Vingança
de mulher
Na doçura da tarde dominical, à sombra
de árvores verdes, os três amigos conversavam pausadamente, sentados à volta
duma rústica mesa de cortiça, no parque da estância termal em que se
encontravam veraneando. Não corria uma aragem e não murmurava uma folha. Pela
janela aberta dum hotel próximo saía em ondas o som do Momento Musical, de Schubert,
que alguém, de certo uma linda adolescente, apaixonada e sonhadora, com
pedrarias de anéis fulgindo na brancura dos dedos afusados e magros, tocava com
fino sentimento emotivo, na suavidade da hora evocadora. Ao longe, por entre os
arvoredos silenciosos, pairavam e riam ranchos de crianças ou erravam alvuras
de vestidos de cambraia.
Houve um instante em que a conversa dos três
amigos se animou, derivando insensivelmente para os casos complicados da
psicologia feminina; e um deles, Duarte Aragão, moço triste e romântico, de
grandes olhos negros, exclamou:
— A alma das mulheres é um enigma. Nenhum
psicólogo, desde Balzac a Marcel Proust, passando por Stendhal, ainda conseguiu
interpretá-la.
— Eu não sou dessa opinião — atalhou
João Damasceno, sedutor profissional que se vangloriava de ter acordado em mais
dum coração paixões devastadoras. São excessivas em todos os seus sentimentos,
certamente; mas, nada mais simples do que elas.
— Simples, simples!... Não sei o que é a
simplicidade para ti — acudiu Duarte, soprando com lentidão o fumo dum cigarro.
A não ser que não tenhas deparado até hoje, no teu caminho, mulheres
verdadeiramente dignas deste nome. Eu falo, é claro, das criaturas singulares que,
ao dom aliciante da beleza, juntam as graças maravilhosas do espírito; e tu,
naturalmente aludes...
— Às feias e às estúpidas?
— Não! Às que são unicamente belas pela formosura
e não pela inteligência.
— Pois, olha que te enganas... Se eu
quisesse consultar as minhas recordações...
— Poupa-nos a esse relatório doloroso —
interrompeu Basílio de Menezes, que se mantivera calado durante a controvérsia,
riscando distraidamente a areia do passeio com a ponteira da bengala. De resto,
já sabemos que tens sido amado pelas mais raras flores do Fatal Feminino e que,
se te houvessem conhecido, te pediriam beijos as próprias madames Stael,
Récamier, Sevigné, outras extraordinárias damas que têm um nome e uma
celebridade na história humana — concluiu com um sorriso irônico.
— Bem! Essa ironia não prova nada! — disse
João Damasceno, despeitado.
— Homem, sempre prova que és
irresistível — replicou Basílio, rindo sempre... Mas não te irrites! Estamos
aqui, apenas matando o tempo e fazendo un
brin de causerte, que diabo!...
— Eu afirmava — exclamou novamente Duarte
— que a alma das mulheres é um enigma, e que essa alma quase sempre escapa aos entendimentos
mais perspicazes. Por exemplo...
— Vamos à demonstração, a que é sempre obrigado
quem afirma, neste nosso curioso século de ciência e de análise... — bradou Basílio.
— Por exemplo — continuou Duarte — essas
mulheres nunca perdoam aos homens que um dia amaram e que as desdenham... Para
se vingarem, serão capazes das maiores "torturas e dos maiores crimes. O
que nelas era adoração transforma-se em perversidade, em crueldade.
— Eis um ponto de vista falso!... Falsíssimo
— asseverou João Damesceno, levantando-se e dando alguns passos em redor da
mesa.
— E por quê? — interrogou Duarte.
— Ora! Porquê! — explicou Basílio. Por isto:
— João tem desdenhado muitas e, em vez de vinganças, recebeu sempre os retratos
das desdenhadas com dedicatórias delirantes, não é assim?
— E não o digas a brincar!...
— Não brinco com estes casos, que são sérios.
On ne badine pas avec Vamour... Mas é
que tu, João, és encantador e as borboletas que queimam uma asa na tua chama,
ficam a acenar-te afavelmente com a outra... Existem exceções felizes à regra
formulada por Duarte, e tu és uma delas Parabéns... No entanto...
Fez-se um momento de silêncio, que maior
encanto comunicou à contemplação da paisagem envolvente. A luz, que desfalecia,
dourava as folhagens e imprimia mais relevo às formas. A clara, faiscante água
duma fonte que corria para um largo*tanque onde se fechavam já as florações dos
nenúfares, enchia o ar de murmúrios flutuantes.
— No entanto?... — preguntou Duarte. Basílio acendeu vagarosamente um charuto, sacudiu
para longe o fósforo queimado, e começou:
— No entanto, também eu creio que, desta
vez, erraste nos teus juízos sobre a alma das mulheres.
— Oh! senhores, se eu adquiri pela
experiência a certeza do que asseverei!...
— Eu possuo, igualmente, com que documentar
a minha negativa. Ora ouçam.
João Damasceno voltou a sentar-se à mesa
em que estavam abertos e esquecidos os jornais chegados pelo correio e, encostando
a face à palma da mão, seguiu a narrativa de Basílio, muito contente por, desta
vez, ter alguém a defendê-lo.
— Conheci uma rapariga — e é inútil procurarem
saber quem é porque nada revelar...
— Homem, não pretendemos arrombar uma porta
trancada — disse Duarte com intenção.
— Conheci uma rapariga — continuou Basílio
— que teve por certo homem a mais ardente, cega, alucinada paixão que possam
imaginar. Essa rapariga, que à formosura aliava uma admirável e completa
educação, uma rara cultura e uma subtil sensibilidade, nunca escondeu o seu amor.
Pelo contrário, dava-lhe uma vasta publicidade, orgulhosa em confessar-se
diante de todos — por que esta publicidade contribuía para a sua ventura e
porque, por ela, mostrava que era capaz de todas as abnegações.
— Ó menino, estamos em pleno romantismo,
logo depois do prefácio de Cromwell e do colete vermelho que causava febre a Madame
de Girardin!...
— Se querem que eu vá até ao fim, não me
interrompam... Digo-lhes que não fantasio. Estou em plena realidade...
— Pois bem. Vamos à história!
— Para sua desgraça, porém, o homem a quem
ela se consagrara, tendo encontrado, nos primeiros dias, um certo sabor nessa
aventura
lírica e fazendo-lhe crer que também a
amava, enfadou-se, por fim, de tão transbordante ternura e começou a evitá-la.
Por quê? Porque não queria casar, porque se julgava incompatível com a vida conjugal,
porque não desejava enfeudar a liberdade da sua vida de solteiro às responsabilidades
dum lar e duma família.
— E quem o mandava casar? — atalhou João
Damasceno, inconsideradamente. Estivesse no seu lugar!...
Basílio olhou o amigo com um sorriso indefinido,
e quebrando a cinza do charuto na beira da mesa, prosseguiu:
— Devo dizer que este homem era ainda honesto
nessa época. A sua queda ocorreu mais tarde... Como era honesto, entendia que
só pelo casamento poderia obter a posse duma mulher que lisonjeava a sua
vaidade, amando-o, mas que lhe exigia sacrifícios que não estava disposto a
fazer. Certamente que ele a levaria, sem resistência, a todas as loucuras. Ela
oferecia-se-lhe, entregar-se-lhe-ia confiadamente e sem hesitar. Se assim o
quisesse, fugiria com a pobre rapariga, transformá-la-ia em sua amante para
mais tarde a abandonar. Uma tal solução, porém, lançaria na vergonha uma
família digna de respeito e talvez na morte um coração ingênuo que só por ele
batia. Decidiu, portanto, cortar sem piedade um idílio nascente que viria a
enchê-lo de remorsos, no momento luminoso e purificado em que nas consciências se levanta uma aurora, e passou a
tratar a mulher que dele se namorara a princípio com frieza e depois com
grosseria... Isto, contudo, foi inútil. A sua glacial indiferença ou a sua
brutalidade não bastaram para queimar no peito da apaixonada a divina flor amorosa
que lá desabrochara; e, quanto mais ele lhe fugia, mais teimosamente ela o
procurava. Então, o seu egoísmo inspirou-lhe uma ação na verdade abominável. A
mulher que com tanta constância o amava tinha uma amiga íntima. Andavam sempre
juntas, eram inseparáveis, não guardavam segredos e reservas uma para a outra...
Para humilhar mais sangrentamente a criatura que, com ânsia, lhe estendia os
braços, principiou a cortejar a outra e com tanta insistência, tanta
hipocrisia, tanto poder de sedução, que conseguiu fazer-se amado com intensidade.
— E ela ainda insistiu?
— Não! Há vilezas a que uma mulher nunca
desce, por altivez, por dignidade, por elevação moral. Rompeu com a amiga, sem
ruído, sem escândalo, refugiou-se com a dor que a consumia numa tristeza que o
seu sonho malogrado alimentou, pediu às lágrimas um desafogo. A afronta, porém, tornou-a rancorosa.
— Aí está! — exclamou Duarte,
triunfante. Eis a prova da veracidade das minhas palavras...
— Recalcando o amor no fundo do seu ser,
meditou, então, na maneira de vingar-se com uma crueldade igual ao vexame
sofrido. Esta ambição transmudou-se na esperança única da sua existência. Mas,
como satisfazê-la?...
Os anos foram deslizando uns atrás dos
outros e ela, abrasada pelo fogo do ódio interior, mirrava no seu infortúnio.
Tinha, no entanto, um irmão que era banqueiro e que, conhecedor desse infortúnio
e das razões que o motivaram, esperava o instante de desafrontar a traída. O homem
que causara a desventura da irmã levava uma vida de jogo, de crápula, de
dissipações. Para obter dinheiro quando acabou de atirar ao vento a fortuna
legítima, não recuaria diante das maiores indignidades... Ora, um dia, ao jantar,
o banqueiro entrou em casa com uma alegria estranha fuzilando nos olhos e,
tendo beijado a irmã, exclamou:
— Há uma providência que sempre pune os que
prevaricam.
Ela mirava-o, surpreendida e inquieta.
— Por que falas assim? — preguntou.
— Porque tenho aqui, na minha carteira, uma
letra falsificada pelo homem que zombou de ti. É a tua vingança. Hoje mesmo
darei parte à polícia e ele será preso como ladrão — e ficará desonrado para
sempre...
— Dá-me essa letra! — implorou ela, empalidecendo.
— Não! Nada de comiserações para quem as
não teve contigo.
— Dá-me essa letra! — insistiu ela com
os olhos rasos de lágrimas. É a minha vingança, segundo afirmaste. Pertence-me...
O irmão passou-lhe o fatídico pedaço de
papel, que ela rasgou nervosamente, murmurando:
— Não perderás o teu dinheiro. Eu vendo
as minhas joias e pagarei tudo. Mas com uma condição: — é que ninguém — nem ele
— saberá
quem o salvou.
E, como o irmão a contemplasse,
espantado, acrescentou:
— Não quero que o homem que mereceu o meu
amor tão puro seja arrastado pelas cadeias ou tenha de corar por esta falta,
quando passar por mim. Eis como me vingo!...
Basílio terminou a narrativa bizarra,
atirou o charuto para o chão, ergueu-se do banco em que estava sentado. O
crepúsculo, religioso e
sugestivo, baixava.
— Hão de vocês pensar que tudo isto não passa
duma banal invenção. Pois garanto-lhes sob palavra de honra que é verdadeiro o
que acabo de contar-lhes. Meus amigos, as mulheres que sabem amar profundamente
são incapazes de odiar. Admiremo-las...
---
Pesquisa e adequação ortográfica: Iba
Mendes (2019)
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Sugestão, críticas e outras coisas...