Eça de Queirós define-se numa frase —
é um inspirado, é um talento. As suas obras são obras de uma fantasia
desgrenhada, convulsa, nervosa. A sua característica literária, mais
profundamente acentuada, é a impressionabilidade imaginativa, é a facilidade de
desenhar perfeitamente, nitidamente, com uma clareza, com uma precisão
fotográfica. Ninguém, como ele, descreve com dois traços uma paisagem, fixando,
apresentando todos os contornos, todas as nuances, todos os claros escuros do
quadro. Ver é fácil, é facílimo. Ver bem, ver num relance todos os pontos
culminantes, a alma, o caráter, a fisionomia do que se quer descrever, é um
talento a raríssimos concedido. No vastíssimo catálogo da literatura francesa,
em cujas fontes a moderna literatura vai beber, destacam-se alguns poucos
vultos, mas esses grandes, mas esses enormes. Sobrenadam Zola, Flaubert, Droz,
George Sand, poucos mais. Do nosso, insignificante e pequeno como é, ainda
assim sobressaem notavelmente os de Eça de Queirós, Teixeira de Queirós, Ramalho
Ortigão e Júlio Lourenço Pinto.
Eça de Queirós possui num grau
intensíssimo essa grande condição. Mais. Todas as suas páginas ao mesmo tempo
que descrevem magistralmente uma paisagem, um quadro, fotografam também a
humanidade, as paixões, os sentimentos. Desce aos abismos profundos, tenebrosos
das consciências e faz a anatomia rigorosa dos espíritos, a anatomia
profundamente verdadeira e nua dos sentimentos nos seus diferentes aspectos e
nas suas distintas manifestações, a anatomia do amor e do ciúme, a anatomia da
cólera e da abnegação.
Por este meio, por este processo é que
Balzac, o imortal autor da Comédia Humana,
criou alguns dos seus tipos, tipos que são, e sê-lo-ão sempre, o resumo de
todos os indivíduos de que se compõe a humanidade.
Essas criações são de todos os tempos
e viveram no passado, como vivem no presente, e hão de viver ainda no futuro.
São eternos, são imutáveis. Outros definem uma dada nação, num dado e num
limitado espaço de tempo.
Os livros de Eça de Queirós estão
neste caso, como também, mas numa ordem um pouco diversa, estão os Lusíadas. Camões define nas suas páginas
de bronze a vida do seu tempo com todos os seus sentimentos, com todas as suas
monstruosas crenças. Eça de Queirós define a vida do seu tempo, a vida da
moderna sociedade portuguesa, combatendo os seus ridículos, as suas chagas, com
as suas grandes gargalhadas fulminantes.
Eça de Queirós é um grande romancista.
No nosso país é o representante de Balzac, de Walter Scott, de Croper. É
realista, mas realista na acepção única, perfeita da palavra.
O realismo é a interpretação da
natureza; é esta a moderna definição de um grande crítico, de um grande
trabalhador, de Gustavo Planche. A sua reprodução, como alguns a definem, não.
Eça de Queirós sorriu-se, servindo-se
primordialmente do primeiro meio, e aceitou o segundo como um poderoso apoio. É
por isso que o temos como um discípulo direto de Balzac, aliando mais de
Flaubert a compreensão do homem exterior. Tem a psicologia de um e a fisiologia
do outro.
Enquanto a estilo, sejamos francos,
tem algumas inexatidões, alguns defeitos, mas a par deles tem qualidades
verdadeiramente admiráveis, qualidades que os sufocam.
No seu último livro, O Mandarim, prova-o bem mais uma vez.
Ali é que se vê o estilista com toda a sua poderosíssima energia. Tem
descrições admiráveis. Tem páginas de um colorido deslumbrante, de um colorido
arrebatador. Ao lê-las sentimos a alma vivificar-se, como se respirássemos a
plenos pulmões uma atmosfera profundamente oxigenada. As frases mordentes,
vivas, pitorescas rompem a todo o instante, como das grandes rochas brota água
viva. A ironia é espontânea. Vem do fundo.
Nesta sua última produção, como ele
mesmo o diz no pequeno prólogo, repousa do áspero estudo da realidade humana, e
entra alegremente no domínio do sonho, do sobrenatural. Abandona os processos
científicos dos seus romances, toma outros, vai descansar à sombra frondosa do
idealismo, como que se rindo da fórmula intransigente dos Lavallois, de que
nada existe fora dos domínios da vida.
O
Mandarim,
como veem, é um esplêndido conto fantástico, de uma fantasia cheia de vida, de
um vigor pouco vulgar. Aqueles tão falados contos de Hoffman, de Edgard Poe,
devem sentir fortes estremeções de espanto ao defrontarem com o recém-chegado —
o que nos sucederia a nós se víssemos destacar-se da penumbra o vulto
zombeteiro de Mefistófeles.
O novo conto é no gênero dos romances
de Júlio Verne, é perfeitamente um conto de viagem, onde a par da ciência, se
encontra um enorme fundo de bom senso.
Talvez que a crítica moderna seja um
tanto severa com ele, mas há de necessariamente curvar-se de admiração. A
crítica moderna queria talvez a adjetivação metódica do conselheiro, as
imprecações grosseiras de Juliana, os desfalecimentos de Luísa e pedia aquele
meio agitado, convulso dos episódios frisantes do Primo Basílio, gostava daquele vertiginoso turbilhão, gostava
poderosamente daquele meio aonde refervem, no grande cadinho depurante do
martírio, a luxúria, o ódio, a vergonha, o desespero. Era isso talvez que a
crítica moderna esperava. Não o encontra. Mas em compensação encontra páginas
de um vigor extraordinário, mas não perscrutadas com a fria precisão de um
matemático.
A cidade de Pequim, por exemplo. Como
descreve bem os bairros militares e os nobres! As ruas, uma de uma
tranquilidade austera, outra cheia de vida ruidosa; as ruas que semelham
caminhos de aldeia; as lojas com as suas tabuletas vermelhas de letras douradas
sobre fundos escarlates, as sedas, as franjas, os esmaltes, as porcelanas de
Ming que sobressaem vivamente do fundo escuro dos balcões!
Aqui descreve com perspicacíssima
sutileza as torres negras do Templo do Céu, a grande Coluna dos Princípios,
hierática e severa como o gênio mesmo da raça, os terraços de jaspe do
Santuário da Purificação. Além mostra-nos o Templo dos Antepassados, o Palácio
da Soberana Concórdia, o Quiosque dos Historiadores, fazendo brilhar os seus
telhados lustrosos de faianças azuis, verdes, escarlates e cor de limão.
Sobretudo a descrição final, a da
noite passada a bordo, é admirável.
É ao anoitecer. O mar, enorme,
profundo, de um azul esbatido, estende-se na imensidão silenciosa das águas. Ao
longe uma longa fita encarnada cerca o horizonte, são os reflexos pálidos dos
últimos raios do sol, parecendo glóbulos inflamados, que dão um tom
profundamente fantástico ao quadro. Os passageiros, no tombadilho, olham
vagamente para aquele surpreendente espetáculo do pôr do sol a bordo, animados
pelos mais desencontrados pensamentos. Este, encostado à amurada, pensa talvez
nos seus pequeninos e louros filhos; aquele no seu longínquo futuro...
Depois a lua nasce, marmórea, redonda
e branca, erguendo-se do nível da água, e numa meia tinta pálida, deslumbrante,
dando reflexos prateados de fosforescência à enorme massa d'água que cerca o
vapor...
É magnífico!
FRANCISCO
MARIA BORDALLO
Bibliografia
Portuguesa e Estrangeira (ano: 1880)
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