A cara do meu vizinho
Fui hoje informado pelo meu
criado Evaristo de que os ladrões entraram na casa do meu vizinho Nuno e lhe
tiraram das gavetas? todas as suas joias e todo o seu dinheiro.
Embora eu considere muito o meu
vizinho e estime a sua prosperidade essa notícia em nada prejudicou o sabor da
vitela que eu mastigava a preceito. Em todo caso, fui perguntando:
— Então como foi isso?
— Os ladrões saltaram o portão do
jardim, arrombaram a veneziana do quarto de banho e passaram daí para a salinha
de toilette, a qual tem duas portas,
uma para a alcova do Sr. Nuno e outra para o escritório, onde esvaziaram os moveis
principais.
— E ó Nuno?
— O Sr. Nuno dormia.
— E os criados?
— Esses ficam fora, no chalé do
quintal!...
— E o guarda noturno?
O Evaristo levantou os ombros e
esboçou um desses sorrisos significativos, de cuja finura eu nunca supus que ele
pudesse ter o segredo.
— E o cão?
— O cão, como late sempre, já
ninguém faz caso do seu ladrido. Eu bem o ouvi pela volta das ires horas, mas
supus que fosse para quem passava na rua.
— E vá a gente fiar-se em cães...
— Nem neles, meu senhor, nem neles!
— Naturalmente, deixaram o portão
aberto e a tal janela mal fechada...
— Talvez. O Sr. Nuno recolhe-se
tarde e o pessoal que tem na casa é fraco e distraído.
— Veja lá si nos vai
acontecer e mesmo!
— Oh, não há perigo. Enquanto eu
estiver a seu serviço, aqui ninguém entra, a não ser pela porta e com licença.
E baixando a voz, a um tom confidencial:
— aquilo foi gente que sabe os cantos da casa e onde se guarda o dinheiro. O
cozinheiro do Sr. Nuno joga ainda mais do que uma canoa em alto mar...
Pus termo à tagarelice do criado,
engolfando-me na leitura do jornal, onde encontrei um rasgado elogio ao novo
chefe de polícia, cuja administração enérgica e bem orientada já se fazia sentir
por toda a cidade.
Ainda na véspera, ao recolher-me
à noite do meu clube, eu topara com vários homens estirados pela linha dos
cães, uns de encontro aos outros, dormindo nas pedras sem outra coberta que a
do delgado nevoeiro que me umedecia a mim a lã do sobretudo...
Talvez que a boa orientação do
novo chefe de policia se fizesse sentir no nevoeiro!
Passou-me também pela memória o
risco em que eu estivera, horas antes, de ser esmagado por um automóvel, que
descia como um raio a Avenida de Ligação, quando eu a percorria como um simples
mortal, que era a pior qualidade que eu podia ter no momento! É verdade que o
guarda civil da esquina me ajudou a erguer do trambolhão e sacudiu-me o pó das
calças. Essas é que podem servir de testemunhas da energia que se faz sentir
por toda a cidade...
Sou dos que avaliam a civilização
de uma terra pela sua boa ordem policial. A minha não primou nunca por essa
qualidade e mais do que nenhuma outra carece de quem lha imponha com o tal
guante de ferro de que ainda falam os periódicos, em cuja prosa está todo o
alimento mental da nossa época. A nossa epiderme fina gosta de carícias, mas
nem sempre estas produzem o, efeito benéfico de certas massagens cientificas dadas
nos pontos fracos de organismo. Que venha de verdade a mão corajosa desse
lisonjeado reformador de costumes dar um pouco de elegância e de cortesia às nossas
desmazeladas camadas populares e tranquilidade aos burgueses honestos, em cujo
rol estou eu.
***
Quando saí para a rua, a primeira
pessoa que eu vi logo ao pé do meu gradil foi o Muno.
Não sei se por defeito da minha
visão, ou por que efetivamente se tivesse dado um fenômeno esquisito, achei-lhe
a cara muito mais comprida, como a querer virar-se do avesso para patentear-me
as suas decepções.
— Então já sabe?! perguntou-me ele
pressurosamente.
— Sim. Disse-me o meu criado
Evaristo que o senhor foi roubado...
— É exato.
— Mas como diabo puderam os
ladrões entrar no seu quarto, sem que os sentisse?
— Isso é que eu não sei explicar.
Narcotizaram-me...
— Achou-se mal ao acordar?
— Ao princípio não. Levantei-me
até bem disposto; mas quando percebi tudo, fiquei atordoado!
— É natural.
— Acredite que é uma impressão
horrível, esta de um homem saber que esteve à mercê de bandidos, que ao menor
de seus movimentos o poderiam matar, sem que ele tivesse tempo de dar um grito
sequer!
E ainda por cima disto e do
prejuízo, o ridículo; porque ninguém pode negar que a situação de um homem roubado
seja ridícula!
— Os ladrões naturalmente ficaram
dentro de casa...
— É possível... talvez embaixo da
cama!
— Quem sabe...
A esta hipótese, a cara do Nuno
pareceu ainda alongar-se mais e mais se tornou macilenta.
— Mas ouvi falar em arrombamento
de venezianas...
Nuno não respondeu e continuou:
— Pois eu sou um homem corajoso e
durmo sempre com um revólver à cabeceira.
E, depois de uma pequena
hesitação: — pois até mesmo esse revólver os demônios me levaram...
— Que audácia...
— Já dei queixa à policia apesar
de que não espero que ela me faça voltar para casa nem as minhas joias nem o
meu dinheiro. Nada menos de quatro contos...
— Por que não há de ter
esperança? Nós agora temos um magnífico chefe de polícia, homem de grande
energia e muito caráter.
As coisas começam a ser tomadas a
sério no nosso país, meu caro, e o senhor verá como o seu caso se liquida em
poucos dias...
— Cantigas, meu amigo!
— Verdades... c adeusinho.
Desejo-lhe bom êxito nas suas pesquisas.
Separei-me do Nuno, levando na
mente a impressão extravagante de que o seu rosto tinha crescido alguns
centímetros de um dia para o outro. E tanto isso me fez espécie, que
encontrando por acaso um fisiologista meu amigo, perguntei-lhe se a ação dos
narcóticos usados pelos ladrões noturnos exerce modificações visíveis nos
rostos das suas vítimas.
Apesar de muito inteligente, o fisiologista
não me entendeu à primeira abordagem. Tive de narrar-lhe o fato, ao que ele
retrucou que não acreditasse eu em narcóticos ministrados a gente sã por
bandidos na própria hora do assalto.
O cheiro violento dos anestésicos
acordaria qualquer mortal que dormisse, antes de o adormecer artificialmente!
O meu vizinho não acordara, só
porque tinha o sono pesado, tanto quanto os ladrões deveriam ter sido
cautelosos.
E a respeito do crescimento do
seu rosto, disso não sabia dar explicação...
Era a primeira vez que este meu
amigo tinha a coragem de manifestar a sua incompetência para qualquer coisa, o
que me tornou ainda mais curioso pelo que tinha sucedido ao meu vizinho Nuno.
Quando cheguei a casa, disse-me o
Evaristo que esse senhor mandara por trancas em todas as portas e janelas,
campainhas de alarme até no telhado e fios eletrizados no gradil do jardim... tinha
havido todo o dia grande azáfama no chalé do lado — só a polícia lá não pusera
os pés.
— Também para quê?! perguntei eu
serenamente. Os ladrões já lá não estão...
Evaristo sorriu, sutilmente,
superiormente, como um verdadeiro Sherlock Holmes de avental.
Percebi. Ele ainda continuava a
desconfiar do pobre cozinheiro do Nuno.
***
Depois de ter jogado e ganhado no
meu clube de ter passado a horas mortas pelos mesmos homens que dormiam
encolhidos e tiritantes sobre os lajedos do cais, entrei no meu quarto com
muito tédio e algum sono.
A extravagante singularidade que
reproduz na memória já quase inconsciente de quem adormece afigura do que mais
nos ocupou ou mais nos impressionou durante a vigília fez com que já no limiar
do sonho eu visse a cara pálida e longa do meu vizinho destacada no escuro como
uma máscara.
E adormeci.
Talvez dormisse ainda se a voz,
retumbante do Evaristo não me tivesse despertado às seis horas da madrugada com
palavras que me sobressaltaram:
— Patrão, patrão, estamos
roubados!
— Hein?
Ele repetiu a frase,
debruçando-se sobre o meu espanto., Pulei da cama e ao procurar a minha luneta
sobre a mesa da cabeceira verifiquei que os ladrões a tinham levado. Um
calafrio percorreu-me a espinha, à certeza de que os patifes tinham roçado
pelos meus lençóis...
— Foi tal como na casa do Sr.
Nuno dizia o Evaristo muito enfiado: pularam a grade do jardim; arrombaram a
veneziana da saleta, e esvaziaram as gavetas da secretária...
— E você que ainda ontem me dizia
não haver perigo! bradei, furioso, voltando-me para o meu, criado, cujo queixo
se tinha repentinamente alongado como o do Nuno!
— Felizmente, eles não puderam
abrir o cofre... murmurou ele como a desculpar-se, sem saber que o cofre estava
vazio...
Vesti-me à pressa com um terno
velho, porque os novos já deviam andar por longe, e saí a queixar-me à policia,
na ingênua candura de que ela ainda me pudesse acudir.
A dois passos de casa esbarrei
com o meu vizinho, que, já informado de tudo, corria a pôr-se ao meu dispor.
Não pude deixar de olhar para ele com surpresa, tão diferente o vi do que o
vira no dia antecedente. O rosto estava sério como convém a quem lamenta um
conhecido, de um acidente desagradável; mas tinha voltado às suas naturais
dimensões de lua cheia.
Pareceu-me perceber mesmo um
certo contentamento através das suas pupilas pesarosas, e então, empurrando
disfarçadamente o meu queixo para cima, disse-lhe rindo:
"Meu caro vizinho, fiz-me
roubar para lhe ser agradável, porque sei bem que não há nada a que a gente
menos se resigne do que a estar isolado na desgraça..."
---
Júlia Valentim da Silveira Lopes de Almeida (1862-1934)
Pesquisa, transcrição e adaptação ortográfica: Iba Mendes (2019)
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