A
força do silêncio
(Para
o Sr. Alfredo Duprat, com a simpatia que não cabe nesta página)
Assim como uma árvore que, para
garridecer a sua copa e revigorar os rebentos fústeis e os gomulos tenros,
mergulha com sofreguidão as raízes nas solidões subterrâneas, para sugar do
seio pletórico da natureza a seiva que a robustece, fazendo-a vicejar entre a
dulia ameníssima dos pássaros e a radiação apoplética da luz, também deve o
homem, para abastecer o celeiro dos seus conhecimentos e atletizar as fibras da
sua energia, procurar um afago no silêncio, um repouso tranquilo e reparador
que o soerga à plácida ascensão da vida. O silêncio atua poderosamente sobre os
nossos sentidos, dando-nos um batismo de alegria louçã, de alacridade fagueira,
de entusiasmo rejubilante e jucundo que nos incute a força, a coragem, a
confiança e o otimismo que nos faz amar a vida com mais ardor, com mais senso
estético, com mais volúpia — amar enfim a vida pela vida, como um sacerdote ama
a Deus para Deus.
No silêncio o homem apela para as
forças que estão em latente vigília no âmago da sua consciência, desce no mundo
interior ao microcosmo e põe-se em contato com o que há de mais divino e nobre
nele, que é a alma.
O silêncio é uma beldade anódina,
estanca todos os desfibramentos, todas as dores íntimas, porque com elas tem
afinidades. Possui o hidromel para a ala sã e o antídoto para a alma doente; a
convalescença para o combalido e o lenitivo para o vigoroso... Condensa a
melancolia e dissipa o tédio e acirra as ilusões. Assiste à elaboração dos
nossos fantásticos castelos e aos seus desmoronamentos fragorosos. É testemunho
único do baque das nossas esperanças, mas, sempre impassível e bom, convida-nos
perenemente a fazermos novos edifícios efêmeros com as pedras da ilusão e a
argamassa da esperança. No terreno impreciso e problemático da utopia...
O recesso das cavernas sombrias, onde
em silêncio absoluto o porejar perene das águas, arrastando a faina do deslizar
constante resíduos calcários, forma com paciência esquisitas torres de
estalactites e estalagmites, verdadeiras maravilhas da concriação pedregosa que
a mão mágica da natureza habilmente executou nessas oficinas rudimentares — foi
decerto o atelier tosco onde o homem
primitivo colheu as primeiras noções da
arte. Em igual aconchego um arquiteto divorciado da rotina e do afã vertiginoso
da vida traça, alinha e conjunta, no recesso de seu gabinete, as torres e as
catedrais que extasiam a nossa sensibilidade com essas flores e columelos que
sobre o bojo dos torreões das criptas cantam para a amplidão, para a vacuidade
azul e silenciosa do espaço, a poesia fulgente da pedra, da cal, do gesso, que
como estrofes alcandoradas às reverberações do sol brilham,52 faíscam
na pulverização da luz, entoando hosanas ao gênio, ao esforço, ao trabalho, na
mais augusta floração do belo, do grandioso,53 do magistral!
Se possuíssemos o dom de decifrar as
dores, as mágoas, as misérias e as agonias que estão gravadas com a água-forte
das lágrimas, nos evangelários do silêncio, assombrar-nos-íamos seguramente;
não pelo pavor que nos causariam as cenas sanguinolentas dos que tombaram na
guilhotina, nos cadafalsos e nos fossos das fortalezas, mas as trapaças de
angústias, de desditas e de sofrimento, — é a miséria de Camões, o pranto
amargo de Dante, o exílio doloroso de Tasso e a surdez do taciturno Beethoven,
a dor pungente de Galileu e o desespero místico de Baudelaire, que dizia em
silêncio: “tem juízo, ó minha dor”; é o furor desordenado daquele que à força
de estudar excitou o cérebro até cavar a própria sepultura, o malogrado
Frederico Nietzsche, que fugia dos odientos rumores da sociedade e na sua mesta
solitude se confortava dizendo: “o mundo gira em silêncio.”
Há momentos de silêncio na nossa vida
que marcam etapas de triunfo, assim como há silêncios que cavam sulcos
profundos de derrota! Ele é o confidente de todas as ações de nossa vida,
precede às mínimas causas humanas e sucede aos grandes fracassos da nossa
existência, discreto como uma esfinge...
O silêncio é próprio fim de tudo.
Quando domina o ambiente que circunda
o nosso berço, é sereno e afável, vela sobre as nossas cabeças como um Nume
excelso, fazendo a guarda do bem e assistindo ao desabrochar lento, mas persistente,
dessa esperança que dorme o sono angelical embalada no berço, nessa concavidade
oscilante que já nos ministra as grandes e amargas oscilações do mundo. Quando
a parca faz a ronda macabra à volta do leito do moribundo, espreitando o
momento azado para amputar com a sua negra tesoura o fio da existência
fazendo-nos mergulhar no grande e profundo silêncio do pó, na mansão da
imobilidade, no porto agasalhador donde nós empreendemos o surto branco que nos
faz demandar a diretriz dos astros, o supremo silêncio das esferas é trágico,
apavorante, misto de soluços e gemidos que se abismam no insondável silêncio do
nada...
O silêncio tem uma voz maviosa e
persuasiva, que nos fala, numa linguagem nostálgica e lassa, todos os mistérios
das coisas mudas e todos os segredos das coisas incomunicativas. É o mealheiro
divino que guarda em seu bojo as medalhas rútilas que, engastadas na fronte do
homem, representam a coroa augusta do trabalho que triunfou.
Enfim, é o sepulcro da agitação e o
sustentáculo veemente da placidez que gera o raciocínio, da serenidade que
fecunda o talento e do descanso que revigora.
Revista
"A Cigarra", 16 de maio de 1918.
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Fonte:
Rafael Rodrigo Ferreira: "O 'literato ambulante': antologia e estudo da obra de Sylvio Floreal - 1918-1928" (Tese). Universidade de São Paulo - USP. São Paulo, 2018. (Imagem: "Sanguínea de Di Cavalcanti")
Fonte:
Rafael Rodrigo Ferreira: "O 'literato ambulante': antologia e estudo da obra de Sylvio Floreal - 1918-1928" (Tese). Universidade de São Paulo - USP. São Paulo, 2018. (Imagem: "Sanguínea de Di Cavalcanti")
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