O Morto tinha um feitio
singular. Uma força desconhecida – dessa corrente a que estamos sujeitos toda a
vida – impelia-o para o mal. A sua maneira de falar era curiosa, como a de
todas as pessoas que vivem sós e a quem o tempo sobra para refletir.
– Quem és tu? – disse-lhe o
Gabiru.
– Sou filho do crime. Que
te importa o meu nome? O meu nome ao certo ninguém o saberá. Não tenho família.
– Quem te criou?
– Os ladrões.
– Se não tens onde dormir,
deita-te lá em cima.
E enquanto o ladrão dormia
aos solavancos, acordando de estação, para de novo mergulhar num sono profundo,
o Gabiru cismava, olhando-o.
Às vezes o ladrão tornava e
o filósofo repartia com ele o seu pão. Depois dizia-lhe:
– Dorme.
Mas nessa noite o Morto,
mais agitado, não quis dormir. Sentados à beira um do outro falam durante largo
tempo.
– Qual?
– Este, de primavera. Até
na cadeia, quando numa noite assim o luar consegue entrar pelos buracos, os
ladrões acordam sobressaltados. Tenho visto assassinos abalados. Havia duma vez
um velho, que matou uma criança por nada, para se rir, e que numa noite destas
encostou a boca às grades para respirar com sofreguidão e desatou a cantar.
Este tempo tira a força.
– Escuta. Não ouves nada?
– Nada... Durante o tempo
que persisti na cadeia conheci cada um... Os que matam inda são os que têm
melhor coração.
– Tu para que roubas?
– Roubo porque tenho de
roubar. É o meu fado. Cada um tem o seu. Tudo o que a gente faz está escrito no
livro do destino. Eu bem sei que inda hei de fazer pior quando soar a hora...
– Que hora?
– A minha hora. Todos neste
mundo têm uma em que cumprem aquilo para que foram criados. Cada qual nasce
para o que nasce. Há-os, por exemplo, que chegada a sua hora matam. Pensas que
é para roubar? Matam uma criança que nunca lhes fez mal.
– De que serve fazer mal?
– Em primeiro lugar é fazer
mal, e quando a gente nasce para fazer mal, é sempre bom fazê-lo. Tenho horas
em que tudo em mim – tudo! – me prega que faça mal e as minhas mãos procuram
logo quem matar. Às vezes sonho que mato. É sinal que a
minha hora ainda não soou.
– E Deus?
– Deus foi que me criou,
Deus não se importa. Que tenho eu que fazer neste mundo? Só mal. É porque Deus
me criou para o mal.
– Resiste.
– Quando a gente é criada
para isto, não há nada que nos impeça... Uma criança...
– Antes viver com um sonho,
ignorando tudo.
– Mas viver!... Viver com
toda a força! Tu não vives. Morrer sem ter vivido!... Que sabes tu da fome? E
da desgraça? Que sabes tu de ser perseguido e de fugir? E do minuto em que se
mata?... Que sabes tu de seres tu? Há instantes em que se vive uma vida
inteira. Para se viver é preciso cumprir-se um fado, com todo o nosso ser, é
preciso a gente sentir-se só contra todos e no entanto prosseguir o seu
destino... Andar inda que esmague. Para onde? É para o mal? Que importa!...
– Mas o mal...
– Que sabes tu do mal?
– Nada.
– O mal sabe... Ter as mãos
ensanguentadas e esmigalhar nas mãos!... Fugir de noite com os pés nas pedras,
perseguido, sem poder respirar; encher depois o peito, com o coração a estalar
escondido num canto negro ou estender-se a gente no chão e sentir na boca o
travor da terra!... Não respirar e ter a noite por amiga!... A gente poder fazer chorar! Eu ter entre as mãos uma vida e vê-la
finar-se!...
– E eu que tinha pena de
ti!...
O Gabiru reflete. A noite é
espantosa. Toda a lua se desfaz em luar e, no silêncio brando, vêem-se da
trapeira os montes, o mar e as árvores, com formas de sonho.
– Pobre de ti! – diz por
fim o filósofo. – Tu és a terra, tu és a terra a falar... Tu és só terra. Eu
não vivi? Tu és como a forja apagada e eu não, eu não, eu ardo!...
Olha! Olha!...
Mostrava-lhe os montes, o
rio, os pinheiros transformados ao luar.
– Não, não quero ver. Isto
tira a força à gente.
– Olha! olha!
Mostrava-lhe, esguio, e
parecendo um D. Quixote banhado de luar, um sonho que o outro não podia ver...
– Não quero... Ouve. Se uma
criança tem de vir a ser como as mulheres da viela não era melhor morrer?
– Talvez.
– Não é isso que te
pergunto. Não era melhor morrer?
– Não sei.
O ladrão ficou um minuto a
olhá-lo calado, e depois, de repente, abalou.
Foi esta noite! foi esta
noite! Há dias em que eu sinto como uma torrente impetuosa que vem do outro lado do Hospital. As pedras estremecem impelidas. Há como uma
ligação entre a Árvore e aquelas pedras. Os seus esgalhos esbranquiçados e
esguios cresceram mais e ontem à tarde eu vi que a Árvore já não era a mesma.
Foi quando, como agora acontece desde março, o sol lhe deixou poeira de ouro
nos galhos. Vai-se o sol embora e ainda – vou jurá-lo – lhe fica sol nos ramos.
Ontem à tarde parecia transformada, diríeis haver nela não sei o que de
extraordinário, de irreal e de estranho – nessa Árvore só dor. Pus-me a vê-la
tronco por tronco, depois as pernadas e os raminhos e enfim descobri perdido,
quase sumido, um botão tão miúdo, tão tênue... Qualquer sopro do vento
levá-lo-ia para sempre.
A noite estremecia
despedaçada. Uma névoa viva, torrente luminosa, arrastando consigo no alvorecer
o primeiro hálito dos montes e das águas acordadas, umedecia as arestas dos
muros, o granito da cidade ainda em bloco, meia sumida na noite. O Pita sentiu
que alguma coisa de extraordinário se passava nessa madrugada de abril: um
jorro de vida brotara, uma aparição, um sonho realizara-se tornado em matéria.
A própria luz dir-se-ia enternecida, estremecendo ao tocar na Árvore. Envolvia
um fluido, um rastro de emoção. Erguida, enorme, transformada em flor a dor que
as suas raízes tinham bebido. Com um grito o Pita viu o Gabiru pendurado num
ramo.
Namorara sempre, depois do
escárnio da Mouca, aquela Árvore, cismando num encontro
etéreo para depois da cova. A tísica, nos últimos dias, quando a morte a
tocara, não tirava dos troncos despidos o olhar absorto.
– Aquela Árvore – dizia –
aquela Árvore...
Não sei se repararam... As
criaturas mesmo antes da agonia pertencem mais a um outro mundo do que à terra.
A matéria está já toda embebida de mistério, há mais luz do que noite... As
coisas que pertencem ao corpo emudecem e põem-se a falar dentro em nós a poeira
de astros de que é feita a alma.
– A Árvore! A Árvore!... –
dizia ela para Sofia.
– Donde nasce aquilo – olhe
– que a faz tremer? Engrossa e de noite irradia luz... Lembra-se do ano passado
que pra ali veio um passarito morar? E da sua voz? Parecia água a cair...
Quando para sempre a
levaram o Gabiru mergulhou na dor. Isolou-se mais. Monologava e os olhos
esqueciam-se-lhe nos sítios que ela amara. As noites tinham já esse encanto que
alheia, cheias de gritos, de vida no escuro, de palores esquecidos...
Altas horas à janela, todo
o céu pontilhado de estrelas, ouviu soluços na quietude da noite. Caía um luar
enorme e a treva tácita parecia esperar escutando. Só muito ao longe, no
silêncio que lhe pareceu presago, dir-se-ia que uma nascente deixara correr um
fio de água – só um fio... Ou talvez fosse luar que corresse... Diríeis
lágrimas. Pôs-se a olhar inquieto. A Árvore, mais esguia ao palor do luar,
parecia transformada. Acenavam-lhe os ramos – e que voz era
aquela, fina e meiga, que o chamava?... Ou seria água nascendo ou um fio de
luar a correr?
Desceu três a três os
degraus e ei-lo no saguão. Vestira o luar a Árvore e sob a magia da noite a
eclosão fizera-se.
Ao luar, na luz indecisa da
noite, lhe pareceu a Árvore como um branco fantasma a fugir e a chamá-lo.
Baixaram-se os seus troncos para o tomar e ouvindo aquela voz amiga, desfaleceu
apertado, morto, levado pelos ramos...
Pela primeira vez a Árvore
de saguão deitara flor, mas que flor! que simulacro de flor e à custa de que
sofrimento! Cada flor era um grito – cada flor da Árvore imensa que cobria a
pedra e o Hospital. Eles dois enchiam o mundo – dum lado a Árvore, do outro o
Hospital.
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