7/01/2019

A Granja do Calhariz (Ensaio), por Alexandre Herculano



A Granja do Calhariz
Este nosso Portugal que em tantas coisas é uma terra de maravilhas, maravilhas na verdade bem tristes às vezes, oferece uma das não menos curiosas na primeira, na mais grave questão de progresso material que se pode agitar entre qualquer povo, e sobretudo entre nós. Falo da questão das reformas agrícolas. É rara a semana em que não se trata na imprensa literária, e ainda na imprensa política, um ou outro ponto da arte ou ciência de cultivar, considerada debaixo deste ou daquele aspecto. Escritos há no meio de tantas publicações que estão revelando em seus autores vastidão de conhecimentos teóricos; poucos onde se exponham e discutam os sistemas de agricultar nacionais, que nem todos, nem em tudo são maus; raros onde se nos mostrem verificadas pela prática própria as doutrinas dos livros estranhos. Entretanto é incontestável que se escreve muito acerca da agricultura, e traduz-se ainda muito mais. Mas quando se forceja tanto por espalhar novas, e, talvez no maior número de casos, melhores doutrinas entre os agricultores, quando todos falam na criação de granjas experimentais; quando os próprios lavradores e pessoas afeiçoadas às coisas do campo já pensam, até, em formar associações, não para agiotar com a agricultura, mas para discutir as reformas razoáveis, que se podem tentar, não é admirável que exista no país, a cinco léguas da capital, uma granja modelo dirigida por um cultivador hábil teórico e distinto prático, o Sr. Gagliardi, sem que os homens competentes anunciem esta boa nova, sem que, visitando uma e muitas vezes aquele magnífico estabelecimento, deem conta aos interessados nestas questões dos fatos que aí observaram, dos resultados das inovações aí levadas a efeito? Em vez de subministrarem aos cultivadores portugueses as razões científicas, (para a maior parte deles ininteligíveis) pelas quais se lhes aconselham como preferíveis tais sistemas, tais métodos ou tais espécies de cultura, não seria melhor, mais perceptível para todos por ao lado da regra o exemplo, ao lado da teoria o fato, mas o fato positivo, concludente, irrecusável, porque é desta terra, está aqui, onde todos o podem verificar? Não valeria isto tanto como as mais úteis páginas de Taer, de Dombasle, ou de Gasparin, bem ou mal traduzidas, bem ou mal soldadas, mas quase sempre obscuras para uma população rural pouco ilustrada na sua generalidade? A mim parece-me que semelhante trabalho, empreendido pelos homens profissionais, seria um dos melhores, talvez o melhor serviço que poderiam fazer ao adiantamento agrícola de Portugal. Quem sai de Lisboa e fala com lavradores, daqueles mesmos que são instruídos, sabe que a repugnância a alterar os sistemas de longos anos seguidos no país é geral. Esta repugnância, contra a qual tanto se tem escrito, não é nem um capricho estólido, nem unicamente aferro irrefletido às usanças do passado. Nasce em boa parte de causas legítimas. O agricultor vive da sua indústria: um erro, uma experiência com mau resultado, uma confiança desacautelada em qualquer teoria errônea, que se lhe inculque num livro ou num jornal, não tem para ele por consequência única uma mortificação de amor próprio: leva-lhe o pão que há de comer; leva-lhe o pão de seus filhos. A natureza é tão implacável como as antigas leis do talião e da revindita: em agricultura, quem comete erros paga-os. Os agrônomos que tanto bradam contra os preceitos inveterados, e que até certo ponto e em certos casos têm razão, deviam refletir nisto. Depois, crê-se que todos os nossos cultivadores hão sido surdos à voz da imprensa? Não, por certo. Tem-se adotado, não um, mas cem, mas mil conselhos dados por ela. Foram, porém, bons todos esses conselhos? Também não, por certo. É necessário confessar que muitas vezes se tem discursado em matérias agronômicas sem consciência, e que muitas mais o camponês tem sido iludido pelos escritores, iludidos também pelos livros de fora, feitos para outros climas, para dirigir os amanhos de propriedades rústicas diversamente constituídas, e cujo sistema de cultivação é determinado por diferentes circunstâncias econômicas, como procura de produtos variados, facilidade de transporte, abundância de mercados, preço do trabalho, frequência de capitais disponíveis, etc. Essas ilusões são fatais. O cultivador, que, movido pelas decisivas doutrinas, pelas promessas magníficas, pelas invectivas acerbas do jornal ou do livro que lhe chegou às mãos, tentou em certa escala, na fé da letra redonda, uma revolução no seu sistema de agricultar, e que tira em resultado disso uma perda irreparável, pragueja contra a ciência por culpa da insciência, e fecha-lhe para sempre a porta. Depois não têm faltado entusiastas, que, arrastados pela poesia bucólica, não rara em muitos livros de agricultura, e deslumbrados como o Triptolemo de Walter Scott pelas dissertações dos Columelas e Varrões modernos, se arrojam impetuosos à conquista de descomunais riquezas, que se lhes prometem, olhando com soberano desprezo os métodos mais sensatos dos seus vizinhos, mudam tudo, revolvem tudo, gritam contra a rotina, e os rotineiros e obtêm no fim de três ou quatro anos uma gloriosa... mendicidade. Estes exemplos (e prouvera a Deus que, de quinze anos a esta parte, eles fossem apenas cinco ou dez ou vinte) ainda são mais fatais. Aquele espetáculo aterrador, aquele fruto amargo do estonteamento e da imprudência é para os ânimos atemorizados a condenação irrevogável de toda a ciência, de todo o progresso. E, à vista dos fatos, ao menos considerados superficialmente, como os consideram em geral os habitantes do campo, podemos acaso negar que esses a quem se dá desdenhosamente a alcunha francesa de rotineiros, têm até certo ponto razão?
Daqui a necessidade absoluta de espetáculos, de exemplos contrários: daqui a necessidade extrema de estribar a doutrina escrita com a pena na doutrina escrita com a charrua, com a enxada e com o alvião. Não seria bom que se usasse de uma reserva prudente em propagar a parte especulativa e sobretudo os requintes da ciência, cuja utilidade é contestável ainda em países mais adiantados, enquanto essa parte não estiver confirmada entre nós pela apreciação prática em maior ou menor escala? Parece-me que sim.
E todavia, repito, tal apreciação, feita já sobre muitas questões agronômicas na vasta propriedade de Calhariz, é desconhecida do público. Alguns curiosos, alguns lavradores, alguns agrônomos têm visitado aquele estabelecimento, que talvez já podemos chamar o nosso instituto de Grignon ou de Roville, e que decerto lho poderíamos chamar dentro de quatro anos, se a morte não houvera privado este país de um ânimo grandioso e amigo do progresso da Pátria, o defunto duque de Palmela. Mas esses curiosos, esses lavradores, esses agrônomos têm-se contentado com uma admiração estéril. Se procederam a inquéritos severos sobre os resultados das diversas culturas experimentadas naquele estabelecimento, sobre máquinas, adubos, rotações, sobre todas as coisas, em suma, de que dependem os bons ou os maus sistemas de agricultar; se mais que tudo, em cada gênero de cultura compararam o custo com o valor venal do produto, que é a suprema questão agrícola, não o sei eu; mas é certo que até agora nada se publicou a este respeito que eu saiba. E contudo, o fazê-lo seria mais útil do que repetir opiniões peregrinas, sem sanção de experiência, e quem sabe se acomodadas sempre a este solo e a este clima?
Eu não posso fazê-lo: sou nestas matérias um curioso. Faltam-me os elementos científicos para ser agrônomo. A direção dos meus estudos foi outra. Amo, porém, ardentemente o progresso moral e material da terra em que nasci; e vejo que ele deve sobretudo vir do desenvolvimento da agricultura, da solução racional das questões científicas, econômicas, e até jurídicas e políticas que podem ter relação com a primeira das indústrias, primeira em todos os países, mas que entre nós está imensamente acima de quaisquer outras, e praza a Deus que o esteja sempre. É por isso que escrevo isto, não como desempenho do dever que incumbe a outros, mas como incitamento aos mais hábeis. Faço-o também para praticar um ato de justiça. Enquanto a imprensa, durante quinze anos, clamou debalde aos governos a favor dos institutos agrícolas, sem os quais está demonstrado até à saciedade que não haverá progresso real na máxima indústria portuguesa, um simples particular tentava com sacrifício de avultados cabedais uma empresa que os governos não ousavam tentar, ou que esqueciam, enlevados na edificação de teatros, de jardins, de praças, de monumentos, em manifestações luxuárias, indispensáveis para provarmos ao mundo que nadamos em ouro, e para darmos sabida à superabundância dos lucros dos nossos quase únicos contribuintes, os cultivadores, que não saberiam a que aplicar o seu imenso supérfluo, se o tributo os não aliviasse dele para comprarmos esse luxo das crianças barbadas da ínclita Lisboa. Faço-o, digo, porque a imprensa devia à memória do falecido duque de Palmela um testemunho de gratidão pela sua nobre devoção à Pátria, devoção que só com o decurso do tempo podia ser apreciada devidamente; porque era praticada sem ostentação nem ruído.
Este testemunho, que eu me atrevo a dar em nome do país, é insuspeito. Nunca procurei a intimidade do duque, nunca traduzi em convites para a aceitar os sinais de benevolência, a distinção imerecida com que sempre me tratou, quer em público quer em particular, quando casualmente nos encontrávamos. Confesso mais: pensava mal dele em muitas coisas; tinha-lhe esta espécie de antipatia inofensiva que tenho à maior parte dos homens Políticos do nosso país. Nem na emigração nem na Pátria fui nunca isso a que se chamava ser palmelista. Começo a sê-lo desde que visitei o Calhariz; desde que examinei o que ali se tem feito, e sobretudo desde que vi a correspondência do duque com o Sr. Gagliardi, correspondência que não era destinada, que não podia sê-lo, a ver a luz pública. O desapego do ouro para ordenar experiências custosas, de resultado incerto, e a que ele punha uma só condição, a de poderem redundar em proveito do país, é evidente nessas cartas, que corrigiram as minhas ideias acerca do homem que as escreveu.
Dou graças a Deus de ter visitado tão tarde a granja do Calhariz. Hoje as minhas palavras vão murmurar sobre um túmulo, em volta de pobres cinzas, que não têm poder para a recompensa e nem sequer voz para o agradecimento. Neste século de grandes corrupções falta muitas vezes esforço para fazer justiça, quando se pode suspeitar de venalidade ou lisonja o que não passa de um tributo de admiração legítima.

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ALEXANDRE HERCULANO
Escrito em 1851, e publicado em: Opúsculos, 1909.
Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019).

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