Valor de
posição
Era
o tipo do sargento instrutor.
Quando
lhe puseram no braço as quatro divisas, já ele tinha abdômen de major.
Assentara praça muito novo, aos dezesseis anos, como voluntario, sem conhecer
uma letra. O capelão era o mestre-escola, e como se desse o caso de ser bom
homem, dedicava-se ao ensino coma melhor Boa vontade. De modo que o nosso jovem
recruta, tendo caído nas boas graças do capelão, era de todos os alunos o que
ele tratava com mais carinhosa solicitude. Ficou distinto no exame de furriel,
e foi o primeiro classificado no exame para segundo sargento. Não era de uma inteligência
notável; mas era excepcionalmente aplicado, e tinha uma vontade de ferro.
Muito
sério, irrepreensivelmente bem comportado, nunca sofreu o mínimo castigo, a
mais atenuada repreensão. Todos os senhores oficiais, desde o comandante ao
almoxarife, mostravam por ele muita estima e muita consideração. Cumprimentavam-no
pelo nome, — adeus ó Lopes! — e ele era tão fundamentalmente disciplinado que
nunca se desmandou numa familiaridade permitida.
Ganhara as
suas esporas de ouro num arraial, onde ora comandando uma força requisitada
pelo administrador do concelho. Andavam desavindos, por mera rivalidade de campônios,
dois povos vizinhos, e esperava-se que eles aproveitassem o arraial para
ajustarem as suas contas, descarregando uns nos outros pancada de criar bicho. À
cautela, o administrador requisitou uma força de sargento, convencido de que
uma força de cabo valeria tanto como uma viola num enterro. Logo se assentou em
que fosse o Lopes o comandante dessa força, homem resoluto, mas calmo, valente
mas ponderado, incapaz de uma imprudência, que pudesse ter consequências
graves.
Chegou o
destacamento de véspera, ao cair da noite, e logo se espalhou que o sargento
recebera ordem de dar para baixo, aos primeiros assomos de desordem.
No dia
seguinte, já em plena festa o arraial, bêbedos de vinho ou de entusiasmo os
romeiros, era voz geral que o sargento recomendara aos soldados, aquartelados numa
dependência da Igreja, que à voz de fogo fizessem pontarias baixas, para a caça
não fugir. Mais se dizia que cada soldado tinha na patrona sessenta cartuchos,
havendo quem afirmasse que era assim, por ter visto, acrescentando que um dos
soldados, ainda seu parente, lhe dissera que se chegasse a haver tiros, seria
uma desgraça nunca vista.
Não
tardou que se armasse uma desordem, cruzando-se no ar os cacetes, que implacavelmente
caíam nas costas de uns e na cabeça de outros, havendo costelas partidas e
pinhas rachadas, jorrando o sangue em abundância. Ia generalizar-se a
pancadaria, como num debate parlamentar, quando apareceu o sargento, de
espingarda ao ombro, a baioneta calada, o ar sereno de quem vai de passeio e para
a ver uma montra.
Da
multidão saiu este grito — mata-se! mata-se!— e para o sargento avançaram
alguns pimpões, confiados em que a superioridade do número compensaria a
desigualdade das armas.
O
Lopes recuou alguns passos, e pondo a espingarda na posição de preparar,
conteve os amotinados, dizendo-lhes:
—
O primeiro que der um passo, prego-lhe um tiro nos cascos.
Ninguém
se moveu, e sumiram-se os cacetes que andavam no ar.
O
sargento então, sereno como se estivesse a conversar à boa paz, falou nestes
termos:
—
Ouçam bem o que lhes vou dizer, e tenham tento na bola. A força que eu comando
não veio aqui para matar ninguém; veio para não deixar que vocês se matem uns
aos outros. Quem tiver contas a ajustar, vá ajustá-las noutro sítio, se não
acharem é melhor deixarem-se de asneiras, e esquecerem todas as
queixas que tiverem uns dos outros, bagatelas que não valem a ponta dum
cigarro.
Os
meus soldados estão debaixo de forma à espera das minhas ordens. Se vocês
entrarem na razão, se largarem os cacetes para se agarrarem ás moças, balando e
cantando até moerem as pernas, emborcando o seu copázio, de quando em quando,
para enrijar o nervo, se vocês fizerem isto, a minha voz de comando será esta:
— Ensarilhar, armas! À vontade... Se não quiserem assim, saberão como elas
cantam. As baionetas têm ponta, todos os cartuchos têm bala, e no destacamento
não tenho um só homem que na escola de tiro não obtivesse prêmio.
Sic
orsus, mas ao contrário do que sucedeu no caso de Eneias, todos
aqueles lapuzes, longe de ficarem de boca aberta — intentique ora tenebant, mudos
como se fossem marmotas, desataram aos berros, atroando os ares:
—
Viva o nosso sargento! Viva o nosso sargento! — como se fossem da tropa.
Em
relatório para o governador civil o Administrador do Concelho informou
detalhadamente do procedimento que tivera o sargento, afirmando que sem a sua
cordura, a sua decisão, a sua valentia calma mas intrépida, teria havido mortos
sem conta. O governador civil levou o caso ao conhecimento do comandante
do regimento, o qual louvou o Lopes e lhe concedeu trinta dias de licença, sem
nenhum desconto.
No mesmo dia
em que saiu primeiro sargento foi encarregado da instrução dos recrutas. Era
paternal, para com os pobres lapuzes, sem todavia deixar de ser severo, como
convinha. Possuía o talento raro do instrutor, em termos que não havia recruta
bronco que no mínimo do tempo não adquirisse a instrução completa. Conhecia
como ninguém a psicologia dos alarves, e era isso que lhe dava a altíssima competência
de instrutor, que todos lhe reconheciam.
— São uns
diamantes em bruto; mas a gente faz deles o que quer, o ponto é dar-lhes com as
manhas.
Na verdade,
alguns faziam-se mais broncos do que eram, esperançados em que o sargento,
vendo que não fazia bom deles, declarasse oficialmente que eram incapazes de
receber a instrução de recrutas, sendo- lhes dada a baixa apetecida.
— O meu
sargento bem vê. Eu não adianto mais dum dia para o outro, e ainda que esteja
aqui toda a vida, nunca chegarei a ser dado como pronto. Gostava de aprender;
mas sou muito rude. Cada qual é para o que nasce, e o meu sargento bem vê que
eu não nasci p’ra isto.
Tais
discursos não comoviam o Lopes, que muito bem sabia ao que eles visavam —
largar as correias antes de finda a escola, regressando à paisana com
uma baixa limpa.
—
Pode ser que fu nunca aprendas a recruta, mas nesse caso serás recruta durante três
anos, que é o tempo de serviço. Os recrutas não têm direito a licenças, e
depois do primeiro período de instrução, sem aproveitamento, não se lhes fez um
favor do tamanho de uma unha. Dispensas de recolher? Dispensas de formatura?
Nem meia; o plantão e a faxina, sem escala, são para esses melros o pão nosso
de cada dia.
És
rude?
O
homem incapaz de aprender a instrução, deve ser dado como incapaz da vida
militar; mas incapaz como soldado, devendo ser aproveitado como montada, num
regimento de cavalaria.
Às
vezes iam senhores oficiais assistir à escola do Lopes, e ele tinha
grande desvanecimento com isso. Aproveitava essas ocasiões para instruir os
galuchos com respeito aos deveres que incumbiam ao soldado nas varias situações
de serviço.
—Ouve
lá, rapaz; aqui está uma porta e tu estás de guarda a ela, com ordem de não
deixares entrar seja quem for. Ouviste bem? Seja quem for.
—
Sim, meu sargento.
—
Está bem. Eu sou o nosso capitão Gaitinhas... Posso entrar?
—
Não, senhor.
—
Fazes bem, rapaz... Agora sou o nosso major Sete Falinhas... Posso entrar?
—
Não, senhor.
—
Fazes bem. Agora sou o nosso comandante. Posso entrar?
O
recruta hesita um pouco, e responde:
—
Não, senhor.
—
Muitíssimo bem, rapaz. A ordem é não deixar entrar seja quem for. Repara bem nisto
— seja quem for. Bom; eu agora sou o rei. Olha que o nosso Comandante, ao pé do
rei, é tanto como tu ao pé do nosso capitão.... Repara bem — eu agora sou o rei
Não me deixas entrar?
—
Lá o rei, sim... deixo.
—
Pois não devias deixar, grandíssimo bruto. Tu aqui não és o 37 da quarta; és a
Lei. O nosso capitão, o nosso major, o nosso comandante e o próprio rei valem
menos do que tu, quando representas a lei. Fora daí és um filho da... mãe, como
qualquer outro, mas aí és superior a todos. Não devias deixar entrar o rei,
minha cavalgadura.
Era
um sargento como então havia muitos, como hoje há poucos, militar de carreira,
profissional das armas para quem o seu regimento era uma extensão da sua família.
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Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019
Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019
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