A Granja do
Calhariz
Este nosso Portugal que em tantas coisas é uma terra
de maravilhas, maravilhas na verdade bem tristes às vezes, oferece uma das não
menos curiosas na primeira, na mais grave questão de progresso material que se
pode agitar entre qualquer povo, e sobretudo entre nós. Falo da questão das
reformas agrícolas. É rara a semana em que não se trata na imprensa literária,
e ainda na imprensa política, um ou outro ponto da arte ou ciência de cultivar,
considerada debaixo deste ou daquele aspecto. Escritos há no meio de tantas
publicações que estão revelando em seus autores vastidão de conhecimentos teóricos;
poucos onde se exponham e discutam os sistemas de agricultar nacionais, que nem
todos, nem em tudo são maus; raros onde se nos mostrem verificadas pela prática
própria as doutrinas dos livros estranhos. Entretanto é incontestável que se
escreve muito acerca da agricultura, e traduz-se ainda muito mais. Mas quando
se forceja tanto por espalhar novas, e, talvez no maior número de
casos, melhores doutrinas entre os agricultores, quando todos
falam na criação de granjas experimentais; quando os próprios lavradores e
pessoas afeiçoadas às coisas do campo já pensam, até, em formar associações,
não para agiotar com a agricultura, mas para discutir as reformas razoáveis,
que se podem tentar, não é admirável que exista no país, a cinco léguas da
capital, uma granja modelo dirigida por um cultivador hábil teórico e distinto prático,
o Sr. Gagliardi, sem que os homens competentes anunciem esta boa nova, sem que,
visitando uma e muitas vezes aquele magnífico estabelecimento, deem conta aos
interessados nestas questões dos fatos que aí observaram, dos resultados das
inovações aí levadas a efeito? Em vez de subministrarem aos cultivadores
portugueses as razões científicas, (para a maior parte deles ininteligíveis)
pelas quais se lhes aconselham como preferíveis tais sistemas, tais métodos ou
tais espécies de cultura, não seria melhor, mais perceptível para todos por ao
lado da regra o exemplo, ao lado da teoria o fato, mas o fato positivo,
concludente, irrecusável, porque é desta terra, está aqui, onde todos o podem
verificar? Não valeria isto tanto como as mais úteis páginas de Taer, de
Dombasle, ou de Gasparin, bem ou mal traduzidas, bem ou mal soldadas, mas quase
sempre obscuras para uma população rural pouco ilustrada na sua generalidade? A
mim parece-me que semelhante trabalho, empreendido pelos homens profissionais,
seria um dos melhores, talvez o melhor serviço que poderiam fazer ao
adiantamento agrícola de Portugal. Quem sai de Lisboa e fala com lavradores,
daqueles mesmos que são instruídos, sabe que a repugnância a alterar os
sistemas de longos anos seguidos no país é geral. Esta repugnância, contra a
qual tanto se tem escrito, não é nem um capricho estólido, nem unicamente
aferro irrefletido às usanças do passado. Nasce em boa parte de causas
legítimas. O agricultor vive da sua indústria: um erro, uma experiência com mau
resultado, uma confiança desacautelada em qualquer teoria errônea, que se lhe
inculque num livro ou num jornal, não tem para ele por consequência única uma
mortificação de amor próprio: leva-lhe o pão que há de comer; leva-lhe o pão de
seus filhos. A natureza é tão implacável como as antigas leis do talião e da revindita:
em agricultura, quem comete erros paga-os. Os agrônomos que tanto bradam contra
os preceitos inveterados, e que até certo ponto e em certos casos têm razão,
deviam refletir nisto. Depois, crê-se que todos os nossos cultivadores hão sido
surdos à voz da imprensa? Não, por certo. Tem-se adotado, não um, mas cem, mas
mil conselhos dados por ela. Foram, porém, bons todos esses conselhos? Também
não, por certo. É necessário confessar que muitas vezes se tem discursado em
matérias agronômicas sem consciência, e que muitas mais o camponês tem sido
iludido pelos escritores, iludidos também pelos livros de fora, feitos para
outros climas, para dirigir os amanhos de propriedades rústicas diversamente
constituídas, e cujo sistema de cultivação é determinado por diferentes
circunstâncias econômicas, como procura de produtos variados, facilidade de
transporte, abundância de mercados, preço do trabalho, frequência de capitais disponíveis,
etc. Essas ilusões são fatais. O cultivador, que, movido pelas decisivas
doutrinas, pelas promessas magníficas, pelas invectivas acerbas do jornal ou do
livro que lhe chegou às mãos, tentou em certa escala, na fé da letra
redonda, uma revolução no seu sistema de agricultar, e que tira em
resultado disso uma perda irreparável, pragueja contra a ciência por culpa da
insciência, e fecha-lhe para sempre a porta. Depois não têm faltado
entusiastas, que, arrastados pela poesia bucólica, não rara em muitos livros de
agricultura, e deslumbrados como o Triptolemo de Walter Scott pelas
dissertações dos Columelas e Varrões modernos, se arrojam impetuosos à
conquista de descomunais riquezas, que se lhes prometem, olhando com soberano
desprezo os métodos mais sensatos dos seus vizinhos, mudam tudo, revolvem tudo,
gritam contra a rotina, e os rotineiros e obtêm no
fim de três ou quatro anos uma gloriosa... mendicidade. Estes exemplos (e
prouvera a Deus que, de quinze anos a esta parte, eles fossem apenas cinco ou
dez ou vinte) ainda são mais fatais. Aquele espetáculo aterrador, aquele fruto
amargo do estonteamento e da imprudência é para os ânimos atemorizados a condenação
irrevogável de toda a ciência, de todo o progresso. E, à vista dos fatos, ao
menos considerados superficialmente, como os consideram em geral os habitantes
do campo, podemos acaso negar que esses a quem se dá desdenhosamente a alcunha
francesa de rotineiros, têm até certo ponto razão?
Daqui a necessidade absoluta de espetáculos, de
exemplos contrários: daqui a necessidade extrema de estribar a doutrina escrita
com a pena na doutrina escrita com a charrua, com a enxada e com o alvião. Não
seria bom que se usasse de uma reserva prudente em propagar a parte
especulativa e sobretudo os requintes da ciência, cuja utilidade é contestável
ainda em países mais adiantados, enquanto essa parte não estiver confirmada
entre nós pela apreciação prática em maior ou menor escala? Parece-me que sim.
E todavia, repito, tal apreciação, feita já sobre
muitas questões agronômicas na vasta propriedade de Calhariz, é desconhecida do
público. Alguns curiosos, alguns lavradores, alguns agrônomos têm visitado
aquele estabelecimento, que talvez já podemos chamar o nosso instituto de
Grignon ou de Roville, e que decerto lho poderíamos chamar dentro de quatro
anos, se a morte não houvera privado este país de um ânimo grandioso e amigo do
progresso da Pátria, o defunto duque de Palmela. Mas esses curiosos, esses
lavradores, esses agrônomos têm-se contentado com uma admiração estéril. Se
procederam a inquéritos severos sobre os resultados das diversas culturas
experimentadas naquele estabelecimento, sobre máquinas, adubos, rotações, sobre
todas as coisas, em suma, de que dependem os bons ou os maus sistemas de
agricultar; se mais que tudo, em cada gênero de cultura compararam o custo com
o valor venal do produto, que é a suprema questão agrícola, não o sei eu; mas é
certo que até agora nada se publicou a este respeito que eu saiba. E contudo, o
fazê-lo seria mais útil do que repetir opiniões peregrinas, sem sanção de
experiência, e quem sabe se acomodadas sempre a este solo e a este clima?
Eu não posso fazê-lo: sou nestas matérias um curioso.
Faltam-me os elementos científicos para ser agrônomo. A direção dos meus
estudos foi outra. Amo, porém, ardentemente o progresso moral e material da
terra em que nasci; e vejo que ele deve sobretudo vir do desenvolvimento da
agricultura, da solução racional das questões científicas, econômicas, e até jurídicas
e políticas que podem ter relação com a primeira das indústrias, primeira em
todos os países, mas que entre nós está imensamente acima de quaisquer outras,
e praza a Deus que o esteja sempre. É por isso que escrevo isto, não como
desempenho do dever que incumbe a outros, mas como incitamento aos mais hábeis.
Faço-o também para praticar um ato de justiça. Enquanto a imprensa, durante
quinze anos, clamou debalde aos governos a favor dos institutos agrícolas, sem
os quais está demonstrado até à saciedade que não haverá progresso real na
máxima indústria portuguesa, um simples particular tentava com sacrifício de
avultados cabedais uma empresa que os governos não ousavam tentar, ou que
esqueciam, enlevados na edificação de teatros, de jardins, de praças, de
monumentos, em manifestações luxuárias, indispensáveis para provarmos ao mundo
que nadamos em ouro, e para darmos sabida à superabundância dos lucros dos
nossos quase únicos contribuintes, os cultivadores, que não saberiam a que
aplicar o seu imenso supérfluo, se o tributo os não aliviasse dele para
comprarmos esse luxo das crianças barbadas da ínclita Lisboa. Faço-o, digo,
porque a imprensa devia à memória do falecido duque de Palmela um testemunho de
gratidão pela sua nobre devoção à Pátria, devoção que só com o decurso do tempo
podia ser apreciada devidamente; porque era praticada sem ostentação nem ruído.
Este testemunho, que eu me atrevo a dar em nome do
país, é insuspeito. Nunca procurei a intimidade do duque, nunca traduzi em
convites para a aceitar os sinais de benevolência, a distinção imerecida com
que sempre me tratou, quer em público quer em particular, quando casualmente
nos encontrávamos. Confesso mais: pensava mal dele em muitas coisas; tinha-lhe
esta espécie de antipatia inofensiva que tenho à maior parte dos homens
Políticos do nosso país. Nem na emigração nem na Pátria fui nunca isso a que se
chamava ser palmelista. Começo a sê-lo desde que visitei o
Calhariz; desde que examinei o que ali se tem feito, e sobretudo desde que vi a
correspondência do duque com o Sr. Gagliardi, correspondência que não era
destinada, que não podia sê-lo, a ver a luz pública. O desapego do ouro para
ordenar experiências custosas, de resultado incerto, e a que ele punha uma só
condição, a de poderem redundar em proveito do país, é evidente
nessas cartas, que corrigiram as minhas ideias acerca do homem que as escreveu.
Dou graças a Deus de ter visitado tão tarde a granja
do Calhariz. Hoje as minhas palavras vão murmurar sobre um túmulo, em volta de
pobres cinzas, que não têm poder para a recompensa e nem sequer voz para o
agradecimento. Neste século de grandes corrupções falta muitas vezes esforço
para fazer justiça, quando se pode suspeitar de venalidade ou lisonja o que não
passa de um tributo de admiração legítima.
---
ALEXANDRE HERCULANO
Escrito em 1851, e publicado
em: Opúsculos, 1909.
Pesquisa e adequação
ortográfica: Iba Mendes (2019).
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