A
caravela
Os
monárquicos oferecem ao
Sr. D. Manuel, como prenda de
casamento uma caravela.
Sr. D. Manuel, como prenda de
casamento uma caravela.
(Dos jornais)
O
seu único rendimento era o seu emprego, um bom emprego que obtivera por
concurso... de tranquibernias eleitorais, num ano em que as listas foram metidas
nas urnas espetadas na ponta das baionetas. Não era, positivamente, a opulência;
mas era a vida farta e sem cuidados, o futuro garantido com uma reforma de
aproximadamente dois contos de réis.
Logo
que se proclamou a República ele aderiu, jurando fidelidade ao novo Regime, funcionário
do Estado e não da Monarquia, português antes de mais nada, patriota acima de
tudo. Tinha o cuidado de só dizer mal das instituições quando se achava entre
amigos, e na repartição, com medo de fazer alguma coisa que o comprometesse,
não fazia coisa nenhuma.
Era
talassa, mas como não tinha outro
rendimento senão o seu emprego, guardava o seu talassismo dentro da maior reserva, não fosse cair-lhe em cima a
demissão, que seria a miséria negra, incapaz como já estava de exercer um
mister lucrativo. Mal conseguia dissimular a sua íntima satisfação quando os
boatos eram mais insistentes de conspirata a rebentar, e justamente nessas
ocasiões ele aparecia por toda a parte lendo com muito interesse os jornais republicanos.
Com
a mulher não tinha segredos, embora ela se mostrasse pouco saudosa do passado,
e insistentemente lhe recomendasse os maiores cuidados, não fosse ele, num desabafo
imprudente, estragar a sua vida. De modo que ao ter conhecimento, pelos jornais,
de que fora apreendida a caravela, foi como se lhe batessem na cabeça
com uma barra de chumbo. A bordo da caravela ia a mensagem, e na
mensagem ia o nome do marido. Era o conselho disciplinar, era a demissão, era a
miséria negra, visto que o seu emprego era o seu rendimento único.
À
hora do jantar, apenas ele entrou em casa, sem lhe dar o beijo de todos os
dias, a voz entrecortada de soluços:
—
Estamos perdidos, não é verdade?
Ele
já sabia do caso, mas nem sequer se mostrava apreensivo.
—
Tontinha! O meu nome está na mensagem, lá isso é verdade, mas não está a minha
letra, e perante o conselho disciplinar eu farei esta coisa simples — afirmar
que não autorizei ninguém a assinar por mim...
Horas
passadas, no café, como uns talassas,
na mesa em que ele estava, dissessem mal da República, pregou uma bofetada no
que lhe ficava mais próximo, e erguendo o chapéu a toda a altura do braço
estendido, gritou com toda a força dos seus pulmões burocráticos:
—
Viva a República!
Os
jornais, na manhã seguinte, encareciam o feito desse patriota, um devotado
amigo da República.
---
Pesquisa, transcrição e adaptação ortográfica: Iba Mendes (2019)
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Sugestão, críticas e outras coisas...