Virgínia
Maldito
o seu furor, porque obstinado,
e
maldita a sua ira, porque inflexível.
Gênesis
Prostrada ante uma imagem da Virgem, banhada
em pranto o rosto, soltos os cabelos, e a mais viva aflição pintada no
semblante, orava Virgínia, a inconsolável Virgínia, esperando a cada momento a
infausta notícia da morte de seu amante, que nas trincheiras barateava a vida
pela pátria, pelejava contra holandeses, defendendo a cidade de São Salvador.
Em vão buscava a mãe tranquilizá-la; em
vão; as palavras da velha não podiam levar a seu dilacerado coração a
consoladora esperança, que perdida a tinha ela; mas, e ainda mal, mais e mais
aumentavam-lhe a dor, mais e mais tornavam insuportáveis os seus sofrimentos.
Ah! Que ela, moça e tão linda, tinha
visto partir do Recôncavo da Baía o
seu querido Eugênio, na véspera desse dia em que lhe devia dar a mão de esposo,
e firmar ante o altar os seus protestos de amores, em uma tarde do mês de maio.
Tão depressa ouvira o jovem brasileiro
dizer que poderosa armada holandesa sulcava os mares da Baía, que esqueceu seus
amores, seus dias venturosos e risonhos que seriam passados junto de uma
consorte cheia de encantos e virtudes; esqueceu para se lembrar do eminente
perigo que corria a pátria; e lá se partiu rapidamente a ter seu quinhão de
gloria na defesa da capital do Brasil, ameaçada por inimigo poderoso.
Numeroso exército de veteranos afeitos à
peleja, que haviam afrontado a morte em muitas batalhas, e a cuja frente
marchava o intrépido Mauricio de Nassau, apresenta-se ante as muralhas da
cidade; mas ali estão outros soldados não menos valentes que lhe disputam o
terreno. Embalde milhares de pelouros, açoutando os ares, derramam a morte nas
fileiras dos defensores de São Salvador; embalde os contrários redobram de
intrepidez e valor; Bagnuolo e o valente Pedro da Silva conseguem repelir os
invasores.
Irritado Nassau por uma resistência que
não esperava encontrar, reúne todas as forças de que pode dispor, ataca de novo
as trincheiras, apodera-se do fosso e busca vingar a afronta feita às suas
armas. Chuva de metralha, nuvem de balas ardentes, que sibilam o hino da morte,
lá rompem pelos ares, lá caem sobre brasileiros e portugueses. Mas que importa?
Não desanimam os sitiados, que lançam e arremessão de cima das trincheiras
sobre o inimigo enormes e pesadas pedras, robustas e fortes vigas, e panelas
inflamadas; correm a reforçá-los o bravo Barbalho, o valoroso Henrique Dias, e
o invencível D. Antônio Felipe Camarão.
A batalha tornara-se geral.
Não pôs a noite termo ao furor dos
lidadores e o horror das trevas veio realçar o horror do conflito; já tomam os
sitiados a ofensiva, investem o inimigo com arremesso terrível; atacam pelos
flancos, pela retaguarda; envolvem, derribam, matão quantos resistem... Mas
pouco e pouco começa de enfraquecer o retinir das espadas, o trovejar das
bombardas, o bradar dos guerreiros... e pouco depois nada mais se ouvia, que o
gemer e o arquejar dos moribundos, como o gemer e o arquejar do oceano após a
tempestade!...
O inimigo tinha desaparecido.
Surgiu o sol no seguinte dia, e seus
raios brilhantes vieram esclarecer esta cena de desolação. Centenares de
mortos, de feridos, de estropeados entulhavam o campo, cobriam o campo da
peleja; e cem prisioneiros eram conduzidos, como troféus da vitória, à cidade
de São Salvador.
Quarenta dias se passaram desde o
terrível combate, quando uma esquadra numerosa deu à vela, deixando após si as águas
da Baía; levava Nassau a bordo de seus navios para mais, que não para menos, de
seiscentos feridos, e lamentava a perda de três mil de seus esforçados
guerreiros.
Jurou ele porém pela sua espada
vingar-se do brioso povo que com tento valor defendera o seu território.
Pequenas embarcações, carregadas de
soldados, exploraram o Recôncavo, levaram a todos os lugares, ainda os mais
remotos, o incêndio, o saque e a morte. Fugiam tímidas as donzelas diante da
ferocidade brutal desses terríveis inimigos, e com elas os inocentes meninos e
os inermes velhos; e por toda a parte faziam os fugitivos ouvir o seu grito
sinistro:
— Nassau! Nassau!...
Pequenas cabanas foram entregues às
chamas, seus moradores varados pelas espadas; a nada se respeitou; sexos e idades,
tudo padeceu a mesma sorte, que tudo se confundiu.
Tal a desolação que se originou da odiosa
vingança dos holandeses!
E dois meses decorreram depois do
triunfo brasileiro; e como visse Eugênio que nenhum novo perigo ameaçava a
cidade, pediu licença para acolher-se a seus lares, onde o amor e o zelo de
suas propriedades de há muito tempo o chamavam.
Consegue-a; volta ao Recôncavo. Ah! Que
cena de lastima para os seus olhos! Convulsivo temor lhe agita os membros, e o
coração se lhe aperta de dor! Por toda a parte os vestígios da mão do inimigo
cobarde e vingativo... por toda a parte a desolação, sangue, ruína e morte!...
Em vão, porém, procura ele pela sua
choupana; olhos erradios nada mais encontrão que destroços... Lá cinzes
dispersas lhe indicam o lugar que ocupava no abaulado da montanha a habitação
de sua amada... e mais adiante uma pedra e uma tosca cruz!...
Quem será que ali repousa?
Aproxima-se... crava nela os olhos...
que dor para o coração de um amante! Sobre o braço da cruz havia uma inscrição,
e essa inscrição era o nome dela... O infeliz estava contemplando a sepultura
de sua querida Virgínia.
Que despertar tão duro!
Quantos sonhos de felicidade não se
desvanecerão em um momento! Quantas sonhadas doçuras não se trocaram em
amarguras! Era um sorriso irônico do infortúnio que o atraiçoara!
No dia seguinte vagava pelo Recôncavo um
jovem que tinha perdido a razão; sempre taciturno, sempre triste; pálido como o
semblante da desgraça; com os cabelos desgrenhados, como as palmas dos
coqueiros açoutadas do tufão; caminhava ao acaso, como uma avezinha ferida pelo
raio do caçador; e se por ventura desprendia os lábios, era para bradar
frenética e dolorosamente:
— Nassau! Nassau!
E tornava a cair no seu abatimento e
taciturnidade.
Encontraram-no uma manhã sentado sobre
uma das pedras lançadas em torno da tosca cruz da sepultura de Virgínia; tinha
a cabeça encostada ao tronco anoso de árvore copada; a esquerda mão de encontro
ao peito, apertava um anel de louro cabelo; a direita segurava numa vara com
que tinha traçado na areia:
Nassau!
Ah! Já não era ele que não mais sofria.
Era o seu cadáver frio e gelado de morte que ali estava.
Sua alma tinha ido reunir-se à de
Virgínia.
Jornal
das Famílias, 7 de abril de 1869.
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