A lavadeira
Era a flor das lavadeiras de ***
Chamava-se Raimunda da
Outra-banda.
Outra banda do rio — pois lá
nascera.
Conhecia-a assim.
Um dia levantei-me cedo.
Abri a janela do meu quarto e
olhei para a terra e para o céu.
O dia estava belíssimo. O céu
azul e rosa, a terra alegre. Os passarinhos trinavam nas árvores e o vento
agitava de leve as franças das palmeiras.
Respirei ávido os perfumes da floresta
que traziam as brisas da manhã.
Por debaixo da minha janela
passaram duas mulheres, pareciam mãe e filha.
A mãe não me atraiu a atenção:
era uma velha vulgar.
A filha era mais bonita que a
manhã.
***
Era de estatura meã, tinha a
fronte breve como a de Vênus pagã, cabelos pretos, olhos também negros,
gordinha, cara alegre, o nariz pequeno e um tanto achatado na ponta.
Trazia na cabeça um balaio cheio
de roupa, o que fazia-a corada.
Tinha atrás da orelha um, pequeno
ramalhete de jasmins, isso tornava-a sedutora.
Vestia uma saia amarela com florezinhas
azuis sobre a camisa branca como a pena da garça, debruada por uma renda larga
que deixava ver-lhe o soberbo colo.
Tirei os olhos dela e olhei para
o dia, a manhã era belíssima.
Olhei para a lavadeira, ela era
mais bela que a manhã.
Depois ela voltou uma esquina e
desapareceu.
As auras trouxeram-me ainda em
seu regaço um aroma dos jasmins dos seus cabelos.
Quanto tempo levei a respirar
esse aroma, não sei.
Entrando de novo no meu quarto,
vi a minha espingarda a um canto.
Maquinalmente vesti-me, tomei os
preparos de caça, pus a espingarda ao ombro e saí.
Nunca havia acertado um tiro,
essa espingarda era um luxo campestre, um pretexto para gozar dos encantos das
florestas.
Parti.
Segui o caminho que levara a
lavadeira. Havia nela ainda o perfume dos jasmins dos seus cabelos negros.
Segui-o distraído.
As suçuaranas — a rainha da mata
virgem — podia atravessar-se-me no caminho, sem que eu me lembrasse que trazia
uma espingarda.
***
Leitor, si algum dia fores a*** e
te disserem que existe aí um lago, não crê. É uma mistificação.
Houve, é verdade, em outras eras,
um lago aberto, grande, franco e belo, a acariciar com suas pequenas ondas a
fina e branca areia das suas margens.
Hoje a aninga, as ninféias, e outras
plantas aquáticas, como o mururé e o capim, cobrem totalmente a sua superfície.
Somente aqui e ali se forma uma
bacia de que se aproveitam os banhistas e lavadeiras... para lavarem a roupa e
o corpo.
Mas, apesar disso, convido-te,
leitor, caso fores a*** não deixes de ir visitar o lago ou antes as diversas
bacias que ele forma; há aí paisagens de uma perfeição acabada.
Esse caminho levava ao lago.
Segui-o.
Foram primeiro infrutíferas as
minhas pesquisas.
Com a cabeça pendida, voltava —
sonhando mil sonhos da mocidade — quando um delicioso cheiro de jasmim e uma
risada argentina me fizeram, como a um cão de caça, levantar a cabeça e dilatar
as narinas.
Procurei por todos os lados. Por
entre a folhagem vi como um lençol prateado e nele alguma coisa que se movia.
Aproximei-me e olhei.
***
Ela estava ali.
As águas do lago formavam nesse lugar
uma bacia.
O fundo era de areia alva como a
pétala do bogarim.
As bordas eram formadas pelas
magníficas esmeraldas das folhas do muraré, corada por suas garbosas flores.
Junto à margem, com as águas a
lamber-lhe o tronco, espalhando sua sombra nas águas de cristal da bacia,
elevava-se airosa uma palmeira miriti.
Em uma das palmas do miriti um carachué
cantava.
Mais longe erguia-se uma grande árvore
de cujos ramos pendiam os ninhos aboboriformes dos japiins, que saltavam de
galho em galho, soltando aos ares os seus alegres cantares.
O japiim é o garoto dos pássaros;
o seu canto é irônico, galhofeiro, e, às vezes, insolente.
O sabiá cantava no miriti e um
canto semelhante partia do meio dos japiins.
O sabiá exasperava-se, sacudia
frenético as asas e arrancava da garganta as suas mais belas notas.
Dir-se-ia que no bando de japiins
havia um sabiá, porque um canto idêntico, de notas tão belas, respondia ao
cantor pousado na rama do miriti.
E assim continuavam esse mimoso
duelo à face da natureza.
***
A roupa havia sido lavada e
estendia-se agora sobre a macia relva que bordava a praia.
A lavadeira estava no banho.
Viam-se no chão seus vestidos.
A saia amarela com raminhos azuis
devera ter sido solta de uma só vez da cintura e caíra, formando um círculo,
aos pés de sua dona. Com ele e por baixo dela caiu também a anágua. A camisa
essa estava atirada à beira da praia, bem perto d'água, onde, com medo de
molhar-se — a ingrata — teria abandonado aquela cujo corpo cobria.
Sobre a saia repousava — e
sentia-se que ali fora posto com todo o amor — o ramo de jasmins.
Do regaço líquido das águas
surgiu um corpo trigueiro e esbelto.
O que se via primeiro era uma
cabeça emoldurada por uns cabelos negros e lustrosos como as asas da araúna, a
espelharem-se úmidos sobre o colo e ombros.
Em seguida o pescoço roliço e belo
como da garça, entroncando-se no colo soberbo, moreno e aveludado.
Depois os seios esféricos,
túmidos, de uma admirável pureza de linhas, terminando em ponta aguda,
desafiando desejos e pedindo beijos.
Dois
braços torneados e bem feitos, acabando por umas mãozinhas microscópicas, que
cobriam o seio com pudico recato de mulher bonita.
Tudo isto, todas estas belezas,
envoltas no manto liquido formado pelas águas, cobertas de pingos d'água onde o
sol irradiava fingindo diamantes, fazia-me pensar na igara da lenda
indígena e a mim mesmo perguntava si não era eu o mancebo da lenda, a quem a mãe.
d'água aparecia com todos os seus encantos para o seduzir.
"Foi na taba dos Manaus.
Um dia um moço tapuio, filho do tuxaua,
seguia em uma igara o igarapé que banha a ponta do Tarumã.
Era o mais valente, o mais forte
e o mais belo da tribo.
Na ponta de sua flecha pairava
certeira a morte.
O seu tacape era o terror da onça
e do mundurucu.
E um dia, em uma igara, o
moço seguia o igarapé que banha a ponta de Tarumã.
A tarde ia linda, e o sol,
mergulhando por detrás da coluna, onde se erguia a floresta, dourava as águas
do rio Negro.
E a igara, impelida pelo
braço robusto do moço manaus, cortava ligeira, como a seta do seu arco, as
águas do riacho.
De noite, alta noite, o moço
voltou.
Estava triste e não dormiu.
A mãe dele chorou por ver a
tristeza do filho e quis conhecer o motivo de suas mágoas.
O moço falou assim:
— Ouve, mãe, ouve, porque só a ti
posso contar a dor que me vai n'alma.
Era uma moça linda... como nunca
vi nem entre as filhas dos Manaus, nem dos Mundurucus. Quando a igara vogava,
ouvi um canto longínquo mais doce do que o do carachué, mais terno que o
arrulho da juriti. Era dela. Estava sentada à margem do rio. Tinha tos cabelos
cor de pedra amarela e nele enlaçadas flores do mururé e cantava como jamais
ouvi cantar. Depois seus olhos, verdes como a pedra das icamiabas, fitaram-se
em mim.
Um momento olhou-me e em seguida
estendeu-me os braços, e... o seu corpo esbelto como o açaizeiro, mergulhou nas
águas do igarapé, que resvalaram-lhe pelo dorso branco como as penas da garça.
E o moço calou-se.
A velha ouviu, chorou e disse:
—
Não voltes, filho, não voltes ao igarapé de Tarumã. Essa virgem é a igara, a
mãe d'água. Seu sorriso mata como a flecha do guerreiro e a sua voz é traidora
como a pepéua que se oculta nas folhas. Filho, por Tupã, não voltes ao igarapé
do Tarumã.
A cabeça do moço inclinou-se
sobre o peito e ele ficou mudo.
E no dia seguinte, quando o sol
se punha, a igara cortava ligeira as águas do Tarumã.
O moço manaus nela ia e não
voltou mais à taba de seus pães.
Não souberam mais dele.
Ousados pescadores contavam à noite,
junto ao fogo da oca, que ao passarem de volta de suas pescarias pelo
igarapé de Tarumã, quando a noite vai alta, viam ao longe o vulto de uma mulher
que cantava, e junto dela o de um guerreiro moço.
E se alguém mais atrevido se
aproximava, as águas do rio abriam-se e os vultos desapareciam nelas".
***
Esta poética lenda dos filhos dos
Manaus estava-me na memória.
E ao ver banhando-se a linda
lavadeira de*** lembrei-me da igara.
***
Apesar de sozinha, a gentil
lavadeira não estava sossegada.
Ora seu corpo cortava airoso como
o da irerê as águas claras da bacia sobre as quais boiavam seus negros cabelos,
quando não repousavam úmidos no dorso lustroso. Ora fazia de uma folha, que a
sua mãozinha travessa ia buscar aqui ou ali, uma canoinha, que punha-se a impelir
como o sopro da sua boca mimosa até ela ir ao fundo. E quando se dava o
naufrágio, como si ele a divertisse muito, seus lábios arrochados abriam-se em
um riso alegre e ruidoso, deixando ver duas ordens de dentes pequenos,
apontados e alvos como os jasmins que usava em seus cabelos.
E o brinquedo continuava.
***
Brincava e ria sozinha como as
aves suas companheiras que cantam na solidão.
Como era bela assim!
E o sabiá cantava e ela
escutava-o.
O pássaro notou essa atenção e
estimulado soltou uma escala nítida, estridente, argentina, clara.
Depois começou uma ária,
melodiosa, sublime, em que a sua voz alcançava todos os tons com uma clareza e
perfeição dignas de reparo, sobre os motivos talvez de alguma Lúcia dos
bosques.
Às vezes o canto tomava uns acentos
clássicos, que recordavam Haendel ou Mozart, outras havia nele uma melodia
terna que lembrava Verdi.
Os japiins escolheram o seu
melhor cantor para zombar da ave rei das matas. Ele fez fiasco. Não conseguiu
arremedá-lo. O chilro do pássaro passava do lírico ao épico, do épico ao
bucólico. Ora era pastoril, terno apaixonado. Ora era altivo, arrogante, heroico.
Havia algumas notas que pareciam uma risada. Tinham seu que de chacota. Offenbach
misturava-se com Rossini.
Os japiins estavam mudos,
corridos de vergonha.
E a gentil lavadeira parará de
folgar e escutava, com a bela cabeça erguida, o canto do carachué.
***
Eu também escutava-o e olhava-a.
De repente estremeci.
Por detrás da linda lavadeira
apareceu, primeiro uma cabeça, e depois um corpo, redondo, negro, luzidio,
asqueroso.
Era a sicuriju.
Tinha a boca aberta e desusava
branda e cautelosa sobre as folhas verdes do maruré.
E aproximou-se.
Alongou o pescoço, esmagou com a
repugnante cabeça uma flor, escancarou as fauces e...
E a horrível cobra ia morder no colo
airoso da Raimunda da Outra-banda.
Levantei a espingarda e, rápido,
trêmulo, precipitado, atirei.
O réptil estorceu-se, girou sobre
si mesmo e caiu com a cabeça esmigalhada sobre o mururé.
A lavadeira deu um grito, correu
para a margem, envolveu-se instintivamente nas roupas e fitou os olhos pasmos
na serpente, com as mãos amparando o seio ofegante, como se o coração lhe quisesse
saltar tora.
Foi esse o primeiro tiro que
acertei.
O povo de minha terra crê que
ninguém erra tiro em cobra.
***
Voltei à cidade.
Perguntei pela lavadeira.
Disseram-me seu nome e
contaram-me quem era.
Era casta e pura como a Mani da
lenda indígena.
***
Passaram-se dois anos.
Eu
voltei a ***
Uma tarde estava sentado no
parapeito do alpendre da linda capelinha do Bom Jesus, edificada em uma risonha
colina.
Do sol apenas uns raios vinham
bater nas paredes brancas da capela.
Era Ave Maria.
As lavadeiras, com seus balaios
na cabeça voltavam do lago e passavam em minha frente no lado oposto da praça.
Lembrei-me então da gentil
lavadeira que vira outrora banhando-se nas águas do lago.
Meu amigo A... estava comigo.
Perguntei-lhe pela Raimunda da
Outra-banda.
Respondeu-me: Morreu.
Eu estremeci e, com esse acento
de quem não quer crer uma verdade dolorosa, tornei-lhe:
— Morreu!?... Como?
— Vive hoje com um região, comerciando
nos lagos de Faro.
Disse e calou-se.
***
Alguma coisa oprimiu-me o
coração.
Era o toque plangente de Ave
Maria no sino da capela.
---
José Veríssimo Dias de Matos (1857-1916)
Pesquisa, transcrição e adaptação ortográfica: Iba Mendes (2019)
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