Noite de chuva, desta chuva
miúda que enlameia e entristece como uma angústia. Na rua Sofia passa com o
xale de rasto. Há um clarão de tochas à porta. Vai sair um enterro. Morreu o
pequeno do gato-pingado. Trouxe-a para casa uma noite, a essa criança que
encontrou caída na rua. Um rapaz de dez anos, abandonado e com uma pneumonia...
Que lhe queria o gato-pingado fazer, não me dirão?...
Estava a chorar. Deu-lhe
para chorar sobre o caixão dum garoto, que não lhe é nada. Ele que não tem onde
cair morto, chora o pão que tiraria à própria boca para dar a outro.
Morreu-lhe ontem. É decerto
um gato-pingado a menos.
Primeiros farrapos da noite
a esvoaçar, dessa noite de primavera negra, em que todos se põem a contar
baixinho os seus sonhos à escuridão.
– Deitam flor à noite... –
diz o Astrônomo.
A treva entope os buracos
das ruelas. As tochas têm debaixo da chuva sinistros clarões de incêndio. Vai
uma balbúrdia na rua e o redemoinho da noite traga o bairro
acastelado. Eis o enterro. Vão mulheres perdidas e uma velha a tossir, vai o
Astrônomo, e na frente dum caixão de passarito, comboiando a turba, lá marcha o
gato-pingado, de brandão em punho, chapéu alto e casaca a esvoaçar... A que
irão eles deitar fogo na noite trágica, de lama e chuva? Mulheres perdidas,
ralé, o velho tísico...
Todos os dias desaparece
alguma das mulheres levada para o Hospital. Mas cantam, cantam sempre. Sofia
sorri resignada. Na vida que lhe resta?
O Gebo a sustentar.
Todas as manhãs sobe à
mansarda onde o velho dorme, levando-lhe pão, que ele mastiga com um nó na
garganta. Olha-a com lágrimas e só diz:
– Filha!
Dizem-me: a que recanto
espantoso vai a natureza buscar esta ígnea bondade? A que esconderijo, a que
veio oculto? De que força é que se constrói, de que química é que se forma a
bondade profunda, inabalável, inextinguível, que sustenta e ampara os
pobres?...
As prostitutas, que dantes
odiavam Sofia, chamam-lhe agora menina, depois que a vêem sua igual.
Repartem com ela o pão que ganham, e ao vê-la caída, chorando, ficam aflitas,
porque não sabem consolá-la.
– Mais lhe valia deitar-se
a afogar – diz uma.
– Isto aqui é uma vida de
cão.
Só a Mouca a odeia. Ela que
foi sempre a mais maltratada, maltrata agora. Se pudesse, pisá-la-ia aos pés.
Ela, de quem todos se riam com escárnio, cuspida pelos soldados, quer fazer
sofrer. Não há ser mais degradado, não porque seja má, mas porque é como todas
as criaturas que o homem cria para o gozo.
A princípio todas faziam
sofrer Sofia. Tinham vontade de a rebaixar, de a verem chorar lágrimas de
aflição para a igualarem.
– Cá temos a menina!
– Quem no diria? Não falava
a ninguém a mosquinha morta! E para aprender!
– Deixai-a!
– Deixai-a o quê? Ela é
como as outras.
– Deixai a pobre, que não
faz senão chorar. Vocês não têm coração.
– Também a gente sofre.
Riam-se, empurravam-na para
os piores tratos, mas pouco e pouco, diante daquela dor silenciosa e profunda,
calaram-se. Tratavam-na por menina. Uma queria penteá-la, outra
ajudá-la. Só a Mouca lhe tinha o mesmo ódio.
– Olha lá, ó parida!
– É comigo que fala?
– Faz-te tola! acaba lá com
esses ares de senhora.
Já estou farta. Tu aqui és
tanto como eu, sabes?
– Sei – diz Sofia.
– Tu conheces-me? Olha se
me conheces, senão ensino-te quem sou. Acabou-se! embirro com isso. Pareces uma
sonsinha... Tu falas?
Sofia olha-a silenciosa.
– Ah, tu não falas? Olhas
pra mim com cara de escárnio? Não quero que olhes pra mim, não quero, ouviste?
Ai, não falas? Toma!
E deu-lhe uma bofetada.
– E agora? agora? Quiseste,
aí tens. Toma. Tu aqui és uma desgraçada como eu. Aqui não há meninas. E agora?
agora? pensas que és mais do que as outras?
– Sou mais desgraçada.
E pôs-se a soluçar.
Mas de súbito a Mouca
gritou:
– Perdão! perdoe-me,
menina! Eu era por inveja. Saiba: não a podia ver por inveja. Fui sempre assim,
Não me fique com raiva. Eu dizia cá comigo: Então os outros têm mãe e eu nunca
a tive? Os outros são infelizes um dia, mas eu fui infeliz desde que nasci.
Criaram-me os ladrões, já deve ter ouvido. Tenho sido muito má pra a menina,
peço-lhe que me perdoe. Era por inveja. Peço-lhe que se ria pra mim, para me
mostrar que não está zangada comigo. É boa! eu dizia cá por dentro: hei de
pô-la tão rasa como eu. Que é ela mais do que eu? Sabe por que lhe tinha esta osga?
Por ver que a menina era infeliz e boa pra todos. Eu sou assim, sou como um
cão.
Peço-lhe uma coisa...
Bata-me, para eu acreditar que é minha amiga.
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