7/02/2019

A Morte (Conto), de Raul Brandão



A Morte

Oh eu já não sei bem, pobre de mim, o que e realidade e o que é sonho. Por vezes me parece que o próprio Hospital se põe a falar pela sua boca de pedra.

Em noites de luar, quando tudo para lá se envolve em álgido luar, ei-lo que enternecido conta sonhos rotos e tristes, o sonho dos pobres, dos cegos das estradas, coisas humildes e no entanto vivas, como os fiozinhos de água, que apenas convivem com uma lapa e um farrapo de musgo, esquecidos no globo, mas que exalam uma frescura enorme...

Encontraram ontem o Astrônomo estendido na latrina. Ultimamente ia-lhe no crânio um ruído estranho. Constelações de fogo, mundos e coisas terrenas confundiam-se. Absorto, tremendo de frio dentro do casaco de alpaca, olhava o céu num êxtase. Donde tombara? Da fome ou dum sonho? Consumira-se com um tronco num lar.

Deram com ele caído na tábua molhada daquela ignóbil latrina de casa de hóspedes. Nos seus olhos, mesmo mortos, ficou luciluzindo uma poeira de espanto. Morrera surpreendendo algum mundo desconhecido ou descobrindo outro sonho tão vivo, que, de vê-lo, caíra fulminado? Em torno era o asco: as paredes com dedadas, versos obscenos e legendas prodigiosas – e entre aquela lama o Astrônomo morto era como a claridade das constelações, que luzem até no fundo das latrinas.

Um rio, dir-se-ia um rio, com coisas trágicas à tona. Só a Árvore cresce e à medida que ela cria forças a Mouca se consome. A tosse desconjunta-a. Criou-a a desgraça humana, construiu-a do lodo das ruas e da abjecção. Mas a dor vem e purifica: é como o fogo que torna um galho apodrecido, atirado ao lume, no ramo do ouro mais fulgido. Magra, alta, luziam-lhe os olhos dum brilho estranho. Riem-se os soldados, batem-lhe os ladrões e só ela não ri como outrora. Se a fazem sofrer, a Mouca chora. Um dia ao ver que batiam em Sofia diz-lhe:

– E se nós nos matássemos?

– Cala-te! cala-te!

– Sabe a menina? Eu não sei que tenho, já não me importo de viver. Perdi o amor à vida. Olhe para o meu corpo. Já não tenho senão ossos. Por que será que a gente muda? Diga-me: é p’ramor do velho que se não quer matar?

– É, está calada.

– Eu cá sou assim, que quer? Às vezes, quando não tenho com quem falar, ponho-me a falar sozinha. Antigamente não me lembravam coisas que me vêm agora à ideia. Esta vida sempre é mais negra, não é?

– É.

– Pois é, eu bem digo e mais não conheci outra. Sempre a gente nasce com cada sina! Olhe, quando eu estiver pra morrer, não me deixe ir pra o Hospital.

– Não fales...

– Por quê? Eu bem sei como estou. Dá-se-me bem! A gente tem de morrer, não é? Então quanto mais depressa melhor...

Uma noite que os ladrões espancaram Sofia, a Mouca pôs-se a olhá-la como um cão ao dono. Por fim disse-lhe:

– Vamos ambas ao rio, quer? Eu não me importo de morrer. Mais vale acabar. E a menina? Que ando eu a fazer neste mundo? Se a menina tem medo da água, eu deito-me primeiro ao rio.

– Não, deixa! não te aflijas!...

– Eu, sim! bem me importo!...

De noite muitas vezes tinha aflições, sufocada. Agarrada a Sofia:

– Oh valha-me!...

No entanto falava de curar-se, quando tornasse o sol. Por ora tudo estava transido.

– Na primavera...

– Sim, na primavera.

– Vês a Árvore, vê-la? Assim que tiver flor, é mais quentinho...

Mas veio março e depois abril e que transformação! Quase nada restava da Mouca, escárnio de ladrões e de soldados. Até a voz se lhe sumira...

Dia soturno, de névoa, cinzento e úmido. Começo da noite. Fora, na rua, lama e gritos; dentro as mulheres acendem um candeeiro fumarento. Vai morrer a Mouca.

Limpam-lhe as prostitutas o suor da agonia e pé ante pé vêm os ladrões e os soldados para o redor da enxerga vê-la acabar. Moldado pelo lençol um corpo ressequido e no silêncio da espera ouve-se só a rala aflita, o estertor, a ânsia de quem quer ainda viva e que a morte estagna – mais perto! mais perto!...

O Velho, com a boca enorme some-se no escuro e de lá os seus olhos brilham; à cabeceira Sofia ajeita-lhe as repas curtas e úmidas. O lenço está ensopado de suor de aflição.

– Ajudai-a a morrer – diz uma das mulheres.

– Está a passar?

– Chiu! baixinho...

Chegam-se mais os ladrões e os soldados e curvam-se em volta da enxerga – o Pita, o Morto, os outros. Nas feições cruéis, há espanto e terror.

– Inda fala?

– Chiu!...

Esperam. E a rala enrouquece, mais aguda, como se a morte fosse apertando – mais perto! mais perto!... A Mouca abre os olhos enormes na cara branca e imaterializada:

– Menina! menina, valha-me!...

– Estou ao pé de ti.

– Tenho frio, muito frio...

Juntam-se as caras dos ladrões e dos soldados, todos em roda – e pé ante pé também o Velho se chega para a cama. A Mouca abre os braços e dum lado o Morto, do outro Sofia, seguram-lhe as mãos.

– Aqui está uma manta – diz o Velho baixinho. E apresenta um farrapo de manta coçada.

– Chiu! já não precisa.

– É melhor deitá-la com a enxerga no chão, para acabar de penar – aconselha a patroa.

A Mouca respira aflita.

– Tenho frio... nas mãos, na cara...

Devagarinho, arrepanhando o lençol, rodeada de todos que a tinham maltratado, de todos os que se tinham rido dela, devagarinho se fina; a vida extingue-se-lhe como a última gota dum fio de água que acaba de correr. Haviam ficado em volta imóveis.

Este ato de o espírito se libertar é de tal forma grande, o início do mistério, que até o Pita olhava estarrecido. Fora disse para os ladrões:

– A morte, rapazes, ensina. Não há lição mais formidável. É doloroso e no entanto pacifica. Ver morrer, enche de grandes ideais, filhos!...

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