão
gratas revivescências, quando, lograda a máxima ventura, ia morrer, encheram-na
de uma tristeza infinita, e aos seus olhos subiu amargamente o calor de
lágrimas comovidas...
—
Anoitecia. Começava a soprar o vento do norte que fremia pelo jardim, em
sussurros lastimosos.
Eduardo
entrou com luz, e a chama lanceolada, oscilante com preguiça, iluminou maciamente
o quarto, povoando-o de sombras e reflexos.
E
as lágrimas de Guiomar, trementes por segundos na luminosidade dos seus olhos,
como estrelas no luar, — como estrelas se lhe desfiaram pelas faces, deixando
rastros cintilantes...
Eduardo
olhou-a doridamente.
O
fulgor daquelas amarguradas lágrimas, cheias de luz suave e triste, penetrou a
alma de Eduardo como um poente de inverno sangrando comoção, e inundou-lha de
mágoa inefável.
Sentou-se
junto dela, na beira da cama, e entre as suas mãos a desfazerem-se em carinhos
serenou-se o rosto de Guiomar, diluindo-se-lhe a dor na leveza sedutora
daquelas mãos, em que a mais sentida e amável ternura corria, cautelosamente.
Dentro
em pouco, porém, os presságios de morte quebraram em Guiomar o seu breve sossego,
e dos seus olhos tristes recomeçou a volatilizar-se uma ilimitável tristeza
que, em ondas iluminadamente travorosas, asfixiava a sensibilidade de Eduardo.
E
ela falou, com voz esmaecida, vagarosamente, da sua morte; falou de que ele a
esqueceria depressa e que outra mulher não tardaria a ser amada por ele. E o
seu ciúme, o seu fogoso ciúme, que tão recalcado latia no mais íntimo da sua
alma, veio-lhe todo, com amargor, aos lábios nervosos. — Morria com aquela pena,
a sua maior pena, invejosa da “outra” que a viria substituir. Quem amaria,
contudo, a Eduardo como ela? quem? Oh, que não acreditasse ele em mais ninguém!
A “outra”, quem quer que fosse, enganá-lo-ia, nunca poderia experimentar a
adoração que ela por ele doidamente experimentava. Só ela o amava, só ela!
ninguém mais saberia amá-lo! E chorava com raiva e com desalento, chamando-o
para si, como no almejo febril de lhe deixar bem gravadas para sempre,
inapagáveis, aquelas certezas.
Eduardo
falou-lhe muito, num murmúrio doce. E, para a aquietar de todo, acabou por lhe
sorver num vibrante e longo beijo as dúvidas, as apreensões, os receios, os
ciúmes, e quedou-se com ela, já confiada, já serena, entre os braços, — e entre
os seus braços a susteve demoradamente, como se ali tivesse a Virgem do Céu, a
Virgem Dolorosa, num singular momento de fugaz sossego.
Deixou-a
por último, com um afago edulçorado de mimo, ficar num amorrinhamente calmo, —
e, prostrado pelas vigílias atentas, deitou-se no sofá, e logo adormeceu
profundamente, ao choro embalador das ramagens, que o vento remexia sem cessar.
Ela
continuou, por largo tempo, esquecida naquela modorra acariciante, como
inerciada pela recordação da voz meiga de Eduardo, mas, pobre dela! acordou
desse bom sonho, para outra vez, horrivelmente, lhe atormentarem a alma os pressentimentos
de morte, as mil aflições que dentro do peito se tinham acalmado para com mais
sanha irromperem, tiranizantes, indomáveis.
Guiomar,
numa obstinada ânsia de distrair a sua angústia, procurou fixar a atenção no
seu quarto amado, que a luz brandamente iluminava. Olhou à direita a janela,
sobre o jardim, e quis só lembrar-se da última vez que a ela esteve: Eduardo
abrira-a, e uma onda viva de frescura se precipitara na tepidez do quarto, e ela
deixara-se envolver deleitadamente por aquele ar sadio, gozando-o na pele,
aspirando-o, deixando-se penetrar por ele até lhe avivar a alma, que se revigorou...
e, voluptuosamente, avançara para o parapeito com os olhos postos no azul
veludoso do céu, deixando-os resvalar depois pelo jardim, até caírem, longe,
nas braçadas mais altas das acácias...
A seguir, mais para lá da janela, a mesa com os livros prediletos; — e queria absorver-se na lembrança das horas felizes que ali passara, antes de encamar de vez...
A
tormenta da sua alma, porém, aflorava sempre, debandando as consolações que
Guiomar buscava desesperadamente.
Ela
porfiava contudo... — E porfiava por embeber-se na contemplação do retrato que,
na sua frente, pendia da parede; era um retrato grande, magnífico, tirado no
dia do casamento, e em que ela e Eduardo, muito juntos, se olhavam com os olhos
a refulgir felicidade.
E
procurava recordações, umas após outras, com frenesi, para abafar os suplícios
que se chocavam dentro do seu coração.
Para
a esquerda, estava o seu único Amor, o seu Eduardo, negligentemente deitado no
sofá; dormia como um justo, com o rosto sereno. Guiomar deixou os seus olhos,
cheios de mágoa e de enlevo, na serenidade daquele rosto amigo, e a sua paixão
imensa pelo companheiro que a tornara tão ditosa, fez calar os desvarios do seu
espírito doente, — e permaneceu como encantada, olhando, olhando o seu único
Amor...
Esta
sua adoração consoladora tropeçou, afinal, com o seu grande sofrer. Eduardo
seria de outra... — e recomeçaram as atribulações da sua alma desgraçada, e
recomeçou Guiomar aflitivamente a correr a vista por tudo quanto se aconchegava
naquele ninho, quase perdido, para que revivescências e saudades viessem
entorpecer as suas angústias doidas...
—
Um sino começou a bater a meia-noite
A
primeira badalada, súbita, áspera, rouca, lacerando a noite com a crueza de um
berro de pavão, sobressaltou violentamente Guiomar. O vento, fora, levantava
das árvores um lamento soturno.
E
outra... e outra badalada... caíram lúgubres, sinistras, numa lentidão funesta,
deixando no ar um rastro de som vibrando funebremente...
Meia-noite?
— Guiomar soergueu-se, numa aflição terrível, apertada a voz num cerrado nó que
a estrangulava; — ergueu-se coberta de suor nevado, abrindo muito a boca e as
narinas, olhando em redor desvairadamente... Quis gritar, gritar muito, chamar
Eduardo... E a garganta retraía-se-lhe dolorosamente, afogando-a.
As
badaladas tombavam vagarosissimamente, em vagar de agonia, — com uma
regularidade imperturbável, inexoráveis.
Meia-noite?
A ânsia mudou-se-lhe, de pronto, em convicção. Adivinhou a hora tremenda, negra
de agoiro; a hora infernal dos sortilégios.
Meia-noite!
Ia morrer. Não ultrapassaria esta hora fatídica. Sentia-o, sentia-o desta vez com
uma certeza absoluta, empolgada pelo desvairamento da superstição.
E
da nebulosidade, que lhe confundia tudo ali dentro, sobressaiu, nítido, o
retrato grande que pendia magnificamente da parede. Aquele retrato crescia,
dançava, animava-se ante os seus olhos atraídos. — Mas era ela? era ela que
estava ali?
Não!
oh, não! Era outra, a “outra” que se encostava a Eduardo, que lho roubava...
Ergueu-se
mais, e mais, estendendo a cabeça louca para o retrato que a fascinava,
mirando-o com uns grandes olhos fulgurantes, fixamente, arquejando e fria...
E
outra... e outra badalada... soaram moribundas, vagamente, desfazendo-se no
rumor do vento...
Ela
ia morrer! e a imagem daquel’outra mulher, na hora da sua morte, vinha
insultá-la! E Eduardo, ali perto, a dormir num descanso infame, porventura a
sonhar já com a “outra”! — Guiomar alargava uma das mãos nervosas, em
atormentada ameaça, para ele e para o retrato, enquanto com a outra apertava freneticamente
a garganta como para desatar o nó que lhe sumia os gritos.
Saiu
da cama, levantou-se num repelão, e, ourada, logo caiu, quebradas as pernas
frouxas. A luz da lâmpada oscilou indolentemente. — Ergueu-se outra vez,
amparando-se ao leito, e, firmando-se aqui, ali, deu algumas passadas mal seguras,
cambaleante; endireitou-se depois, muito direita, como um fantasma de dor, com
o roupão branco descendo em pregas amplas, — e os cabe-los, escorregando-lhe da
cabeça em ondas negras, caíam revoltos nos ombros e escorriam desalinhados para
o peito nu e para as costas nuas.
E
outra badalada, surda, entreouviu-a ao longe, como um eco, num gemido abafado...
Deu
mais um passo, amparando-se, tresvariada, sentindo a tortura da agonia, pungida
pela visão de Eduardo com a “outra”, a beijá-la como a ela, a abraçá-la como a
ela, em tétanos de volúpia... Caminhou, Senhora dos Martírios, Senhora dos
Ciúmes, ofegosa, respirando estridulamente, e segurou-se alquebrada ao
reposteiro da janela. Fora, na trágica negrura da noite, soluçavam estrelas, e
ramos de árvores se mexiam pesadamente, como negras asas de avejões macabros.
E
outra badalada ressoou, metálica, vibrante, como trazida numa lufada de ar
contra a janela.
Recuou
espavorida, — e avançou, convulsionada de terror e ciúme, para a mesa. E
apoiando-se aí, os seus dedos frágeis tocaram, arrepiados, a lâmina acerosa do
punhal, e logo a sua mão, num ímpeto, o agarrou crispadamente.
Prosseguiu,
apavorada, agora sob o retrato, quase tropeçando já com o sofá, onde sempre tranquilamente
dormia Eduardo. — Por cima da sua cabeça, a “outra” abria os lábios, triunfal,
petulante, com sorrir de escárnio... — e a mão de Guiomar encontrava no contato
do punhal energia crescente para o apertar, e na lâmina fina relampagueavam
centelhas que riam, sarcasticamente alegres, como brilhos dos dentes da “outra”
a sorrir...
E,
boiando no cantochão fúnebre do ramalhar das árvores, mais uma badalada se fez
ouvir, cavamente...
A
penúltima? a última? Era o instante do seu fim? — Um frio de neve a amortalhava
já; asfixiava, a garganta contraía-se-lhe num espasmo atroz, esmagavam-lhe o
peito as garras da morte... Queria raciocinar um momento, gritar que lhe
acudissem, salvar-se... e percebeu, através do seu delírio e do seu pavor,
Eduardo, ali defronte, num sono profundo, calmo, provocante, a sorrir, a sonhar
com a “outra”... A “outra”! E, num impulso rápido e louco, cravou a lâmina no
peito de Eduardo, e, como se a vida se lhe esgotasse naquele relâmpago de
energia feroz, foi já o seu cadáver, tombando, que lhe acabou de enterrar o
punhal no coração.
Lisboa, dezembro de 1915.
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Pesquisa e adequação ortográfica: Iba
Mendes (2019)
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