7/15/2019

A força do silêncio (Crônica), de Sylvio Floreal


A força do silêncio
(Para o Sr. Alfredo Duprat, com a simpatia que não cabe nesta página)

Assim como uma árvore que, para garridecer a sua copa e revigorar os rebentos fústeis e os gomulos tenros, mergulha com sofreguidão as raízes nas solidões subterrâneas, para sugar do seio pletórico da natureza a seiva que a robustece, fazendo-a vicejar entre a dulia ameníssima dos pássaros e a radiação apoplética da luz, também deve o homem, para abastecer o celeiro dos seus conhecimentos e atletizar as fibras da sua energia, procurar um afago no silêncio, um repouso tranquilo e reparador que o soerga à plácida ascensão da vida. O silêncio atua poderosamente sobre os nossos sentidos, dando-nos um batismo de alegria louçã, de alacridade fagueira, de entusiasmo rejubilante e jucundo que nos incute a força, a coragem, a confiança e o otimismo que nos faz amar a vida com mais ardor, com mais senso estético, com mais volúpia — amar enfim a vida pela vida, como um sacerdote ama a Deus para Deus.

No silêncio o homem apela para as forças que estão em latente vigília no âmago da sua consciência, desce no mundo interior ao microcosmo e põe-se em contato com o que há de mais divino e nobre nele, que é a alma.

O silêncio é uma beldade anódina, estanca todos os desfibramentos, todas as dores íntimas, porque com elas tem afinidades. Possui o hidromel para a ala sã e o antídoto para a alma doente; a convalescença para o combalido e o lenitivo para o vigoroso... Condensa a melancolia e dissipa o tédio e acirra as ilusões. Assiste à elaboração dos nossos fantásticos castelos e aos seus desmoronamentos fragorosos. É testemunho único do baque das nossas esperanças, mas, sempre impassível e bom, convida-nos perenemente a fazermos novos edifícios efêmeros com as pedras da ilusão e a argamassa da esperança. No terreno impreciso e problemático da utopia...

O recesso das cavernas sombrias, onde em silêncio absoluto o porejar perene das águas, arrastando a faina do deslizar constante resíduos calcários, forma com paciência esquisitas torres de estalactites e estalagmites, verdadeiras maravilhas da concriação pedregosa que a mão mágica da natureza habilmente executou nessas oficinas rudimentares — foi decerto o atelier tosco onde o homem primitivo colheu as  primeiras noções da arte. Em igual aconchego um arquiteto divorciado da rotina e do afã vertiginoso da vida traça, alinha e conjunta, no recesso de seu gabinete, as torres e as catedrais que extasiam a nossa sensibilidade com essas flores e columelos que sobre o bojo dos torreões das criptas cantam para a amplidão, para a vacuidade azul e silenciosa do espaço, a poesia fulgente da pedra, da cal, do gesso, que como estrofes alcandoradas às reverberações do sol brilham,52 faíscam na pulverização da luz, entoando hosanas ao gênio, ao esforço, ao trabalho, na mais augusta floração do belo, do grandioso,53 do magistral!

Se possuíssemos o dom de decifrar as dores, as mágoas, as misérias e as agonias que estão gravadas com a água-forte das lágrimas, nos evangelários do silêncio, assombrar-nos-íamos seguramente; não pelo pavor que nos causariam as cenas sanguinolentas dos que tombaram na guilhotina, nos cadafalsos e nos fossos das fortalezas, mas as trapaças de angústias, de desditas e de sofrimento, — é a miséria de Camões, o pranto amargo de Dante, o exílio doloroso de Tasso e a surdez do taciturno Beethoven, a dor pungente de Galileu e o desespero místico de Baudelaire, que dizia em silêncio: “tem juízo, ó minha dor”; é o furor desordenado daquele que à força de estudar excitou o cérebro até cavar a própria sepultura, o malogrado Frederico Nietzsche, que fugia dos odientos rumores da sociedade e na sua mesta solitude se confortava dizendo: “o mundo gira em silêncio.”

Há momentos de silêncio na nossa vida que marcam etapas de triunfo, assim como há silêncios que cavam sulcos profundos de derrota! Ele é o confidente de todas as ações de nossa vida, precede às mínimas causas humanas e sucede aos grandes fracassos da nossa existência, discreto como uma esfinge...

O silêncio é próprio fim de tudo.

Quando domina o ambiente que circunda o nosso berço, é sereno e afável, vela sobre as nossas cabeças como um Nume excelso, fazendo a guarda do bem e assistindo ao desabrochar lento, mas persistente, dessa esperança que dorme o sono angelical embalada no berço, nessa concavidade oscilante que já nos ministra as grandes e amargas oscilações do mundo. Quando a parca faz a ronda macabra à volta do leito do moribundo, espreitando o momento azado para amputar com a sua negra tesoura o fio da existência fazendo-nos mergulhar no grande e profundo silêncio do pó, na mansão da imobilidade, no porto agasalhador donde nós empreendemos o surto branco que nos faz demandar a diretriz dos astros, o supremo silêncio das esferas é trágico, apavorante, misto de soluços e gemidos que se abismam no insondável silêncio do nada...

O silêncio tem uma voz maviosa e persuasiva, que nos fala, numa linguagem nostálgica e lassa, todos os mistérios das coisas mudas e todos os segredos das coisas incomunicativas. É o mealheiro divino que guarda em seu bojo as medalhas rútilas que, engastadas na fronte do homem, representam a coroa augusta do trabalho que triunfou.

Enfim, é o sepulcro da agitação e o sustentáculo veemente da placidez que gera o raciocínio, da serenidade que fecunda o talento e do descanso que revigora.

Revista "A Cigarra", 16 de maio de 1918.

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Fonte:
Rafael Rodrigo Ferreira: "O 'literato ambulante': antologia e estudo da obra de Sylvio Floreal - 1918-1928" (Tese). Universidade de São Paulo - USP. São Paulo, 2018. (Imagem: "Sanguínea de Di Cavalcanti")

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