7/15/2019

A força do número (Crônica), de Sylvio Floreal


A força do número

Se “o homem é a medida de todas as coisas”, como disse Protágoras, um povo organizado, e consciente de sua força numérica, representa a medida do seu país, na proporção direta da sua expansão cívica e mental.

Diz a sabedoria das nações que “a união faz força”. De fato, se um país não tiver estatisticamente catalogados todos os seus habitantes, a sua existência é menoscabada e ridicularizada pelos outros países, onde a força do número fala eloquentemente, conquistado e levado a cabo por um trabalho paulatino de recenseamento. Na justa das competições, os povos que não tiverem uma estatística rigorosamente exata de sua quantidade sofrerão uma baixa deplorável e um reproche doloroso dos que são fortes e audazes, organizados e compactos.

Os povos não fazem sentir a sua influência somente pela capacidade intelectual; entra também em questão, e influi consideravelmente, a sua força numérica, que serve de pedestal onde se apoia a estátua dos valores conquistados no campo das lutas da inteligência. No cenário das conquistas materiais e morais, os povos, em todos os tempos, desfilaram galhardamente, sempre que as suas forças, obedecendo a uma ordem metódica de unificação, tenham sido congregadas e regimentadas. No campo espiritual, vence a força física equilibrada e racional; na arena material de braço e do peito, vence a força do número, quando bem-intencionado e guiado.

A pujança intelectual no mundo, dá foros de civilização; a potência numérica granjeia, perante a face das nações, prerrogativas de riqueza e alternativas de independência material.

Jamais tomamos a sério a força do número, devido à nossa extensão territorial e facilidade de vida, que faculta, dentro das nossas fronteiras, viverem como bem lhes apraz, às soltas, mourejando e perambulando de Norte a Sul, sem o mínimo interesse pela terra em que vive, sem a mínima afeição pelo país que desfrutam, e alheios, redondamente, a toda e qualquer manifestação de caráter cívico e entusiasmo de nacionalidade. Que os estrangeiros, transitoriantes, que aqui habitam, como escopo único de fazer fortuna, permanecem indiferentes a tudo que os rodeia, é lógico, porque não lhes sobra tempo para outra coisa e nem ouvem outra voz a não ser o tilintar do vil e magnânimo metal! Mas nós, os brasileiros, sobre quem pesa uma responsabilidade de nação e de raça, não devemos permanecer indiferentes e inativos a tudo aquilo que diz respeito à nossa grandeza e à nossa glória.

Exemplifiquemos rapidamente o que acabamos de dizer: o Brasil inicia neste ano um trabalho que há muito devia ter sido feito, que é um recenseamento rigoroso, para positivar, com cifras exatas, qual é, afinal, o número da população do país.

A política rasteira dos últimos tempos tem estrangulado todas as iniciativas proveitosas e todos os empreendimentos de benefício geral. Agora, que vamos ser alvo dos olhares e das atenções de todo o mundo, devido à passagem do primeiro centenário da nossa independência política, é que, parece, levaremos a um termo feliz esse feito de máxima importância.

É necessário que todos os brasileiros coadjuvem e canalizem os seus esforços, para que o recenseamento desta vez seja um fato que satisfaça o nosso orgulho de povo organizado e de país, onde a civilização, medindo, com seu compasso luminoso, o diâmetro colossal dos oito milhões de quilômetros quadrados, diga, às plagas transatlânticas, que nós aqui já não somos uma horda desenfreada e perdida na vastidão inculta e agreste dos pampas e dos descampados tropicais, mas sim um povo que há muito recebeu a graça bendita da cultura.

Façamos o recenseamento para ao lado da nossa grandeza territorial, contrabalançarmos com a potência da cifra. O recenseamento, como está o governo da Federação empenhado em levar ao cabo, prestará ao Brasil o mais extraordinário dos benefícios. Corrigirá uma infinidade de pequenos e grandes abusos cometidos à sombra da nossa bandeira, como sejam: estrangeiros aventureiros, aqui domiciliados, que registram os seus filhos nas suas pátrias, estrangeiros que desconhecem, embora vivendo por muitos anos em nosso país, a nossa língua e nossa história. E, com uma grande felicidade, eles se arvoram em cabos políticos, quando não degeneram em verdadeiros “empreiteiros de fraudes eleitorais”! Tudo isto acontece por que nós, brasileiros, ainda não amamos a nossa pátria o suficiente para sabermos resguardá-la desses males que muito depõem contra a nossa soberania e a nossa moralidade política.

Recensear que dizer nacionalizar, outorgando a cada indivíduo força e direito de cidadão que pertence a um povo congregado, que, por sua vez, forma uma pátria que ombreia ao lado das outras pátrias, sem delas menoscabar e sem por elas ser desrespeitada.

Sejamos grandes, para cabermos sem nos amesquinhar, dentro das nossas vastas fronteiras.

Euclides da Cunha, cérebro pujante, de arrojo esquiliano, que cantou, nas páginas dos Sertões, a vida, a natureza, a terra, o céu, os rios, as montanhas, os segredos da fauna e os mistérios da flora brasílica, tinha profunda razão quando afirmava “que o único inimigo do Brasil é o próprio brasileiro!”.

É chegado o momento! Mostremos ao grande brasileiro morto que o seu anátema tem pesado tanto sobre a nossa consciência que nós, envergonhados de sermos inimigos de nós mesmos, vamos agora cogitar de fazer a nossa reabilitação perante a sua memória póstuma. E de posse da dignidade que instigada por ele, vibra na alma brasileira, caminhamos galhardamente para novos horizontes, fascinados pela luz da nova madrugada, que desponta e flameja, marcando uma era maravilhosa de ressurgimento e de energia.

Brasileiros! Se há em vós ainda uma fibra da vetusta vergôntea dos antepassados que desbravaram com a força física as selvas, e conquistaram com a força moral os selvícolas broncos, não permaneceis indiferentes a esse gesto de reabilitação e congraçamento que o governo do Catete, conjuntamente com os outros governos dos Estados da República, querem levar a um fim útil e salutar.

Avante brasileiros! Patenteemos, de uma vez para sempre, perante o mundo, a força do número!


Jornal "A Gazeta", 2 de setembro de 1919.



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Fonte:

Rafael Rodrigo Ferreira: "O 'literato ambulante': antologia e estudo da obra de Sylvio Floreal - 1918-1928" (Tese). Universidade de São Paulo - USP. São Paulo, 2018.

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