A esperteza da Macedônia
No outro dia
dona Benta falou dos meninos que começam "sapeando" um brinquedo e
por fim se metem nele e acabam donos de tudo.
– Foi o que
aconteceu na Grécia. Enquanto Atenas, Esparta e outras cidades se debatiam
naquele terrível brinquedo de guerra, um senhor Filipe, rei de Macedônia,
espiava por cima do muro, esperando a ocasião de entrar no jogo. Filipe viu que
Atenas e Esparta estavam exaustas da luta, a ponto de mal poderem consigo;
logo, se ele pulasse o muro e entrasse no brinquedo quem virava o chefe seria
ele. Ser rei da Grécia sempre fora o seu sonho. E como os gregos odiassem os
persas por causa do incêndio de Atenas, o espertíssimo Filipe resolveu entrar
por esse caminho.
- "Vossos
antepassados", falou ele aos gregos, "fizeram os persas recuar; mas
os persas voltaram para suas terras, muitos frescos da vida, e nunca foram
punidos pelo mal feito à Grécia. Por que não tomais vingança? Por que não
organizais uma boa guerra contra eles, não só para castigá-los, como também
para apanhar-lhes os grandes tesouros que possuem?
E depois
acrescentou um finalzinho que era onde estava o gato, isto é, onde estava
escondida a ideia secreta de Filipe:
– "E
eu, que sou o grande guerreiro que sabeis, eu me juntarei convosco para vos
ajudar".
Ninguém
pareceu perceber o que havia bem lá dentro da cabeça de Filipe, exceto um
ateniense chamado Demóstenes.
– Não é o
tal das pedrinhas vovó?
– Sim, é o
mesmo. Quando menino, Demóstenes revelou uma fortíssima vocação para orador,
embora um defeito de nascença o estivesse avisando a cada passo: "Seja
tudo quanto quiser, menos orador". De... Demós... tenes é... era gá...
gago.
– E um gago
a querer ser orador, é mesmo da gente dar com um gato morto em cima até que o
gato mie, disse Pedrinho.
– Pois
Demóstenes não levou com gato em cima, mas deu com pedrinhas na gagueira e
acabou com ela e ficou sendo o mais famoso orador da humanidade. Ainda hoje,
quando a gente quer dizer que um fulano de tal é grande orador diz: "É um
Demóstenes!" Não se lembram daquela festinha do compadre Teodorico, no
casamento da Miloca? Como foi que o Zezinho Xarope começou o seu brinde aos
noivos, no jantar?
– Eu me
lembro, vovó! gritou Pedrinho, e até decorei a frase, de tão bonita que a
achei. Foi assim: "Neste momento solene, em que ergo a minha débil voz
para saudar os nubentes, eu queria ter a eloquência dum Demóstenes para etc. e
tal". Foi só palmas. Na volta para casa a senhora nos ensinou o que queria
dizer nubentes. Recordo-me muito bem.
– Pois é.
Demóstenes foi um orador tão famoso que até o Zezinho Xarope se lembra dele,
neste fim de mundo onde moramos. Demóstenes entendeu de acabar com a gagueira.
Diariamente ia a um ponto da praia onde as ondas se quebravam nos rochedos com
grande barulho. E lá se punha a fazer discursos, com pedrinhas na boca.
– Por que
pedrinhas?
– Para
aumentar a dificuldade. Você compreende que assim embaraçado com as pedrinhas
mais difícil ainda se tornava para aquele gago discursar no meio do barulho das
ondas. Mas insistiu, insistiu até que venceu o embaraço de nascença somado com
o embaraço das pedrinhas – e acabou falando com voz tão alta que dominava o
barulho do oceano. As ondas furiosas eram para ele o público – um público
insolente, que procurava impedir que sua voz fosse ouvida. Demóstenes venceu a
gagueira à força de exercício, e foi aumentando o tom da voz até vencer também
o rumor das ondas. Mais tarde, quando em vez de ondas tinha diante de si
multidões de homens, também sua voz dominava o barulho das ondas humanas – e
Demóstenes ficou o rei dos oradores. Quem o ouvia, era conquistado pela sua
eloquência a ponto de rir ou chorar, conforme o desejo do orador.
Pois bem,
este Demóstenes percebeu as intenções ocultas de Filipe naquele negócio da
vingança contra os persas. "Ele quer tomar conta da Grécia e virar nosso
rei" refletiu, e desde esse momento passou a aplicar toda a força de sua
eloquência contra o esperto Filipe. Fez contra ele doze discursos famosos, que
se chamaram as Filípicas. Quando hoje um orador qualquer pronuncia contra
alguém um discurso violento, todos dizem: "É uma filípica".
Sempre que
os gregos ouviam uma arenga de Demóstenes ficavam com ódio de Filipe; mas
depois iam esquecendo e de novo se deixavam enlear pelos projetos do paciente
rei da Macedônia. Afinal, Filipe venceu. Acabou como queria – rei da Grécia;
mas não pode realizar o seu plano de guerra porque morreu assassinado por um
dos seus generais.
– Isso quer
dizer, vovó que, embora a eloquência valha muito, a esperteza ainda vale mais,
observou o menino.
– Na
verdade, meu filho, a esperteza é tudo na vida. Quem lê a história dos homens,
vê que a esperteza acaba sempre vencendo. Vence até a força bruta.
Filipe tinha
um filho chamado Alexandre, com vinte anos de idade nessa época, o qual passou
a ser rei da Macedônia e da Grécia juntas e realizou grandiosos planos do pai.
Era uma criatura extraordinária esse Alexandre, com todos os dons de
inteligência e da beleza. Quando ainda meninote, aconteceu-lhe um caso famoso,
certa vez em que assistia a uns exercícios de equitação. Sabem o que é
equitação?
– Sei!
Gritou Emília, que tinha estado quieta uma porção de tempo. Equitação é coisa
de cavalo. Andar a cavalo, montar a cavalo, cair do cavalo, puxar o rabo do
cabalo, dar milho para o cavalo, pentear a crina do cavalo...
– Pare, que
já errou! disse dona Benta. Equitação é o nome da arte de montar nos cavalos –
só isso. Puxar rabo de cavalo não é equitação – é reinação perigosa. Mas ao
assistir àquelas provas, Alexandre viu que nenhum dos presentes conseguia
montar certo ginete muito fogoso. Parecia assustadíssimo o animal, dando tais
pinotes e corcovos que ninguém podia firmar-se na cela. Percebendo que o cavalo
estava assustado com a sua própria sobra, Alexandre disse ao pai: "Papai,
dá licença que eu monte esse animal?" O rei Filipe achou graça e riu-se
gostosamente. "Que absurdo, meu filho! Pois não vê que cavaleiros velhos,
peões de primeira ordem não conseguem fazê-lo sossegar?" "Pois eu
conseguirei", afirmou o menino. O pai, sempre a rir-se, deu a licença
pedida, e Alexandre, dirigindo-se até o cavalo, virou-o de modo que ficasse de
frente para sol e, portanto, sem poder ver a própria sombra. Imediatamente o
cavalo sossegou e deixou-se montar. Tão alegre ficou Felipe com a habilidade do
filho, que lhe deu o cavalo como prêmio. Chamava-se Bucéfalo. Esse famoso
corcel foi por muito tempo a montaria predileta de Alexandre; quando morreu
teve estátua, e ainda várias cidades batizadas com o seu nome.
– Que
danadinho, o tal de Alexandre!
–
Habilíssimo. Alexandre teve uma grande coisa consigo, que talvez explique tudo
quanto fez de importante na vida; foi discípulo de Aristóteles, o maior
professor que a humanidade possuiu até hoje.
– A
humanidade, vovó? Não está achando isso meio muito? observou Pedrinho com cara
de dúvida.
– Não é
muito, não. Este Aristóteles escreveu uma porção de livros importantíssimos
sobre todas as coisas – sobre os astros...
–
Astronomia! gritou Pedrinho.
– ...sobre
os animais...
– Zoologia!
– ... sobre
as plantas...
– Botânica!
– ... sobre
a política e sobre o modo da cabeça da gente funcionar, isto é, sobre o
espírito, as ideias, a inteligência, etc. Como se chama esta ciência, senhor
sabidão?
Pedrinho
engasgou.
–
Cabeçologia! gritou lá de longe a boneca.
–
Psicologia, corrigiu dona Benta, estudo da alma ou do espírito. Sobre todos
esses assuntos escreveu Aristóteles, e tão bem que durante muitos séculos...
– Séculos,
vovó?
– Séculos,
sim. Desde o ano de 384 a.C., data do seu nascimento, até hoje, temos 2.327
anos, ou mais de vinte e três séculos. Por todo esse tempo as obras desse
famoso professor vieram ensinando a ciência aos homens. Antigamente, há um
século atrás, os únicos livros de ensino existentes nas universidades eram os
de Aristóteles. Únicos, hein? Hoje a coisa está mudada. Temos outros livros;
mas tais livros não passam dos mesmos livros de Aristóteles, apenas melhorados
com o que a experiência dos homens nos foi ensinando até aqui.
Este
famosíssimo professor foi aluno de outro mestre de igual fama, chamado Platão,
e este Platão foi disciplinado daquele Sócrates que teve que beber cicuta. De
modo que os três homens que maiores serviços prestaram à humanidade como
mestres da ciência, foram... Vamos lá, Narizinho...
– Sócrates,
Platão e Aristóteles.
– Muito bem.
Quando vocês crescerem, não deixem de ler algumas das suas obras. Vão ficar
admirados do vigor da inteligência dos três filósofos gregos. Sócrates não
deixou obra escrita, mas o seus discípulo Platão nos dá todas as suas ideias.
---
José Bento Renato Monteiro Lobato (1882-1948)
Pesquisa: Iba Mendes (2019)
José Bento Renato Monteiro Lobato (1882-1948)
Pesquisa: Iba Mendes (2019)
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