Vagabundos
Só para este caminheiro taciturno havia
pelas estradas pedras duras onde a carne ficava aos farrapos nas suas
quotidianas e amargas jornadas. O sofrimento começou para ele na hora sombria
em que bebeu o primeiro sorvo de leite. Desconhecia a dulcificação sublime dos
afagos e perto do seu peito ainda não havia batido um coração carinhoso e
amigo.
Soltou os primeiros vagidos nas palhas
frias dum casebre, andou calcado pelos desprezos de toda a gente, como erva
maninha que rebentasse em chão estéril, adormeceu pelos lajedos, sob o vento e
sob as neves de dezembro, junto dos bueiros ou na treva dos portais, abandonado
à piedade de quem passava. Na terra, apenas a rua o havia acolhido generosamente,
sendo o seu leito desde que veio para a desdita irremediável da existência;
essa mesma terra teria de oferecer--lhe um dia o ventre protetor e fecundo,
onde todas as agonias acabam e todas as ânsias repousam no eterno sono. Só
então seria redimido, no seio inefável da morte, quando lhe gelasse o sangue
nas veias e se extinguisse a centelha vital que o iluminava. Por enquanto,
andava ao acaso da incerteza, e nem sempre encontrava migalhas para saciar os
desesperos da fome.
Pelos buracos das roupas que lhe cobriam
o corpo, apareciam as carnes tiritando, roxas e exangues, todas engelhadas,
evocando pergaminhos velhos; as barbas crescidas, onde fios compridos
alvejavam, empastavam-se-lhe no pescoço emagrecido. Lembrava-se de que outrora
não padecia como agora. Na juventude, levam-se cantando as mais ásperas dores;
mas, quando a alma se alumia de sentimento e quando nela ascende uma espiritual
aurora, a tortura contínua tolda de prantos os destinos desamparados. Oh! como ele
devia sentir a saudade remota dum bem não atingido e de uma ventura que não
mais alcançaria, antes que para ela erguesse as mãos crispadas, ao relembrar-se
das ilusões ardentemente idealizadas e da linda primavera amorosa que poderia
ter sido a sua vida!
Passava momentos esquecidos encostado às
esquinas, de olhos baixos, de braços cruzados sobre o peito e os pés saindo-lhe
dos rasgões de umas botas que encontrou, por acaso! Às vezes a chuva caía
desabridamente, encharcava os asfaltos. Ele pedia esmola, mas contemplava os
que passavam com um olhar tão queimado de tormento, que comovia e fazia pensar.
A sua indiferença era infinita. Como o viam grotesco é alquebrado, os garotos,
como ele órfãos de afeições, crivavam-no de chufas e de escárnios, jogavam-lhe
pedradas. Pois o seu braço exausto não se erguia para a desafronta, nem a sua
voz débil suspirava um queixume.
— Ó Pernas
de parafuso! — exclamavam os gaiatos, puxando-lhe pela aba do casaco que se
despegava aos pedaços.
— Como vai a senhora?
— E os pequenos?
E o silêncio doloroso não se
interrompia.
— Vá, Pernas de parafuso, um discurso! —
gritavam os rapazes.
— Sua excelência está fraquinho.
Naturalmente, não ceou.
— Ora essa! Para que diabo quer ele o
que tem? Para levar para a cova?
— Tu tens palácios, Pernas de parafuso?
A sua mudez era inalterável; mas, de vez
em quando, sorria-se com mágoa, na necessidade que todos os desgraçados
experimentam de se darem ao sarcasmo dos outros mais felizes.
O sarcasmo de Pernas de parafuso era
flagrante. Saíra um dia para a sua via-tormentosa com umas calças muito largas,
que lhe tinham oferecido, por caridade. A cada passada, todas elas se torciam,
enovelando-se-lhe nas pernas esguias; e na multidão, o imprevisto espetáculo
despertava uma viva hilaridade. De repente, um pequenito que vendia jornais, de
carinha chupada e sem viço, parou e atravessando-se-lhe na frente, preguntou:
— Para onde vais, ó Pernas de parafuso?
Outros ouviram a ironia espontaneamente
lançada sem intenção de celebridade e o epíteto ficara pregado à sua miséria
como uma condenação implacável. A princípio, a sátira doía-lhe fundo, e fugia
às montarias com terror, escoando-se na sombra, rente com as paredes, como um
cão sem dono, escorraçado por todos; mas raramente escapava à troça que o
perseguia pelas ruelas e pelos becos escuros. Até a solidão do pardieiro em que
se abrigava era perturbada pela algazarra. Quantas noites, desfalecido da
correria, corcovado e fúnebre, a fronte cavada de rugas, estendido nas palhas
que lhe serviam de cama, inerte como um cadáver, ia cismando no seu infortúnio,
na sua existência desagasalhada que não lhe dava forças para o trabalho árduo! O
sono vinha serenar as suas penosas meditações; mas ao cerrar das pálpebras,
ressoava uma ironia:
— Dormes, ó Pernas de parafuso? Pois, dorme-te a fazenda também!
Por fim, familiarizou-se com as troças e
nem já escutava as jogralidades com que o perseguiam. À roda da sua penúria
tudo se confundia pesadamente numa densa obscuridade: — as linhas, os aspectos,
os sons, as tonalidades; e o passado era um cemitério enorme onde se alongavam
as projeções das cruzes e as manchas trágicas dos ciprestes.
O vagabundo conhecia uma pobre velhinha,
como ele inútil e perdida no tenebroso mar do mundo. Dobrada em arco, trôpega, quase
cega, mendigava de sol a sol, quando podia
arrastar-se, gemendo, para a porta das igrejas, onde a piedade costumava
surgir, teatral e aparatosa, no rugido das sedas. As suas orações tinham uma
suavidade de murmúrio de água ou de cântico religioso entoado a distância. Sentada
a uma réstia de luz, espreitando o azul dos céus para onde os seus olhos se
alavam como duas andorinhas, estendia os dedos descarnados de espectro,
lamuriando:
— Oh.! minha rica senhora, lembre -se
desta entrevadinha, pelo amor de Deus!
E, quando no seu regaço tilintavam
algumas moedas de cobre, rezava comovidamente, pedindo ao céu toda a sorte de
felicidades para aqueles que se não esquecem dos miseráveis.
— Nosso Senhor a guarde, minha boa benfeitora.
Padre Nosso...
Recolhiam a casa muito aconchegados,
contando os episódios das duras caminhadas; e lembravam as suas madrugadas de
idílio tão longe, Nossa Senhora, como as suas mocidades!
— Oh! Mariana, como o mundo é!
— Triste de quem nasce, Antônio!
— Há
muitos para quem a vida tem consolação e alegria!
— O Senhor sabe o que vai na alma de
cada um.
— É verdade! Mas quando há alguém para
nos ajudar, o desgosto é mais pequeno...
Depois, calavam-se e embrenhavam-se em
tristezas.
Mariana pernoitava num curral de que não
pagava renda e Antônio entrava no seu pardieiro sem ar; Logo de manhã se
tornavam a ver, tremendo, gelados, as mãos perto da boca:
— Está hoje tanto frio! Bons dias, Antônio.
— Corta! Jesus, como custa viver! Bons
dias, Mariana!
Repartiam, quando tinham necessidade, as
côdeas mendigadas e confortavam-se um ao outro com bondade. Uma noite,
começaram a acordar do esquecimento lembranças mortas:
— Tu nunca tiveste família, Mariana?
— Olha que não sei! Desde que me
conheço, fui sempre só. Parece que me encontraram por aí! E tu?
— Eu tive. Foi há muitos anos, quando me
casei. Era marujo e andava pelos mares no cabo do mundo, num navio.
— A mim ninguém me quis, por eu não
possuir dote. Servi amos, levei pancadas, e tive a sorte das outras mulheres
como eu. Entrei para o hospital doente e saí de lá aleijada. Botei-me a pedir,
e assim vou ganhando o pão, que é pouco. Quando o engulo, tenho vontade de
comer mais.
— E se fôssemos ainda novos?
— P'ra quê? Eu cá por mim não queria. A
minha estrada está no fim.
— Ah! se eu fosse novo!...
— Mas a tua mulher, os teus filhos?
Tiveste filhos, Antônio?
— Ao voltar da derradeira viagem, não
encontrei ninguém — nem ela nem duas crianças que tínhamos. Fugiu com outro e
levou os pequeninos que eram também meus. Chorei, ralei-me de aflições,
procurei-os e cá estou à espera da morte.
— E nunca os viste?
— Não! Perdemo-nos... perdi-me deles.
Agora não os conheço nem me conhecem a
mim!
— Uma dessas!... Boas noites, Antônio!
— Boas noites!...
----
Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)
Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Sugestão, críticas e outras coisas...