Uma eleição perdida
CAPÍTULO 1
—
José Duarte — leu alto o Castro, que tinha a cópia do caderno de recenseamento
aberta diante de si.
A
luz do candeeiro de petróleo, concentrada num círculo nítido pelo abajur de
papel verde, iluminava fortemente a mesa, recortava sobre o pano escuro o
quadrado branco do caderno, ensebado nos ângulos pelos dedos, e punha toques
vivos no tinteiro de latão bem areado, e na calva brilhante do Castro,
inclinado sobre as colunas de letrinha miúda. O resto da sala, e as doze ou
quinze pessoas, sentadas ao longo das paredes, ficavam numa penumbra vaga, onde
de tempo a tempo luziam os pontos rubros dos cigarros, puxados em fumaças
longas.
—
Quem é esse José Duarte? — perguntou uma voz.
— E
o sapateiro da Rua da Fonte.
—
Ah! esse falo-lhe eu! é certo, marque-o lá... — disse um velho magro.
—
Pudera... se o tem entalado por oito libras que lhe emprestou pelo Natal —
observou em voz baixa um rapaz muito pálido de bigode preto, que escrevia na
secretária da câmara.
—
José Francisco Salgueiro — continuou o Castro.
—
Falo-lhe eu — disse um grosso de suíças grisalhas. — Esse também é certo; lavra
uma sorte na herdade de meu irmão Antônio, e não há de querer que lhe tirem a
terra.
—
Arrocho!!... — murmurou o amanuense da câmara, que decididamente tinha ideias
subversivas...
—
José Francisco Simões — ia continuando o Castro.
—
Morreu há mais de dois anos — observou alguém.
—
Então está seguro — disse uma voz no fundo da sala.
Duas
ou três risadas altas acolheram esta graça um tanto fúnebre; mas o Castro,
imperturbável, continuou a ler:
—
José Francisco Tavares.
—
Esse é todo deles!... é escusado falar-lhe.
—
Quem é?
— É
o feitor dos Carvalhos do Lendroal.
—
Ah! sim, com esse não se faz nada!
—
Já cá está uma cruz — disse o Castro; e leu:
-José
Francisco Trigueiro.
— O
sacristão, fala-lhe ali o nosso prior.
—
Por eu lhe falar não seja a dúvida; mas olhem que ele já ma pregou mesmo à
última hora na eleição da câmara — respondeu o prior, que se tinha levantado
para acender o cigarro sobre o vidro do candeeiro.
O
Castro interrompeu-se, enrolando também um cigarro; e um velhinho, já muito
quebrado, aproveitou a ocasião para se despedir. Como o dono da casa o
acompanhasse, ficaram um instante cá fora, no patamar da escada, enquanto o
velho levantava a gola do capote, e puxava sobre as orelhas de pergaminho o
barrete de seda preta.
—
Vai-se hoje muito cedo, Sr. Cairão — disse o dono da casa amavelmente.
—
Nada, não senhor, Sr. João Lopes, são as minhas horas... são as minhas horas
respondeu o Cairão.
Prontos
já a sair, com o capotinho azul abotoado em cima, e a bengala de castão de
prata na mão, o Cairão acrescentou:
—
Depois manda-me lá a lista dos eleitores que são meus criados ou meus seareiros.
—
Esteja descansado, lá vai tudo em ordem; já disse ao Castro que tirasse a nota.
E amanhã vem à estação?
—
Vou, vou com toda a certeza. Sempre chega amanhã o nosso candidato?
—
Chega amanhã sim senhor! Ainda hoje recebi uma parte confirmando-me a sua
chegada. Vem aqui passar estes dois meses por conselho meu. Nós temos elementos
poderosos, mas necessitamos congregá-los sem perda de tempo. Eles têm por si a
autoridade, não recuam diante de meio algum; e nós devemos dar-lhes uma boa
lição.
—
Decerto... decerto. O Azevedo vai para a sua casa da Rua do Álamo, segundo
ouvi?
—
Vai! também por lembrança minha. É a antiga casa da sua família, e faz bom
efeito na opinião vê-lo ali estabelecido.
A
casa está muito mal preparada, como não pode deixar de estar uma casa
desabitada há catorze anos...
—
Já há catorze anos, como o tempo passa! — interrompeu o Cairão.
—
Catorze anos seguros. Foi logo depois da morte da avó, a D. Margarida, que o
rapaz partiu para Lisboa na companhia do tio, e que fecharam a casa... assim
está ela! Mas enfim eu mandei-lhe fazer uns arranjos, tomei-lhe os criados, e o
Dr. Azevedo não fica mal. Tinha-o hospedado aqui em minha casa com muitíssimo
prazer; mas faz melhor efeito que vá para a sua própria casa, sendo, como é, um
dos principais proprietários da localidade. Nestas coisas é necessário atender
muito ao efeito.
—
Decerto... decerto — disse o Cairão despedindo-se.
E
desceu a escada, encostado ao corrimão, chamando o moço, que o esperava embaixo
com a lanterna.
— Cuidado
com os dois degraus de pedra da loja — gritou-lhe de cima o João Lopes.
Dentro,
o Castro continuava a leitura; ia nos Manuéis.
CAPÍTULO 2
Na
tarde seguinte, o aspecto da estação era brilhante.
Em
dias ordinários, a pequena casa caiada e o barracão das mercadorias, perdidos
num país chato e feio, onde raras culturas zebravam de amarelo o verde-negro da
charneca, tinham um ar muito abandonado, como se os pardais atrevidos, que
piavam nuns eucaliptos magros e despenteados, fossem os seus únicos habitantes.
E, defronte, na erva alta de uma terra inculta, alguns fardos de cortiça,
denegridos pela chuva, melancolicamente alinhados, pareciam irremediavelmente
esquecidos, esperando o comboio de mercadorias do dia de juízo. À passagem dos
trens, a estação mal acordava daquele sono; às vezes não desciam passageiros. O
carregador, aborrecido e vagaroso, tirava do break volumes de encomendas, enquanto o chefe, um gordo de barba
por fazer, conferia papelinhos amarelos com o condutor; e, lá fora, atada à cancela
de ferro da passagem de nível, a mula velha do correio abanava as orelhas,
sacudindo as moscas.
Mas,
naquela tarde, a estação mudara completamente de aparência. O comendador João
Lopes, o chefe do partido, veio na sua carruagem grande dos machos castanhos; o
Galrão e o sobrinho na traquitana de cortinas; o Castro no carrinho, com o
Loureiro da loja; e o João Gualberto, presidente da câmara transata, a cavalo
com todos os rapazes — o Moniz da botica, o amanuense da câmara e os outros. Um
carro toldado transportou a Civilização e
Harmonia, a filarmônica de feição oposicionista. E o Castro havia recrutado
na vila uma ou duas dúzias de rapazitos, que, juntos aos criados de lavoura do
Galrão e do Lopes, deviam representar as massas populares. O Lopes tinha mesmo
— com uma louvável preocupação da cor local — mandado vir o seu rancho da
monda, que andava ali perto nos tremeses da sua herdade do Freixo.
Esta
parte mais popular da recepção estava pouco animada. As mondadeiras, não
percebendo bem a que vinham, apertavam-se a um canto, como um rebanho de
ovelhas assustadas; e ao pé das raparigas, os ganhões, com as grandes mantas
riscadas a rastos, esperavam tranquilos, um tanto cépticos, numa indiferença
fatalista de semitas. Mas enfim, o efeito geral era bom. O Castro
multiplicava-se, alinhando a filarmônica, dispondo os grupos de ganhões,
falando às moças pelos seus nomes.
Quando,
à chegada do comboio, o Júlio de Azevedo, no seu fato de viagem verde-escuro,
com o coco cinzento à banda, a luneta de um vidro só encaixada na órbita, e o
bigodito atrevidamente retorcido, saltou sobre o asfalto, foi recebido ao som
do hino da Carta, e dos vivas, levantados pelo Castro, e frouxamente
correspondidos pelos ganhões. O comendador adiantando-se para ele, assegurou-o...
“da satisfação e justo orgulho com que os seus patrícios acolhiam um moço, que
no alvorecer da vida era já a glória da terra, que lhe fora berço”.
Houve
depois um momento de confusão, em que todos procuraram as carruagens e os
cavalos, enquanto as mondadeiras e os ganhões dispersavam a pé, e os músicos
trepavam para o carro, com os trombones mal limpos debaixo do braço. Afinal
toda a linha de veículos e cavaleiros se pôs em movimento, levando na frente a
carruagem dos machos castanhos, com o João Lopes e o candidato.
—
Temos perto de oito quilômetros a andar, Sr. Azevedo — dizia o comendador. — E
por culpa dos engenheiros, que o caminho-de-ferro podia ter chegado mesmo aos
farrejais da vila... coisas da nossa terra!
O
trote dos machos deixava já atrás a charneca; e a estrada seguia por uns
chaparrais arroteados de novo, onde o sol oblíquo da tarde dourava a baganha
das aveias maduras. Na carruagem o comendador ia nomeando e explicando os
sítios; e, numa volta, apontando para a direita, disse ao seu companheiro:
— A
sua herdade da Gafeira, Sr. Azevedo.
Então,
o rapaz debruçou-se, subitamente interessado. Em Lisboa, quando recebia as
rendas em letras sobre Anjos e C.ª, ou sobre Mayer e Filhos, tinha apenas a
impressão vaga de ser rico; mas agora, aquela encosta de montado, onde as
sombras das azinheiras desciam muito longas, e os últimos raios de sol punham
uma gaze alaranjada sobre a erva viçosa, deu-lhe a sensação forte e nova da
propriedade, de uma coisa que era sua, de árvores e de terra que lhe pertenciam.
Ao lado, o comendador continuava as suas explicações:
—
Uma boa herdade, muito boa de pastagem no cedo; é talvez o melhor invernadouro
do concelho. Mas boa, o que se pode chamar boa de lei, é a sua Pedra Negra...
E
abrangendo num gesto vago todo o lado do nascente, como se lhe quisesse marcar
onde ficavam, ele ia dando ao Azevedo uma miúda descrição das suas terras.
Os
machos subiram a longa encosta a passo. Agora a carruagem chegava ao alto,
donde se dominava o largo vale, com as manchas escuras dos olivais, apagados na
luz morta do crepúsculo; e, em frente, o perfil da vila e as torres quadradas
da matriz, negras no violeta do céu. O Júlio começava a reconhecer os sítios. A
linha familiar da vila, uma ponte à esquerda sobre o ribeiro, o portão velho de
uma horta, acordavam pouco a pouco no seu espírito as impressões de infância,
que ali dormiam esquecidas havia tantos anos.
Afinal,
a carruagem rodou sobre a calçada, atravessou a praça por entre os grupos de
curiosos, e toda a comitiva, num grande ruído de escorregões de mulas e de
guizeiras, parou à porta do comendador.
—
Por aqui, Sr. Azevedo, por aqui se me faz favor — dizia o João Lopes entrando
na loja, e virando à esquerda para uma casa grande ao rés-do-chão, onde estava
armada uma mesa de vinte talheres. — A primeira coisa necessária depois de uma
jornada destas é uma sopa quente, por isso eu tomei a liberdade de o trazer
diretamente a esta nossa casa.
Confidencialmente
acrescentou:
—
Peço-lhe desculpa de lhe não apresentar hoje minha esposa e minhas irmãs, mas
estamos mais à vontade só com os amigos... e estas coisas da política não
interessam às senhoras.
E
como todos entrassem, parando à porta da sala, o comendador distribuiu os
lugares:
—
Galrão faz-me favor senta-se aí defronte; Sr. Azevedo à minha direita; João
Gualberto aqui à esquerda; meus senhores, fazem obséquio, sem cerimônia.
As
moças, muito limpas, com os lenços de chita cruzados sobre os peitos duros,
começaram a servir a sopa, e estabeleceu-se um silêncio profundo; mas pouco a
pouco a conversa animou-se. O comendador completava as apresentações,
rapidamente feitas no barulho da estação:
—
Senhor Azevedo, o Sr. Galrão, um antigo amigo de sua avó, e de todos da sua
família.
—
Decerto... decerto, um grande respeitador da Sra. D. Margarida, que sempre me
honrou com a sua amizade.
—
Talvez se lembre ainda do nosso Moniz? — disse o comendador, indicando um rapaz
gordo na extremidade da mesa.
Como
o Júlio hesitasse, o Moniz explicou:
—
Eu tive o gosto de andar no latim com vossa excelência. Então o Júlio
lembrou-se, e numa inspiração de bom rapaz exclamou:
— É
verdade... és tu Antônio!
E o
Moniz, muito lisonjeado, levantou-se do seu lugar, e veio fazer shake-hands com o candidato em grandes
expansões de velhos amigos.
As
moças passavam travessas de frango ensopado e perus assados, indo de quando em
quando à porta do fundo receber as ordens de uma autoridade invisível e
suprema. Começavam a acender-se os cigarros — à espanhola. E, depois do
arroz-doce, todos falaram alto, principalmente da eleição. O Júlio foi então
miudamente informado... “do estado das coisas, das influências em jogo”.
Soube
que o José Carlos não trabalhava por estar mal com o cunhado, desde as
partilhas que fizeram por morte da tia; e que o Sá devia três contos e
quinhentos aos Carvalhos do Lendroal, que o apertariam para o pagamento se ele
saísse a campo; soube que os eleitores da aldeia de São Miguel só viriam à urna
se lhes consertassem o telhado da igreja; e os da Corte Pequena se lhes
aforassem o baldio; soube que o José Antônio tinha um lugar prometido na
alfândega; e o Antônio José queria tomar uma empreitada na construção da
estrada municipal. E desta ladainha de nomes próprios desconhecidos, destas
coisas pequenas e vazias, elevava-se pouco a pouco como um grande tédio, que se
misturava com o calor da casa, e com o cheiro forte da comida.
O
Azevedo combateu a custo esta sensação de enjoo, fumando cigarros laferme, e bebendo golinhos de
aguardente de erva-doce do comendador, que na verdade era excelente — parecia anisette.
CAPÍTULO 3
Já
passava da meia-noite, quando o Moniz e o Castro, com três ou quatro dos mais
entusiastas, vieram acompanhar o candidato a casa, e se despediram dele à porta
do palacete da Rua do Álamo.
Ao
entrar na loja, grande, úmida, calçada de seixo miúdo, imperfeitamente alumiada
pela moça, que levantava na mão um candeeiro de três bicos, o Júlio recebeu uma
impressão fortíssima. Aquela casa era a sua, a velha casa dos Azevedos, onde
tinham nascido e vivido todos os seus, onde ele próprio nascera e se criara.
Mal se lembrava dos pais, mortos sendo ele ainda muito criança, mas conservava
viva a memória da avó. Era já um rapazito crescido, quase um homenzinho,
quando, entre as criadas que soluçavam, veio ajoelhar ao lado da cama, em que a
velha senhora, serena e branca, expirava docemente. E parecia-lhe ainda sentir
na testa o contato dos seus beiços já frios, num último beijo em que ela pôs
todo o seu amor, um amor mais que maternal. Parecia-lhe ainda ver aquela mesma
loja, como estava na tarde do enterro, toda cheia de convidados; e ele, um
rapazito pálido, vestido de luto, de pé no alto da escada, assistindo à saída
do caixão, que descia por entre as capas pretas dos irmãos da Misericórdia e as
luzes vermelhas das tochas. Dias depois, partia dali com o tio e tutor, o Dr.
Manuel de Azevedo, então juiz da 3ª vara em Lisboa, que viera de propósito
buscá-lo; e, naquele mesmo sítio em que agora ficara parado, grupavam-se os
criados da casa, a velha Mariana, o João coxo que dava água, todos eles, todos
chorando ao verem o menino subir para a antiga traquitana da família, que o
levava para a estação... para tão longe! Lembrava-se bem da longa viagem,
metido a um canto do compartimento de primeira classe, sentindo as lágrimas a
bailarem-lhe nos olhos. E do seu espanto de pequeno alentejano, que só vira as
ribeiras quase secas, orladas de loendros floridos, quando ao chegar ao
Barreiro entrou no vapor — o Sol caía para além de Almada, e a enorme
superfície da água, rosada, espelhada, apenas vibrante, estendia-se até aos pés
da grande cidade, refletindo as suas casarias resplandecentes.
Como
eram dolorosas e doces ao mesmo tempo estas evocações das velhas coisas, ainda
agora quase esquecidas! E as primeiras recordações pareciam suscitar todas as
outras. Numa concentração súbita, viu a sua vida inteira. O tempo do colégio, e
as visitas ao domingo a casa do Dr. Manuel de Azevedo na Rua da Emenda, uma
casa tranquila e triste, sem crianças, onde a tia, pálida e loira, lhe dava um
beijo distraído, e tocava piano na sala escura, com os stores descidos. Os anos da Universidade, deixando-lhe uma
impressão confusa e já remota, de trabalho, de cantos de rouxinóis ao luar, e
de fados corridos. Ali, o rapaz passava pouco a pouco a homem, afirmava a sua
situação de estudante premiado, de membro influente de um cenáculo literário,
de redator principal do Facto, um
jornal positivista, bastante avançado e algum tanto ingênuo. Mas o tempo
corria, e um dia achava-se bacharel formado em Direito, maior, independente e
rico — muito mais rico mesmo do que tinha imaginado. Começava então a sua vida
ociosa de Lisboa, com os quartos de garçon
às Chagas, com os jantares no Bragança, com a cadeira em São Carlos, com a
série dos amores fáceis, as Lolas e as Carmens, entremeadas de duas ou três
portuguesas, uma modista de chapéus do Matos e Irmão, e a Adelaide do Príncipe
Real. Destas nebulosas do amor destacava-se um pouco a sua grande aventura com
a D. Sofia, a mulher do Mosqueira do banco; uma aventura esboçada no fim da
estação de São Carlos da cadeira para a frisa, desenrolada durante o Verão no
terraço do Vítor, e prosaicamente rematada em um quarto com saleta, alugado aos
meses na Rua dos Douradores. No fundo uma aventura tão banal como todas as
outras, deixando-lhe a mesma impressão de vazio triste. E era tudo, toda a sua
vida durante quatro ou cinco anos. Apenas uns restos de amor ao trabalho e à
Arte, as correspondências semanais para o Facto,
um livrito de contos e estudos da rua, publicado sob o título de Asfalto e macadame, o haviam preservado
de cair absolutamente na irremediável chateza da reles vida elegante.
Parecia-lhe
singular, que nestes últimos anos tão despreocupados e inúteis se não tivesse
lembrado uma só vez de visitar a sua terra e a sua casa; e no entanto era
assim. Deixara ao tio, mesmo depois de formado, todos os cuidados da
administração; a sua vida ociosa retinha-o com o imperioso despotismo da
monotonia; e as recordações da província iam-se lentamente apagando. Fora necessário
que uma candidatura, oferecida pelo João Lopes e outros amigos do Manuel de
Azevedo, o viesse arrancar aos seus hábitos; e só agora, ao cabo de catorze
anos, entrava de novo na sua casa. Mas aos primeiros passos dados naquela loja,
toda a sua infância revivia, nítida, atual, como se nunca dali tivesse saído;
e, por um fenômeno curioso, eram os acontecimentos da véspera, que pareciam
recuar para um passado remoto, numa flutuação de coisa falsa, sonhada.
Parado
na porta, o Júlio não via a moça, que continuava a erguer na mão o candeeiro,
nem a outra criada, esperando em cima no patamar. E as duas, admiradas já
daquela imobilidade, pensavam lá consigo: “...que o senhor era muito
esquisito”. Quando afinal reparou nelas, teve um desejo irrefletido de as
mandar embora, uma necessidade de ficar isolado, como um pudor dos seus
sentimentos; e, tirando o candeeiro das mãos da moça, disse para as duas:
—
Podem-se ir deitar, eu não preciso mais nada esta noite.
Então,
só, com uma espécie de respeito religioso, começou a visitar a casa. Estava
muito abandonada e velha. Dos vidros partidos, dos postigos desconjuntados e
podres, vinham correntes fortes de ar, em que a luz do candeeiro, mal abrigada
pela mão, vacilava, pondo nas paredes das salas caiadas clarões incertos,
cortados de grandes sombras oscilantes. Em cima, os tetos de castanho,
denegridos pelo tempo, esverdeados pela água que filtrava dos telhados, ficavam
numa obscuridade indecisa. Os móveis antigos, tamboretes de couro mal de
aprumo, contadores de pau-santo sem ferragens, encostavam-se às paredes, como
abatidos pela idade, procurando um arrimo. E as manchas escuras dos grandes
armários vazios, recortavam-se na cal branca, que se esfacelava em partes,
deixando ver o reboco. Alguns ratos escaparam-se ao longo das paredes; e, numa
das salas, dois ou três morcegos giravam no seu voo incerto e sem ruído.
Mas
o Júlio não sentia este abandono; visões alegres, claras, da sua vida de
criança, povoavam, iluminavam em volta dele aquele pardieiro. Os móveis, as
paredes, eram como amigos velhos, vistos ao cabo de longos anos, que recordam o
passado com circunstâncias pequeninas, muito definidas: cá estava o corrimão de
pedra da escada, polido da mão rude dos ganadeiros que vinham ao avio, e que
ele descera tantas vezes, a cavalo, deixando-se escorregar; com grandes sustos
e muitos ralhos da velha criada Mariana; o armário alto donde furtava as peras,
quando a Mariana descia à adega medir azeite para os pastores; e o outro
armário mais pequeno, sempre fechado à chave, onde se guardava o doce, uma gila
encandilada, e uns quartos de marmelo ressequidos com cravo de cabecinha, que a
avó lhe dava sobre grandes fatias, nas merendas das tardes de Verão.
Parecia-lhe então ver passar a avó, alta, magra, um pouco deitada para diante,
com os cabelos brancos alisados sob o lenço de seda preta, o xale de lã
cinzenta nos ombros, levando na mão o molho das chaves luzidias, que se
chocavam num tinir fino. Que encanto eram para ele aquelas chaves! Como gostava
de ver abrir as arcas, donde se tiravam os lençóis de linho, e as toalhas de
mesa de Guimarães, tendo um cheiro bom, de roupa bem lavada, seca ao sol pelas
colinas aromáticas, sobre moitas de tomilho e rosmaninho! Ou então, nos dias de
festa, o armário da prata, donde saíam as salvas grandes, com lavores maciços,
um pouco denegridas!
Quantas
coisas, ontem tão esquecidas... e agora vivas, nítidas, como se se estivessem
passando naquele momento! Mais nítidas, talvez, porque a memória dá às vezes
como umas provas fotográficas, que parecem mais definidas que a própria
realidade.
E o
futuro deputado, o céptico redator do Facto,
sentiu um nó na garganta e os olhos rasos de lágrimas...
Sacudiu
este enternecimento pouco digno, e foi em busca do seu quarto, onde havia um
conforto relativo. O esteirão novo do Algarve, o travesseiro de folhas, a
colcha de cetim, denunciavam os cuidados e a solicitude do comendador.
Já
ali estava a sua bagagem. O Júlio abriu o Gladstone
bag, dispôs sobre a pedra da cômoda a complicada coleção de frascos e
escovas, e, depois de proceder minuciosamente à sua toilette noturna, procurou o romance começado, a caixa de pheresly très fort, acendeu o último
cigarro, e estendeu-se na cama. Achava-se numa disposição feliz. A emoção de
estar na velha casa da sua família dissipara a impressão desagradável da
conferência eleitoral. Aos vinte e oito anos, com uma boa fortuna, um nome já
feito, uma liberdade completa, e a porta aberta para a vida pública,
parecia-lhe bom viver. Adormeceu, tendo visões vagas de triunfos oratórios, de
ministérios derrotados e desfeitos a grandes golpes de eloquência.
CAPÍTULO 4
Era
tarde, quando ao outro dia o Júlio de Azevedo abriu a janela do seu quarto, e,
assustando as lagartixas, que durante anos haviam gozado a posse tranquila da
pedra da sacada, veio encostar-se à velha grade de ferro forjado, com um
cigarro entre os dentes. Ao sair da atmosfera um pouco úmida do grande quarto
ladrilhado, o ar daquela esplêndida manhã de maio envolveu-o num banho tépido.
O
Sol ia alto; e da cimalha da casa caía sobre a ruazita só, muito quieta, uma
estreita faixa de sombra. Da sua janela elevada, o Júlio dominava os telhados
das casas térreas fronteiras, e os seus terraços de ladrilho, orlados de
craveiros, plantados em fundos de bilhas partidas; devassava mesmo os segredos
dos pequenos quintais, que se estendiam por detrás das casas. Havia ali um
cantinho de vida doméstica, surpreendida na sua intimidade tranquila e
abandonada: grupos de galinhas em boa camaradagem com porquitos ruivos; alguidares
ainda cheios de água espumosa do sabão; roupa molhada, enxambrando ao sol presa
de cordas, imóvel no ar parado, muito clara na luz intensa; e, num quintal um
pouco maior do que os outros, como um toque de esmero nas ruas varridas, nos
goiveiros amarelos, nas rosas vermelhas brilhando por entre as ramas das
árvores. A vila por aquele lado alargava-se pouco, e o campo começava logo para
além dos quintais, desenrolando-se em ondulações doces. Em frente, umas colinas
baixas, vestidas do verde frio dos olivais, limitavam o horizonte; mas à
direita, na queda do terreno, o vale abria-se em uma larga várzea de trigos
altos, amadurecendo já num tom claro de espigas. E, ao longo do ribeiro,
marcado pela linha de faias esguias, os laranjais e romeirais das hortas
destacavam-se em manchas escuras, picadas de pequeninas casas brancas. Pela
abertura do vale, a vista alongava-se aos tons dos planos distantes, esfumados,
esbatidos, adelgaçados até à cor docemente azulada das últimas serras, fundidas
quase no azul-claro do céu. Havia ainda na entoação fina dos verdes, na
folhagem vibrante, uma frescura nova de primavera; mas os cevadais quase
brancos, os trigos espigados, o fundo morno do ar, anunciavam já a proximidade
do ardente verão alentejano.
O
Júlio ficou ali muito tempo, embalado pela absoluta quietação. Na rua não
passava gente; as andorinhas corriam, tocando quase as pedras da calçada no seu
voo rasteiro, quebrado em voltas rápidas; ou vinham, com um pequenino grito
alegre, pousar nos ninhos presos à cimalha. Ao fim da rua, por cima das árvores
de um quintal, via-se um dos torreões das antigas muralhas da vila, e em volta
os gaviões revoando, passando como pontos negros, apenas distintos, na limpidez
clara do céu. Um grande silêncio abafava tudo; um destes silêncios mortos,
pesados, de vila de província donde todos saíram para o trabalho, que deixava
ouvir, lá ao longe, no vale, o bater da roupa nas pedras do ribeiro, e as vozes
das lavadeiras bradando pelos filhos.
Todas
estas coisas tão conhecidas, tão familiares, tão absolutamente iguais ao que
tinha deixado, acordavam no espírito do Júlio os velhos tempos esquecidos;
sentia reviver as suas impressões de infância nas formas, nos sons, até nos
cheiros — naquele perfume bravo, muito alentejano, que subia das medas de
estevas, empilhadas à porta do forno. E, quando as onze horas soaram lentamente
na torre da matriz, ele teve a sensação fantástica de que o tempo só agora
recomeçava a correr, de que tudo parara durante a sua ausência, de que a
vilazita de província o esperara, imóvel e adormecida como a princesa de um
conto de fadas.
Depois,
pelos postigos abertos de uma das casas fronteiras, começou a sair o som das
vozes de criança soletrando. Era um soletrar antigo, cantado, estranho à
influência de João de Deus; mas as vozes puras das pequerruchas davam graça à
cantilena, fundiam-se num chilrear alegre com o canto das andorinhas nos ninhos
da cimalha. E, de repente, aquela casa, em que agora reparava melhor, evocou no
espírito do Júlio uma nova onda de recordações.
Aquela
casa fora mais sua do que a sua própria. Morava ali nos antigos tempos o João
Pascoal, o escrivão. Era um homem alto, malfeito, desgracioso, com os olhos
úmidos, muito tímidos. Tinha uma única paixão — a dos pássaros. As horas que
podia roubar às audiências, ao escrever monótono no papel selado, passava-as
pelos valados e barrancos, armando. E o Júlio estava sempre em casa dele,
ajudando-o a fazer gaiolas de cana, ou a consertar as redes das codornizes,
vendo-o preparar grandes tachadas de visco.
Que
boas tardes de Verão tinham passado juntos, quando ao sair da aula do padre
Salgado vinha a casa deixar a Selecta,
e pedir licença à avó para ir com o Pascoal! Com que seriedade o escrivão o
iniciava nos segredos da arte, ensinando-o a distinguir os chamarizes dos
tentilhões, fazendo-o escutar o canto dobrado dos chapins reais — os
cheichapins, como ele dizia — ,
ou o prrrt... metálico dos trigueirões, pousados sempre nos mais altos raminhos
das moitas! Que ansiedade quando a bandada dos pintassilgos se dirigia para as
varas... eles deitados atrás de um valado, e o Pascoal pondo-lhe a mão no
ombro, fazendo-o estar quieto... quieto... sem respirar! Que ferros, quando ao
longe estalava a funda de um guarda de vinhas, e todo o bando fugia assustado!
Que bons tempos!
O
Pascoal fora sempre pobre e pouco considerado. Chamavam-lhe o passarinheiro. Era um sonhador, um poeta
a seu modo. Ficava horas esquecidas escutando os melros nos balseiros, ou os
papa-figos nos chaparrais, vendo as névoas brancas, leitosas, a levantarem-se
dos barrancos, e a luz, coada pela folhagem verde, a acordar reflexos nos
espelhos das péguias. Depois, chegava tarde, suado, mal arranjado para as
audiências. Sujava os autos de visco. E — coisa mais grave — apesar de pobre, esquecia-se
às vezes de receber o dinheiro dos órfãos e das viúvas, o que indignava algumas
pessoas sérias, como um mau exemplo.
—
Quer-se fazer generoso, e não tem onde cair morto, que tolo! — diziam.
Pobre
Pascoal, que seria feito dele? Decerto já não morava na mesma casa, pois agora
era ali a escola. Devia estar muito velho, se vivesse? E as filhas, deviam
estar duas mulheres, a mais moça talvez casada? Lembravam-lhe agora as duas
pequenas, com quem brincava, que tratava como irmãs; e parecia-lhe estranho,
mal feito até, ter-se esquecido da sua existência tantos anos.
A
mais velha, a Henriqueta, devia ter a idade dele. Era uma rapariguinha galante,
com perfil fino, olhos grandes, e um esplêndido cabelo castanho; mas era
contrafeita, coitadita. Os seus ombros desiguais, as suas mãos delgadas,
demasiado compridas, muito brancas com veiazitas azuis, e o seu sorriso triste,
faziam pena. A Margarida — uma afilhada da avó — era pelo contrário uma criança
linda, direitinha, de um trigueiro sadio, tendo uma alegria constante nos olhos
pretos, e um cabelo crespo, vigoroso, escuro na sombra, mas cheio de reflexos
vermelhos, quase ruivos, quando o sol o feria. Lembrava-se bem da amizade terna
que tinha à pequenita. Na sua importância de homenzinho, julgava-se o seu
protetor natural; e ela admirava-o muito — a sua superioridade de rapaz de
treze anos, já crescido, as suas audácias, as suas invenções. Como ela ria,
quando ele, trepado ao damasqueiro grando no fundo do quintal, lhe lançava os
damascos no regaço; enquanto a corcundita, muito séria, já maternal, ralhava
com os dois! Decididamente queria vê-las hoje... agora mesmo... ia perguntar à
criada se o Pascoal vivia, onde morava?... Mas nisto uma rapariga delgada
apareceu embaixo no quintal grande das roseiras, que pertencia à escola; e
começou a despregar das cordas a roupa já enxuta. Para tirar os alfinetes,
levantava-se nos bicos dos pés, erguendo nos braços nus, curvando a cintura
flexível; e o sol, caindo sobre ela, dourava-lhe ligeiramente a massa espessa dos
cabelos escuros. Passados instantes, como se sentisse de longe o peso do olhar
do Júlio, voltou-se, deu com ele na janela, corou e fugiu para dentro. Era a
Margarida... com certeza... e quase a mesma, com os seus olhos alegres, com o
seu cabelo crespo de criança! Então... ainda ali morava o Pascoal! E o Júlio,
num primeiro impulso, desceu a escada, atravessou a rua sem chapéu, meteu o
braço pelo postigo da porta, correu o ferrolho muito seu conhecido, e entrou na
escola.
À
sua entrada, quinze ou vinte pequenitas interromperam a leitura, contemplando-o
pasmadas, com os olhos redondos de admiração; e, do estrado do fundo, a
corcunda levantouse, alegre, um pouco perturbada a princípio:
— O
Sr. Júlio!
— A
mana Henriqueta — disse o Júlio, usando instintivamente o antigo tratamento, e
apertando nas duas mãos as mãos débeis da inválida.
— E
o Pascoal? — perguntou.
— O
pai está muito doente, entrevado! Mas venha vê-lo... ele vai ficar tão
contente.
E
levou-o pelo corredor ao quarto do fundo, que dava sobre o quintal, onde o
escrivão, muito acabado, com o cabelo todo branco, estava sentado na cama.
— Ó
pai, o Sr. Júlio — disse a Henriqueta.
— O
menino Júlio!... o menino Júlio! E tão crescido... um homem! E não se esqueceu
do pobre Pascoal, veio logo cá... — dizia o velho chorando, na facilidade banal
das lágrimas, que dão a fraqueza e a doença.
Então
o Júlio, querendo cortar aquele enternecimento, e reparando nas gaiolas
penduradas das paredes, perguntou-lhe pelos pássaros.
—
Ai! ainda se lembra! Eu já não vou armar, estou aqui preso na cama vai para
cinco anos, com o reumático. Mas vai o Pedro... o Pedro, o filho do
carpinteiro... há de ter ideia dele? E olhe o rapaz tem jeito, tem muito
jeito...
Nisto
entrava a Margarida, que tinha posto um lenço novo nos ombros, e tentado alisar
o cabelo, tão rebelde como em criança.
—
Sabes Margarida... — disse o Júlio, indo para ela; mas emendou-se, ao vê-la tão
mudada, tão mulher: — Sabe, conheci-a logo, logo. De mim é que já se não
lembrava?
—
Então não havia de lembrar — respondeu a rapariga, corando. — O pai falava
tantas vezes no Sr. Júlio, e mais agora, sabendo que o esperavam.
Ficaram
ali de pé conversando, o velho em êxtase diante do seu menino, do seu grande
valido, as raparigas voltando rápida e facilmente à velha intimidade de
crianças. O Júlio fez mais perguntas; quis saber o que se tinha passado
naqueles longos anos; e a Henriqueta então contou-lhe como tinham sofrido
grandes privações, necessidades até, depois de o pai cair de cama, e ser obrigado
a deixar o lugar. Venderam uma a uma as suas fazenditas, o olival da Fonte
Fria, os três milheiros de vinha à Camada; só lhes restava aquela casa. Agora
estavam um pouco melhor; a Henriqueta ensinava primeiras letras.
—
Ao princípio não queriam mandar as pequenas, por eu... ser assim — dizia ela
com o seu antigo sorriso triste. — Mas agora vêm muitas, e todos na vila são
muito bons para mim.
A
Margarida trabalhava para fora, cosia, engomava, fazia renda.
—
Tem muita habilidade — acrescentava a Henriqueta com orgulho.
O
tempo corria rapidamente. O Júlio achava-se em família, contente de ver o velho
sorriso tranquilo e resignado da mana Henriqueta, e a pequenina Margarida,
transformada naquela rapariga airosa, adoravelmente bonita no seu vestidinho
pobre e no seu lenço vermelho. Conservava os fortes cabelos crespos, e o olhar
alegre e claro de criança; mas, vendo-a bem, estava muito mudada, com o oval
mais longo e afinado, com uma expressão nova, funda e doce, nos seus
esplêndidos olhos negros, levemente pisados em roda. E o rapaz ficou-se a
olhar para ela, enlevado, voltando-lhe a ternura protetora dos tempos passados,
sentindo já, como a Henriqueta, um orgulho de irmão mais velho.
O
candidato esquecera-se completamente da hora, do comendador e da eleição,
quando ouviram bater à porta. A Margarida foi lá fora correndo, e voltou a
dizer: “...que a moça vinha chamar o Sr. Azevedo, porque o Sr. João Lopes e
muitos senhores estavam defronte, no palácio, à sua procura”.
CAPÍTULO 5
O
candidato atravessou a rua, subiu os degraus da escada dois a dois, como nos
bons tempos de rapaz de escola, e entrou na sala desculpando-se de se ter
demorado um instante: “tinha ido ali defronte, visitar o seu velho amigo
Pascoal”.
— E
muito o honra não olvidar as pessoas com quem tratou na infância, mormente
sendo... enfim sendo pessoas de condição humilde, observou benignamente o
comendador.
Estavam
já ali, além do João Lopes, o Castro, o Moniz e mais alguns convidados do
jantar da véspera, com três ou quatro novos amigos políticos. O Moniz
apresentou particularmente um destes, um rapaz amarelo, apertado na sobrecasaca
preta, com uma gravata de cetim azul bastante ensebada:
— O
meu amigo José Mena.
—
Tenho o maior prazer em conhecer pessoalmente a vossa excelência — disse o
rapaz, estendendo a mão ao Júlio. — Tenho admirado muito os seus belíssimos
artigos no Facto.
— O
Mena também é escritor, é uma das ilustrações cá da nossa terra — explicou o
Moniz.
—
Pelo amor de Deus! — atalhou modestamente o Mena.
—
Publiquei apenas alguns contitos insignificantes, muito singelos... um pouco vívidos
talvez... naquele gênero simples do Daudet.
—
Ah!... no gênero do Daudet! — disse o Júlio numa surpresa profunda.
— E
escrevo as crônicas literárias no jornal do distrito, no Clarão do Sul. É possível que vossa excelência! as tenha notado?
—
Li alguns números do jornal, mas não... não me lembro bem...
— Eu
na crônica não uso o meu nome, assino Sagaz.
—
Ah!!
A
entrada de novas visitas veio interrompê-los. O comendador fazia
cerimoniosamente as apresentações; e os amigos políticos sentavam-se em roda,
com os chapéus altos sobre os joelhos, enquanto o Júlio começava a notar com
uma certa inquietação, que tinha poucas cadeiras, e algumas quebradas.
Mas
a conversa tornou-se geral. O João Gualberto falou: “na situação desgraçada do
país”. Então o Lopes, com as pernas abertas, as mãos nos joelhos, expôs as suas
ideias:
— O
que não pode continuar é esta desconsideração sistemática da propriedade. A
agricultura, a nossa primeira indústria, descurada; salários cada vez mais
caros; encargos pesadíssimos; o preço do gênero como todos nós sabemos; nisto é
que ninguém pensa. Porque afinal quem nos governa são empregados públicos...
moços de inteligência, não há dúvida!... mas sem sisudez, sem terem interesses
ligados à terra...
— E
que no fim de contas o que querem é comer, interrompeu o Castro mais positivo.
—
Não digo tanto, Castro, não digo tanto!... Ainda que desgraçadamente parece,
que alguns se têm locupletado à custa dos dinheiros públicos. O remédio,
tenho-o eu dito muitas vezes, está em restituir à propriedade a sua legítima
influência. A propriedade territorial é a verdadeira, é a única aristocracia
dos nossos dias...
—
Não devemos esquecer a aristocracia do talento, Sr. João Lopes — observou o
Mena.
—
Ora, sior Mena — atalhou o Castro
sempre positivo. — Faz favor de me dizer o que paga a tal aristocracia do
talento? Quem paga é a terra, e quem deve governar é quem paga... tudo o mais
são histórias.
—
Felizmente o nosso Azevedo reúne as duas aristocracias — disse o Moniz
conciliador.
O
Júlio tinha-se levantado para ir receber o velho Galrão, que entrava, coberto
pelo capotinho apesar do calor; e lhe apresentou um homem gordo, de suíças
brancas, sem gravata, com os colarinhos altos, bem lavados, presos por dois
botões de filigrana de ouro:
—
Senhor Dr. Azevedo, o Sr. Francisco Dias, um antigo amigo de toda a sua
família.
—
Ora ainda bem que torno a ver um Azevedo nesta casa! — disse o lavrador,
apertando fortemente a mão fina do candidato.
E
começou a falar-lhe do pai, da avó, “uma santa senhora, uma dona de casa como
já as não havia”; tudo isto num tom de amizade, de respeito sincero pelo nome e
pela família dos Azevedos, que lisonjeou o rapaz, descansando-o da eloquência
do comendador. Gostou do homem, achou o original, muito fino sob a sua bonomia
rude.
Mas
o Mena veio dizer-lhe ao ouvido, com a familiaridade de um confrade em letras:
—
Um bom tipo, hem! Vossa excelência vai-se divertir muito com estes selvagens.
E o
Júlio sorriu, pensando que o bom tipo, o tipo divertido e reles, era o Mena e
não o lavrador.
As
visitas demoravam-se, hesitando em se despedir. Mas, quando o Moniz e o Mena
deram o exemplo, foi uma debandada geral. Agora ficavam unicamente o João
Lopes, o Galrão e o Castro, de pé junto de uma das janelas. E sós, mais à
vontade, o Lopes desenvolveu o plano de campanha:
—
Passado amanhã vamos a São Gens, por causa do João Máximo. O João Máximo está
duvidoso.
—
Ah! O João Máximo está duvidoso? — disse o Júlio para dizer alguma coisa.
—
Está! O homem está retirado. Ficou descontente desde a última eleição... desde
o caso que se deu com o Dr. Fragoso. Há de saber?
—
Bem sei — respondeu o Júlio, que não sabia nada.
—
Pois ficou; mas indo nós lá, estou certo que o levamos a campo. E pode dar-nos
um bom contingente... ele tem ali muita influência!
—
Não esqueça a carta para o visconde — insinuou o Castro.
—
Ah! é verdade; fez bem em me lembrar, Castro. É necessário que o conselheiro
Freitas escreva ao visconde.
—
Eu mando pedir a meu tio que lhe fale, e estou certo que o Freitas manda
imediatamente a carta.
—
Pois é urgente. O visconde sempre pertenceu ao partido, mas tem antigas
relações de amizade com este governador civil, e por ora não quis dar a cara.
Escrevendo-lhe o conselheiro Freitas, que foi quem lhe deu o título, quando era
ministro do Reino, estou certo que se decide...
Mas
o comendador interrompeu-se, vendo o relógio; e, dirigindo-se de novo para o
candidato, acrescentou amavelmente:
—
Isto são horas das sopas, e o Sr. Azevedo vem jantar comigo.
—
Eu não quero incomodar.
—
Incômodo, nenhum! E depois o meu amigo hoje não tem remédio senão vir. Isto cá
na sua casa está ainda tudo no ar... Vem, Sr. Galrão?
—
Obrigado... obrigado, a minha esposa espera-me.
—
Você vem, Castro, pode ser preciso tomar alguma nota depois do jantar.
E o
comendador enfiou o braço no do Júlio, dando-lhe apenas tempo de pegar no
chapéu e nas luvas, protestando contra qualquer mudança de toilette:
—
Isto é sem cerimônia, meu caro amigo, não estamos na capital.
Se
o Júlio se não tivesse esquecido um pouco da topografia da vila, teria notado
que o comendador o levava por um caminho singularmente longo. Subiram toda a
Rua do Álamo, e foram virar à Rua de São José, direitos à Praça. O João Lopes
levava-a fisgada. Queria atravessar a Praça e passar diante da loja do Faria, o
baluarte dos contrários, em toda a sua glória, com o seu candidato pelo braço.
Quando
desembocaram na Praça, viu imediatamente que não perdera o tempo. À porta da
loja estava o Faria, um beirão atarracado, de barriga em bico, e barretinho de
pala de seda preta. E, encostado à ombreira, o administrador de concelho, muito
engoiado sob o chapéu alto, conversava com o Joaquim Carvalho, o mais moço dos
do Lendroal, um rapaz forte, de chapéu à serrana, botas de montar, e jaqueta de
alamares. Trocaram saudações corteses, mas frias:
—
Senhor administrador... meus senhores.
—
Senhor João Lopes.
E
os três ficaram examinando criticamente o veston
justo de quadradinhos e as calças escuras do Azevedo.
—
Parece um palhaço! — disse o Joaquim Carvalho, que tinha visto em Lisboa os clowns da companhia do Dias.
CAPÍTULO 6
Na
véspera à noite, o Júlio apenas entrara na casa de jantar improvisada ao
rés-do-chão; mas hoje, o comendador fê-lo subir a escada de ladrilho,
escrupulosamente limpa e almagrada de fresco; e, atravessando uma pequena casa
de espera, introduziu-o na sala.
Estava
claríssima a sala do comendador, com o teto e as paredes bem caiadas, reluzindo
numa brancura maculada. O sol daquela bonita tarde de maio entrava largamente
pelas duas janelas que davam sobre a Praça, e, passando através das cortinas
transparentes, apanhadas nos patéres
de folha dourada, caía em faixas oblíquas sobre o esteirão espanhol de esparto,
amarelo e vermelho. Não havia ali tambores carunchosos, nem veneráveis e
inválidos bufetes de pau-santo, como no palacete da Rua do Álamo; pelo
contrário, todos os móveis pareciam sair naquele momento do armazém. Um canapé
e doze cadeiras, de mogno e reps verde, recentemente comprados na Rua Augusta,
guarneciam as paredes em linhas regulares e simétricas. Ao fundo, por cima do
canapé, estava suspenso um largo espelho, com a sua moldura dourada, nova,
muito crua sobre o branco forte da cal. E, das paredes dos lados, encaixilhadas
em madeira preta com filetes dourados, pendiam quatro litografias de Julien, aux deux crayons: uma pastorinha da
Suíça com as tranças caídas; uma castelã da Idade Média; uma tirolesa,
rechonchuda e alambicada; e uma contemporânea qualquer de Mademoiselle de
Montpensier, largamente provida de caracóis. Entre as janelas, um piano; e,
defronte, uma mesa de jogo — da Rua Augusta — fechada, tendo em cima dois
castiçais de prata, assentes em tapetinhos de lã, ornados de contas de vidro.
Diante do canapé, uma mesa oval — sempre da Rua Augusta — sobre a qual se via
um candeeiro de petróleo de zinco esverdeado, um cestinho de prata arrendada
contendo bilhetes-de-visita, um álbum de retratos, e um volume do Musée des jamilles. Tudo isto era
nítido, correto, e absolutamente novo.
O
Júlio apenas teve tempo de ver rapidamente estas coisas, porque a porta do
fundo se abriu, dando passagem às duas velhas irmãs do João Lopes, seguidas por
um padre moço, alto e magro. E, ao ver entrar as duas senhoras no antigo traje
da província, as saias redondas e um pouco curtas, os xales de lã nos ombros,
os lenços de seda escura sobre os cabelos grisalhos, o rapaz teve uma emoção.
Achou-as parecidas com a avó. Era o mesmo vestuário, era o mesmo ar sereno,
bondoso, um pouco apagado mas digno, formado pela longa influência da vida
tranquila, passada no conforto pálido da casa abastada. Ao vê-las, sentiu como
um toque suave e doce das velhas ternuras, do aconchego tépido de umas saias de
mulher em que se aninhava em
pequeno. O sorriso, com que inventariara a sala do
comendador, apagou-se; e foi com um respeito comovido que ele se curvou perante
as duas senhoras.
Mas
o João Lopes apresentou-lhe o padre, um antigo condiscípulo; e o Júlio
lembrou-se logo de o ter visto na aula do padre Salgado, rapaz já feito,
esgrouviado, muito pobre, com uma quinzena roçada de mangas curtas, que deixava
ver os punhos da camisa esfiados, e os pulsos ossudos, vermelhos do frio: “Com
que então tinha-se ordenado?”
— O
nosso padre José está capelão da Misericórdia — explicou o João Lopes.
—
Favores aqui do Sr. Provedor — acrescentou o padre curvando-se.
—
Não tem que agradecer, padre, foi justiça... foi simples justiça.
Neste
momento a porta abriu-se de novo, e uma senhora entrou majestosamente, apertada
no vestido de xale preto.
—
Permita-me que o apresente a minha esposa — disse o comendador: — Amália, o Sr.
Dr. Azevedo.
—
Muitíssimo prazer em o ver nesta casa — disse ela, estendendo corretamente a
mão ao seu hóspede.
E,
voltando-se para o João Lopes:
—
Menino, o jantar está pronto.
Passaram
para a casa de jantar, pegada com a sala, muito alegre também, iluminada por
uma porta de vidros que dava sobre o terraço. À mesa, ao princípio, ficaram
calados; mas o Júlio, em excelente disposição de espírito, pôs todos à sua
vontade, falando dos antigos tempos, lembrando-se de tudo, dos nomes das
pessoas, dos sítios onde ia passear. Interrogou diretamente o padre José, querendo
notícias dos condiscípulos... “o Moniz tinha-o visto já!... Mas o Chico
Saraiva? E os dois Sequeiras, os filhos do capitão reformado? E o... aquele, um
gordo... que nunca sabia a lição?”
— O
Antônio Soares?
—
Isso!
—
Está prior na Corte.
— O
quê, também se fez padre?!
— O
rapaz, coitado, precisava de um modo de vida... o pai tinha-lhe dado cabo de
tudo — explicou muito naturalmente o padre José.
Mas
o que encantou sobretudo as duas velhas irmãs, foi o modo por que o rapaz
falava da avó, com um respeito profundo, com uma saudade ainda viva. No dia
seguinte, não se calavam em elogios ao Azevedo: “Tão bom rapaz”, diziam elas,
“parece impossível que seja dos que escrevem nos papéis!” O comendador, porém,
emendou-as, advertindo: “que entre os redatores havia pessoas muitíssimo
sérias... que a imprensa era uma instituição útil, sendo regrada”.
E,
na verdade, as duas santas senhoras faziam dos jornalistas uma ideia singular.
Julgavam todos pelo José Mena, que — segundo afirmavam na vila — tinha roubado
os resplendores de prata dos santos no oratório da mãe, para ir jogar a batota
no bilhar do Caxinha, à esquina do Terreirinho.
Durante
o jantar, e apesar da conversa, o Júlio observou dissimulada e curiosamente a
sua vizinha do lado. Deu-lhe trinta e cinco... talvez quarenta anos. Em todo o
caso era uma bela mulher, alta e forte sem ser gorda, com um busto amplo, muito
apertado no vestido de faille, que
reluzia como uma couraça. Quando se voltava para ele, nas atenções naturais de
uma dona de casa, envolvia-o no olhar direto dos seus olhos verdes, a que os
cabelos, muito pretos e lustrosos, e as sobrancelhas espessas davam uma
expressão um pouco dura. Pareceu-lhe uma senhora muito decidida. Trinchou o
peru assado com gestos corretos mostrando os anéis ricos de gosto duvidoso; e
dava às duas moças que serviam, ordens curtas e claras, prontamente obedecidas.
Falou
pouco ao jantar, como se os assuntos locais, que seduziam as duas cunhadas,
fossem menos dignos da sua atenção; mas depois, quando serviu o café na sala,
mostrou-se muito amável, pedindo ao Júlio que fumasse:
—
Faz favor de se não prender, Sr. Azevedo, nós as senhoras estamos todas tão
acostumadas.
E,
como o Júlio colocasse a xícara do café sobre o piano, perguntou-lhe se tocava,
dizendo-lhe que a música era a sua distração favorita, que passava ali horas e
horas. O Júlio tocava também, de ouvido, bocados de valsas, e umas peteneras e tangos, aprendidos em má companhia. Esta semelhança de talentos
estabeleceu logo uma familiaridade. Falaram de São Carlos e das últimas óperas.
D. Amália ia todos os invernos passar uma temporada em Lisboa, e o teatro
lírico era a sua paixão. Ao lembrar-se dos prazeres da capital, lamentou-o:
—
Vai-se aborrecer muito nestes dois meses.
—
Não me parece, minha senhora, e basta para me não aborrecer o ter a honra de
ser recebido em casa de vossa excelência.
— É
muito amável, Sr. Azevedo, mas vai... olhe que se vai aborrecer muito! Isto é
uma terra impossível, sem passatempos de espécie alguma, sem convivência quase.
É um desterro para as pessoas criadas de uma certa forma...
Lentamente,
numa conversa cortada, fazia-lhe as suas confidências. Disse-lhe quantos anos
tinha passado em Lisboa, no colégio da madama Santos, a Buenos Aires, uma
senhora finíssima, de uma educação esmerada. Falou-lhe da sua terra, Setúbal,
uma terra boa, e tão próxima da capital. Tinha conhecido ali o João Lopes, que
estava a banhos. Havia uma grande diferença de idade entre os dois; mas a sua
família toda desejava muito aquela união, e... o tempo das primeiras ilusões já
tinha passado. Podia dizer que fora muito feliz. Nunca se arrependera de ter
dado aquele passo; ninguém decerto seria mais atencioso, mais delicado do que o
comendador:
—
... mas tenho uma criação, um modo de pensar muito diverso das pessoas daqui. É
muito triste não ser compreendida!... — terminava ela com um suspiro.
—
Vossa excelência não tem filhos? — perguntou o candidato talvez
indiscretamente.
—
Ai não, Sr. Azevedo, e felizmente... filhos são cadilhos. O João Lopes desejou
muito ter um herdeiro, mas hoje, coitado, nem pensa nisso.
Havia
nesta última frase um desapego tão desdenhoso, que o Júlio involuntariamente
levantou os olhos para o comendador. Viu-o sentado na extremidade da sala,
conversando com o Castro e o padre José. De pernas abertas, por causa da
barriga, a papeira caída sobre a gravata preta, tinha um ar lamentável de
abatimento pomposo e gordo. O Júlio começava a interessar-se — neste interesse
muito especial, despertado sempre pela mulher que parece fácil, ou simplesmente
possível. E, muito amável, num principiozinho já de corte, insistiu para a
ouvir. Ela então pôs-se ao piano, e, depois de uns acordes, cantou-lhe uma romance qualquer, muito conhecida.
A
tarde caía. Lá fora havia um silêncio, cortado apenas pelo ruído dos carros de
mulas, que atravessavam a Praça, voltando do trabalho. Na obscuridade que
invadia a sala, o João Lopes e o padre José escutavam sonolentamente; e,
encostado ao piano, a luneta no olho, o Júlio via de vez em quando os olhos
verdes de D. Amália voltarem-se para ele numa expressão exagerada.
A romance esfriou-o; achou-a mal cantada,
com uma pronúncia detestável. Pareceu-lhe a cantora ridícula. Mas, apesar de
tudo, quando recolheu a casa pensou muito na nuca forte e bem encabelada, no
buço esfumado sobre os beiços vermelhos, e no olhar direto da mulher do
comendador. — Que diabo quererá ela? — foi a sua última reflexão.
CAPÍTULO 7
No
dia marcado, o João Lopes e o Azevedo foram a São Gens, visitar o João Máximo; e
ao outro dia à Corte, onde estava prior o Antonico Soares; e no dia seguinte a
São Miguel. Às noites juntavam-se na sala pequena à esquerda da casa de espera
— a que o comendador chamava o seu escritório, apesar de nunca escrever. Ali, à
luz do candeeiro de petróleo, o Castro lia o recenseamento; tomavam-se notas;
faziam-se cálculos; vinham trazer notícias os galopins subalternos, o Chico
barbeiro, e o Norberto, um oficial de diligências demitido, que esperava ser
reintegrado quando o ministério caísse. Mas pouco a pouco os trabalhos
afrouxaram. Por maior que fosse o zelo do João Lopes e do Castro, era
impossível ficar dois meses inteiros na brecha. Depois, as coisas tomavam bom
aspecto; o João Máximo decidiu-se; o visconde pronunciou-se; os governamentais
andavam muito descoroçoados. Finalmente o candidato podia respirar.
Ia
todas as noites a casa do comendador, mas, enquanto ao emprego do dia,
conquistara uma independência relativa. Estava já regularmente instalado na sua
velha casa. Uma das suas moças, a Josefa, saiu-se uma cozinheira de talento.
Tinha-lhe chegado de Lisboa um caixote de livros; e, mesmo no seu quarto de
dormir, improvisara uma grande mesa de trabalho, com o seu tinteiro, as suas
penas válidas, e uma boa provisão de papel almaço. Ali, durante as horas de
calor, redigia as correspondências para o Facto,
ou os primeiros capítulos de um romance esboçado. E sentia-se em veia, escrevia
umas páginas mais vivas, mais naturais do que tudo quanto tinha escrito até
então. Afastado de todos os modelos, em contato íntimo com a poesia penetrante
e severa daquela natureza um pouco árida, o seu modo de dizer despia-se das
fórmulas convencionais, tornava-se mais simples e mais vibrante, como se o
animasse o ar fino, que entrava largamente pela janela, aberta de par em par,
como se o iluminasse a luz forte, que inundava o vale.
Quando
passeava no quarto, procurando uma frase, mascando nos dentes a ponta do
cigarro apagado, sucedia-lhe ficar-se parado defronte da janela, absorvido na
contemplação daqueles campos vastos, alongados sem fim, onde as searas iam
branqueando de dia para dia. As ceifas das cevadas temporãs começavam já. Pelas
onze horas, as moças recolhiam do trabalho, andando depressa sob o sol pesado;
e os ranchos de figuritas negras, graciosamente envoltas nos xales, animavam um
momento a solidão das estradas, poeirentas e claras. Às vezes, de manhã,
passavam vacadas, voltando das pastagens da serra — as reses vermelhas vinham
lentamente, marcando o passo no aceno das cabeças finas, fazendo soar os
chocalhos num ritmo demorado, que acentuava o largo silêncio tranquilo.
Sentia-se o Verão chegar. Os trigos amadureciam. O trabalho misterioso da vida
completava-se, pondo nas sementes o germe da vida futura. O ar vinha de longe,
morno, em sopros leves, carregado das emanações aromáticas e bravas das grandes
charnecas fortemente aquecidas. E ele então experimentava o prazer puramente
animal de viver, da retina que se banha de luz, dos pulmões que se enchem, dos contatos
tépidos na pele; qualquer coisa como a beatitude refletida nos olhos mansos dos
bois, ruminando ao sol, enterrados na erva até ao joelho.
E
sempre, antes de recolher para dentro, deitava os olhos para o quintal das
roseiras. Uma ou outra vez via a Margarida a despregar roupa no seu gesto
gracioso, em bicos de pés, os braços erguidos. Trocavam de longe uma saudação e
um sorriso; e ele vinha sentar-se à mesa de trabalho, com os olhos e o cérebro
cheios de luz — talvez do sol, talvez do sorriso da rapariga.
Terminada
a página, o Júlio demorava-se ainda numas voltas pelo quarto; e depois descia,
dando-se a si próprio uma explicação... “ia fazer um bocado de companhia ao
Pascoal, coitado!... ouvir-lhe repisar pela centésima vez as velhas histórias”.
Ao
acabar da aula, a Henriqueta vinha sentar-se numa cadeirinha baixa, ao lado da
cama do pai. Como o tempo ia quente, a janela abria-se, deixando ver um
cantinho do quintal a ruazita fugindo entre linhas de alfazema, as roseiras
altas, mal talhadas, batendo na ramagem clara das amendoeiras. Os prisioneiros
do Pascoal chilreavam; e, lá fora, na sua gaiola de cana, dois melros ensaiavam
assobios hesitantes, numa modulação fresca de primavera. Uma roseira-detoucar
orlava a janela, e os cachos compactos de rosinhas brancas, miúdas, caíam em festões. A Margarida ,
que ensaboava no quintal, vinha encostar-se ao parapeito da janela, pelo lado
de fora, com os braços trigueiros, muito puros de forma, ainda úmidos do sabão. E ficava ali
muito tempo, imóvel, os olhos pretos atentos, escutando o Júlio. O sol,
refletido na parede do fundo, orlava-lhe os cabelos crespos de um contorno
luminoso, deixando-lhe o rosto numa sombra vaga; e as rosinhas-de-toucar
formavam-lhe em volta uma espécie de moldura de vieux saxe, fresca e virginal. Quando o Júlio tinha graça — o que
lhe sucedia várias vezes —, Margarida descerrava os lábios num dos seus risos
claros de criança; e uma atmosfera viva e alegre de mocidade e primavera enchia
o quarto do pobre paralítico.
Pouco
a pouco as visitas amiudavam-se e prolongavam-se. O Júlio agora passava as
manhãs no quarto do Pascoal. Às vezes, com um pretexto qualquer, voltava de
tarde. As suas criadas já sabiam onde ele estava. Ali lhe vinham trazer os
escritinhos urgentes do comendador; e as grandes bandejas de doces da D. Amália:
“... com muitas recomendações da senhora”, como dizia o moço dos recados. Ele
sentia-se bem, à vontade, entre as duas raparigas muito singelas, e muito
inteligentes na sua singeleza. Todas as vulgaridades da meia civilização que o
feriam na casa do comendador, desapareciam ali, naquele interior primitivo. E,
sem que o pressentisse a princípio, a paixão da Margarida retinha-o,
envolvendo-o, penetrando-o, como o envolvia e o penetrava o ar fino daquelas
manhãs límpidas de Primavera.
E
era uma paixão! Logo nos primeiros dias, sem o saber e sem o querer, ele tomara
posse do coração da rapariga, como de uma coisa naturalmente sua. Margarida
tinha chegado aos vinte e dois anos sem um namoro, guardada pela vigilância da
Henriqueta, pela vida quase clausurada, sobretudo pela timidez altiva. Arredada
de uns pela sua situação humilde, de outros por um principiozinho de educação e
pelos instintos finos, encerrara-se no retraimento doloroso da sua pobreza. O
aparecimento do Júlio, superior a tudo quanto tinha visto e tinha sonhado, veio
trazer uma funda perturbação à sua existência sossegada. Sentiu-se subitamente
presa por aquela inteligência clara, elevada, ocupada de mil coisas que ela não
percebia, mas começava a adivinhar na sua intuição sutil de mulher já namorada.
E ao mesmo tempo que o Júlio a deslumbrava como um ente quase sobrenatural,
tranquilizava-a pela familiaridade alegre e franca de antigo companheiro. Na
fisionomia original do Azevedo, tão finamente insolente, quando em presença de
estranhos encaixava o monóculo na órbita, havia sempre para ela o sorriso
carinhoso e bom de um irmão mais velho. E ela achava-se bem na sua
inferioridade, na sua admiração sem limites de mulher submissa.
Tudo
nele a seduzia, a finura do seu espírito, como os requintes absolutamente
desconhecidos da sua elegância. Para a pobre rapariga, que só vira a jaqueta
domingueira do Pedro carpinteiro, ou, à porta da igreja nos dias de festa, as
gravatas vistosas do Mena e do Moniz, houve uma revelação nos vestons de flanela branca do Júlio, nas
suas meias azuis com estrelinhas vermelhas, nas suas mãos bem cuidadas, nos
anéis sólidos, tendo as esmeraldas e os rubis fundamente cravados no ouro
fosco. Todos os pequenos objetos da elegância masculina a surpreendiam: a
pérola do alfinete; a cigarreira de prata, onde os phereslies descansavam em simetria no fundo dourado; as firmas de
cor nos lenços perfumados, que ela admirava muito com os seus conhecimentos
práticos de costureira.
Então,
diante dele, achava-se ignorante e rude, nos seus vestidinhos de chita, na
vulgaridade das suas mãos bonitas, mas um pouco avermelhadas e grossas do
sabão. Julgava-se duramente, muito humilde, muito distante dele, apenas digna
de ser sua criada, uma das suas moças, como eram a Josefa, ou a Bárbara. Mas depois
lembrava-lhe a camaradagem de outros tempos. Via nele a antiga imagem do rapaz
enérgico e forte, que protegia a sua fraqueza de pequenita de oito anos.
Feria-a assim com todo o vigor de uma impressão nova, e com toda a suavidade de
uma recordação de infância. E, docemente, confiada, deixava-se ir sem
resistência para aquele amor, que era como a continuação natural de uma amizade
inocente. Com um atrevimento puro de criança fixava nele largos espaços os
olhos meigos, sem fugir aos seus olhares.
Mas,
às vezes, sentia-se perturbada, numas revelações súbitas, quase brutais, da
intensidade da sua paixão. Um dia que estava fazendo renda, o Júlio veio ver a
obra, passando-lhe o braço à roda da cintura. Assim, muito perto dela, a sua
respiração agitava-lhe levemente os cabelinhos da nuca; e ela julgou
desfalecer, uma onda rosada tingiu-lhe o pescoço e as faces, e, na pele até à
raiz dos cabelos, correu-lhe um arrepio doce, de uma doçura tão funda que era
dolorosa. Ao mais leve contato percebia que era toda dele, o corpo como a alma.
E, vagamente, sabia que a um aceno lhe teria caído nos braços, rendida antes de
combater, sem defesa possível.
O
Júlio, porém, estava a mil léguas de pensar em uma sedução. Se lhe ocorresse
tal ideia decerto a teria repelido sem hesitar — a casa do seu velho Pascoal
era sagrada para ele. Mas, na verdade, nem mesmo resistiu à tentação, porque
não tinha consciência do amor pela rapariga. E, se lhe tivessem dito, que ele
gostava da Margarida, teria dado uma gargalhada. Que disparate! Era amigo das
duas irmãs... da Margarida como da corcunditata. Isso era! muito amigo dela...
nada mais.
Somente,
quando passava algumas horas sem a ver faltava-lhe o que quer que fosse.
CAPÍTULO 8
Os
dias e as semanas passavam, e — contra o que prognosticara a D. Amália — o
Júlio não se aborrecia.
Uma
única coisa lhe bulia às vezes com os nervos, e era exatamente a que o trouxera
ali — a eleição. O ingênuo redator do Facto
trazia sobre eleições ideias um tanto falsas; sonhara comícios, movimentos de
opinião, vontades populares energicamente manifestadas; e vinha cair em umas
transações mesquinhas de pequeninos favores e de ressalvas de recrutamento.
Como entendia pouquíssimo destes manejos, sentia-se inútil nas complicações da
sua própria eleição. Via que o não consultavam; percebia que o tinham mandado
vir unicamente para o mostrar, como um objeto de luxo, uma espécie de coche de
respeito, um cavalo do estado de São Jorge bem encaparazonado. Esta situação um
pouco singular não o incomodava, divertia-o até, vendo-lhe bem todo o lado
cômico; mas outras coisas mais positivas repugnavam-lhe. Ele viera naturalmente
com a intenção firme de não dever a sua eleição ao dinheiro. Não se lhe dava de
gastar alguns centos de mil réis em despesas indispensáveis; mas coisa que
cheirasse a compra não queria — positivamente não queria. Ninguém lhe falou em
gastar um real. Não lhe era difícil, porém, perceber que o comendador gastava
por ele, e gastava bastante. Isto no fim de contas vinha a dar no mesmo;
simplesmente, era mais econômico e... mais reles. E, sempre que demorava nesta
ideia, sempre que uma alusão qualquer a despertava no seu espírito, ficava mal
à vontade, aborrecido, envergonhado quase.
Uma
tarde, já luzes acesas, entrando ao passar na botica, encontrou o Moniz todo
paramentado, de colarinhos altos, um botão de rosa do fraque preto — era o dia
da recepção íntima do comendador. O Mena, pelo contrário, pareceu-lhe
particularmente sujo, com a barba de três dias, e a pele amarela muito
lustrosa. O comendador nunca o convidava para casa, apesar de ele pertencer ao
partido — isto irritava-o. Afetava então maior desalinho, um desprezo do mundo,
uma superioridade de homem de letras.
Enquanto
o Moniz se inundava de água-de-colônia, e dizia ao Josezinho, o praticante, que
podia fechar mais cedo, o Júlio ficou vendo a partida de damas do João
Gualberto com o prior — dois jogadores de fama. O Mena, entre portas,
assobiava; e, de repente, voltando-se:
—
Então o João Máximo sempre entalou o Lopes com a fiança?
—
Parece que sim — respondeu o João Gualberto secamente, sem levantar os olhos do
tabuleiro.
—
Estava claro que o tal sujeito não dava os votos de graça! — acrescentou o Mena
no seu tom azedo de homem amarelo.
O
Júlio não fez reflexões, e a conversa caiu. Mas depois, quando saíram todos
para a Praça, deu o braço ao Moniz, obrigando-o a ficar para trás,
perguntando-lhe: “que história era aquela da fiança?”
—
Homem, é simplicíssima! — respondeu o Moniz. — É uma dívida de novecentos mil
réis que o João Máximo aí tinha, de que lhe não queriam renovar a obrigação, e
de que o Lopes ficou agora por fiador.
—
Para que o outro lhe desse os votos de São Gens?
—
Provavelmente.
—
Que diabo... isso é extremamente desagradável!
—
Desagradável, o quê?
—
Desagradável que o Lopes esteja assim a gastar dinheiro na minha eleição.
—
Deixa lá, que tens tu com isso? Estás muito enganado se cuidas que o Lopes te
faz deputado pelos teus belos olhos... É para conservar a sua influência...
para ser o reizinho cá da terra. Ora essa! se quer custe que lhe custe... Olha,
deixa-o gastar, e vem daí para casa dele... a D. Carolina já passou há que
tempos com as sobrinhas.
Esta
filosofia prática do Moniz não quadrava completamente ao Azevedo, que subiu a
escada do comendador muito contrariado.
Logo
na casa de espera, vendo os xales das senhoras sobre as cadeiras, e os chapéus
pendurados, o Moniz exclamou:
—
Olá! temos enchente!
E,
ao entrarem, ficaram parados, para não interromper. As duas sobrinhas da D.
Carolina tocavam a quatro mãos um pot-pourri
da Traviata; e, junto do piano, o
amanuense da câmara, sério e pálido, passando de vez em quando os dedos no
bigode preto, voltava a folha. Isto desagradou ao Moniz, que namorava a mais
velha.
Encostado
à ombreira da porta, escutando o piano por polidez, mas sem o ouvir, o Júlio
via distraidamente as senhoras, sentadas em fila ao longo da parede, nas
cadeiras de reps verde. Conhecia-as
todas: a velha esposa do Galrão e a filha, uma rapariga dos seus trinta e
tantos anos, seca e magra, de uma magreza ácida de solteira; a prima D. Joana,
na sua apatia mole, entre as duas irmãs do Lopes; a D. Carolina, uma viúva
ossuda e rica, de buço preto, sempre afogueada; a D. Plácida, a mulher do
cirurgião, pequenina, muito puxada, fresca ainda nos seus quarenta anos.
Abanavam-se lentamente num abatimento doce, tendo nas fisionomias apagadas um
ar tranquilo, como uma resignação à monotonia indefinida e vaga da vida. E,
mais no fundo, no canapé por baixo do espelho, o Júlio via as meninas, duas ou
três, direitas nos vestidinhos malfeitos, deixando escorregar os olhares sonsos
até ao grupo dos homens compacto na porta da casa de jantar.
Quando
entrou, o Júlio abaixou de longe a cabeça à D. Amália; e, ao terminar o pot-pourri num murmúrio de aplausos,
atravessou a sala para lhe falar.
—
Vem hoje muito tarde! — disse-lhe ela, envolvendo-o todo nos olhos verdes,
pondo nesta simples frase uma queixa imperiosa.
—
Demorei-me um bocado na botica do Moniz — respondeu ele quase secamente.
A
sua flirtation com a D. Amália
continuava, mas frouxa, sem um passo decisivo, cortada de hesitações, de
escrúpulos, de faltas de pachorra; e demais, naquela noite estava nervoso,
pensando ainda nos novecentos mil réis do João Máximo.
Mentindo
à sua reputação já bem estabelecida de amabilidade com as senhoras, passou um
pouco desdenhoso, com a luneta caída, indo juntar-se ao grupo dos homens, que
fumavam no terraço. Teve um momento a intenção de se explicar com o Lopes sobre
aquela secantíssima questão do dinheiro; mas francamente a ocasião era mal
escolhida. E não tinha mesmo tempo de lhe falar; todas as senhoras estavam de
pé, entrando para a casa de jantar. Era a hora do chá, que se costumava servir
ali à roda da mesa. E neste movimento forçado, elas animaram-se um pouco, em
conversas mais íntimas, mas lentas, no tom discreto de pessoas bem-educadas.
Junto da mesa, a D. Amália fazia as honras na sua solicitude vigilante de boa
dona de casa.
—
Os merendeiros que estão frescos, prima Joana!... mais uma chávena, Sr.
Cairão?... com pouco açúcar, não é verdade, Sr. Azevedo?...
De
pé, a um lado, os homens graves conversavam, sorvendo devagar pequeninos goles
do chá muito quente. Vinham os assuntos mil vezes repisados: os olivais que
estavam bonitos com muita flor; os trigos que não engrandeciam, queimados por
aqueles calores de maio; toda uma vida de esperanças e decepções. E, naquelas
queixas de lavradores, sentia-se passar o amor à terra, o amor vivo e
entranhado a uma ingrata, que pagava tão mal aos seus apaixonados. Pouco a
pouco caíram na eterna questão do trabalho; falaram dos criados que se não
podiam sofrer, uma súcia de bêbedos, sem respeito aos amos, sem zelo pelas
casas onde serviam; mas os jornaleiros eram piores, mais insolentes, e depois
os salários subiam de dia para dia. O Galrão perguntou:
— A
como traz os homens esta semana?
Então
o Lopes teve um gesto de desolação, como se o mundo acabasse:
—
Não me fale nisso... a catorze vinténs!... e olhe que não pegam no trabalho
senão com uma e duas horas de sol.
—
Eu não sei onde isto há de ir parar! — disse o padre José, remexendo lentamente
o açúcar no fundo da xícara.
Calaram-se,
meditando aquela reflexão profunda; e, na pausa da conversa, o Júlio, que
escutava distraído, ouviu distintamente atrás de si a sobrinha de D. Carolina
dizer em voz baixa:
—
Passas amanhã?
—
Às duas horas — respondeu o Moniz.
Mas
no ruído abafado, comedido, das conversações lentas, as vozes das senhoras
levantaram-se agora, mais altas, num entusiasmo, que os atraiu a todos para
junto da mesa; tratava-se de uma proposta do João Gualberto, acolhida com muito
favor. Habitualmente, depois do chá, a D. Amália organizava uma partida de
loto, ali mesmo em volta da mesa grande; e o João Gualberto acabava de propor o
monte, baratinho, uma brincadeira, para divertir as senhoras. Teve um sucesso;
todas aplaudiram, num desejo de ganho, numa tentação aguda do fruto proibido. A
prima D. Joana, saindo da sua apatia, exclamou:
— É
mais divertido, não é prima Amália?
O
próprio comendador sorriu com benevolência, explicando ao Dr. Azevedo: “que o
jogo era um vício funesto, mas assim em família podia considerar-se um
divertimento aprazível”. Apenas o Castro protestou tacitamente... não se
divertia com aquelas coisas. Esgueirou-se para o escritório, a tomar certas
notas sobre uns diabos de uns eleitores de São Miguel, que lhe não pareciam
seguros.
Todos
rodeavam a mesa; e, mal se levantaram as bandejas, o João Gualberto instalou-se
para talhar, pondo diante de si quatro libras e uns cassoquinhos em prata,
dizendo amavelmente:
—
Vinte mil réis para quem os quiser!
D.
Carolina estava já sentada ao pé do banqueiro; a mulher do cirurgião do outro
lado. A D. Amália chamou o candidato para junto de si:
—
Venha fazer uma vaca, Sr. Azevedo, mas eu é que administro, que o senhor é um
perdulário. Dê-me cá dez tostões.
O
princípio da cartada foi fatal para os pontos; o João Gualberto ganhava de
todos os lados. A D. Carolina, já muito excitada, estendia nos dedos uma moeda
de dois tostões, dizendo:
—
Cerco à sena... mas espere lá, o que é que está morto embaixo?
—
Deve estar morto o valete da cor... mas se a Sra. D. Carolina quer não se mata
nada — respondeu o João Gualberto, que carteava finamente, com muito bons
ditos.
—
Ora muito obrigada ao seu favor!... bem, está morto o valete de ouros, então
cerco à sena.
—
Jogo — disse pausadamente o João Gualberto; e voltou na palma o valete de paus.
Apertado
pela fogosa D. Carolina, o Júlio arredou-se um pouco para trás, pondo o braço sobre
as costas da cadeira da D. Amália, assistindo à sua administração prudente e
hábil dos dinheiros da vaca. Via-lhe o perfil perdido, a nuca forte, redonda,
muito branca sob o nó preto dos cabelos duros. Pareceu-lhe bonita assim, na sua
elegância sólida, as costas largas, o peito oscilando no ritmo da respiração
descansada. Quando se encostava para trás, a abertura em bico do vestido
descobria-lhe o princípio do sulco fundo entre os seios, perdendo-se embaixo na
sombra tépida e provocante. Sentia-a muito perto de si, roçando-lhe no braço em
contatos demorados talvez intencionais, envolvendo-lhe as pernas nas pregas do
vestido azul, num calor penetrante de saias. De toda ela partia a emanação
quente de uma mulher robusta, com o sangue vigoroso, muito desejável na
perfeição outoniça da sua beleza. Esta vizinhança excitou-o, deu-lhe um momento
a necessidade puramente animal de a apertar, de lhe pôr um beijo mordido na
nuca branca, ali mesmo, diante de todos...
Mas
a sua imaginação indômita e caprichosa fugiu-lhe para longe dali. Tudo em volta
dele se apagava pouco a pouco. A D. Amália, o João Gualberto carteando, as
senhoras à roda da mesa, a fila dos homens de pé, estendendo os braços para
receberem os tostões, sumiam-se gradualmente sem contornos já e sem forma, como
se os cobrisse o véu de gaze de uma mágica — daqueles véus que se vão
multiplicando, espessando, obscurecendo, até se tornarem opacos num cinzeiro
negro de nuvens carregadas. E agora, nesta obscuridade, criada pela fantasia,
uma janela abriu-se. Dava sobre um fundo luminoso e claro, todo cheio de sol,
de folhagem viçosa e de flores. Em torno pendiam cachos de rosas-de-toucar,
miudinhas, brancas, apenas tintas de carmim diluído. E ao parapeito da janela
veio encostar-se pelo lado de fora uma rapariga. Tinha o oval fino, sob os
cabelos escuros tocados de reflexos quentes, os olhos negros e alegres, os
beiços entreabertos deixando ver o esmalte brilhante dos dentes pequeninos. E
ficou ali, fitando-o e sorrindo... Passado um instante, a sua expressão mudou;
os olhos negros, levemente pisados em roda, tornaram-se sérios na concentração
íntima de um sentimento absorvente. E aqueles olhos negros eram transparentes,
apesar da sua negrura; via-se através deles, como em algumas noites escuras se
vê a profundidade infinita do céu. E do fundo, muito do fundo da sua
transparência, vinha uma corrente de amor, intensa e doce. Na criação
desordenada do sonho, ele sentia aquela corrente, como se fosse material e
palpável. Sentia-a na testa e no cabelo, semelhante ao sopro de um leque
brando, agitado de manso... E a expressão mudou de novo; o círculo escuro em
volta dos olhos negros marcou-se mais, e eles tomaram a tristeza magoada de uma
queixa humilde e muito submissa; mas esta expressão dorida e queixosa não lhes
apagou o amor, como se coisa alguma neste mundo nem no outro fosse capaz de o
apagar...
Em
volta da mesa houve um movimento, e o Júlio acordou sobressaltado — o João
Gualberto acabava de ir à glória, e a sua vaca com a D. Amália ganhava sete mil
e oitocentos.
Todos
se levantaram para sair: era um escândalo... mais de meia-noite!
O
Galrão já tinha partido com a esposa e a filha. A prima D. Joana,
embrulhando-se muito, saiu também, acompanhada da moça e de um criado de
cacete, porque era uma senhora muito tímida. Os outros desceram a escada em
rancho, numa conversa animada, debicando ainda com o João Gualberto sobre a
perda dos vinte mil réis.
— É
um porquinho de menos na vara — disse o Castro, que acabava de sair do
escritório com a tal lista dos eleitores de São Miguel.
E
já na rua a conversa continuava:
—
Que noite tão linda!
—
Faz um luar que parece dia — observou o padre José.
— Ó
D. Carolina, sempre é bom abafar-se, que está úmido — disse a D. Amália da
janela.
—
Ai não, menina, até está calma.
—
Boas noites!
—
Boas noites!
Foram
deixar a D. Plácida e a filha em casa logo ali na Rua de São José, e a D.
Carolina mais adiante à esquina da Rua dos Ferreiros. O João Gualberto, o
Castro e o padre José seguiram conversando; e o Júlio, sozinho, tomou a
travessa do Fosso ao longo das muralhas... veio devagar pelas ruas desertas da
vila adormecida, fumando maquinalmente, todo cheio de sensações novas e
complicadas.
Antes
de bater ao portão ficou um bocado olhando para a janela da Margarida. Tudo
estava fechado e quieto. O luar iluminava cruamente as paredes caiadas da
escola, enquanto a sua casa parecia mais alta, toda na sombra, recortada em
negro sobre o cinzento-claro do céu sem estrelas. À volta não havia nem um
ruído, nem um movimento; apenas as corujas brancas passavam em cima no seu voo
fofo, absolutamente silencioso.
CAPÍTULO 9
Como
era singular tudo aquilo! Aquela revelação justamente ali à mesa do monte!
Aquela interposição de uma imagem entre ele... e um desejo banal!
O rapaz
passeava no quarto, ruminando estas coisas, dando voltas à roda de uma ideia,
sempre a mesma, insistente e teimosa. Grupava uma um todos os acontecimentos
das últimas semanas, pequeninos, insignificantes, um gesto, um olhar, uma
entoação mais vibrante na voz, coisas vagas, despercebidas no momento; mas que,
agrupadas agora, lhe mostravam o amor da Margarida tão claro, como aquele sol
claro de Maio. O seu primeiro sentimento foi uma alegria intensa e irrefletida,
um desejo vivo de a ter junto de si, de lhe tomar as duas mãos, de ficar
longamente com os olhos mergulhados na transparência dos seus olhos negros. Mas
nesta mesma alegria percebeu de repente, que ele... gostava também da
Margarida; e no seu espírito formulou-se uma pergunta, que ficou sem resposta:
Para quê? Para ter com ela uma aventura semelhante às outras?... para lhe pegar
e largá-la, como teria feito à sua moça, a Bárbara, uma rapariga desembaraçada
e instruída, que decerto se não incomodaria muito com o caso? Isto era
simplesmente impossível; nem o queria, nem mesmo... o desejava. Ele não podia
tocar na Margarida, na velha companheira, na filha do Pascoal, na afilhada da
avó! Então... para quê? Esbarrava nesta pergunta, como em um muro sem porta.
Sim... para quê? E, gradualmente, diante desta embaraçosa interrogação,
veio-lhe uma reação de juízo. Começou a formar planos sensatos, todos cheios de
prudência e de razão. A eleição estava à porta; logo em seguida partia para
Lisboa; e até lá tudo ficaria assim. Mais tarde, a paixoneta da Margarida
passava facilmente... se acaso a tinha. Para se sossegar, diminuía-lhe a
importância... teria inventado talvez... exagerado decerto. Chegou a pensar no
futuro da rapariga, bem estabelecida, tranquila e honestamente casada. Mas esta
ideia do casamento... com outro, deu-lhe um arrepio; repugnou-lhe
violentamente. Não... casada não... assim tranquila e honesta como estava. Era
isso, nem podia ser outra coisa! No entretanto não alterava os seus hábitos...
mesmo por prudência, para se não reparar. E na verdade não tinha nada que
alterar, pois se no fundo não havia nada!
Justamente
era a hora da sua visita ao Pascoal, e desceu a escada, mais lentamente talvez
do que costumava. Achou o velho melhor nesse dia, animado, muito entretido a
mudar de gaiola uns verdilhões que o Pedro lhe trouxera na véspera. No quarto
ao lado, com a porta aberta, a Margarida engomava, atenta ao trabalho,
encanudando habilmente uma saia complicada da D. Carolina.
—
Viva! — disse o rapaz da porta, num tom que julgou perfeitamente natural.
—
Muitos bons dias, Sr. Júlio. Então divertiu-se muito ontem? — perguntou ela
levantando os olhos da tábua.
—
Nem muito, nem pouco... uma coisa. Por que pergunta isso?
—
Porque veio muito tarde.
—
Como sabe? Eu olhei para cá, e estava tudo fechado.
Mas
ela demorou-se a responder, pondo o ferro nas brasas para tomar outro; e,
direita, aproximando o novo ferro da face, experimentando-lhe o calor:
—
Ouvi-o bater ao portão a sua pancada do costume, e dali a um instantinho deu
uma hora.
—
Ah! então o que fazia a menina acordada àquelas horas? — perguntou ainda o
Júlio, forçando-se a brincar.
—
Eu... não sei... não podia dormir.
Calaram-se.
Ambos eles sentiam instintivamente que o som das suas vozes os atraiçoava, que
as palavras não significavam nada, que tinham outra coisa a dizer, a verdadeira
coisa, a que estava lá dentro. Margarida foi a primeira a cortar o silêncio:
— É
verdade, e a sua rosa!
Pagava-lhe
o foro diário de uma rosa para o veston;
e era sempre uma longa escolha no quintal, de botão em botão, a que o Júlio
assistia sem querer intervir. Naquele dia escolheu-lhe uma rosita vermelha,
meia aberta, e veio enfiar-lha na casa, muito unida com ele, séria, tendo
apertado entre os beiços o alfinete com que a devia pregar. Quando terminou,
recuou um passo para admirar a sua obra, levantando para ele um olhar tão
franco e tão claro, que o rapaz ficou indeciso. Sentiu-se penetrado pela paz
íntima da sua expressão. Pareceu-lhe um olhar de irmã. Decididamente... talvez
se tivesse enganado. Era melhor assim.
E,
pouco a pouco, nos dias seguintes, recaiu na sua segurança. Julgava de novo,
que era unicamente muito amigo da Margarida. Uma coisa contribuía para o iludir
— a sua tranquilidade junto dela, aquele efeito tantas vezes repetido do seu
olhar franco e claro. Longe, tinha-a sempre no pensamento, sentia-se inquieto e
impaciente como um verdadeiro namorado; mas ao entrar na escola ficava bem,
contente de a ter ali, de a ver trabalhar, de a ouvir no quintal, cantando a
meia voz a moda nova da vila. E não desejava outra coisa, não se violentava
para a respeitar — respeitava-a pelo simples instinto do seu amor naturalmente
casto. Não lhe reparava no pé bonito e fino, no tom quente do braço trigueiro,
nos peitos pequeninos, direitos sob as pregas do lenço. Não, não gostava dela
assim — gostava dela de outro modo, do que via no fundo dos seus olhos negros,
da alegria do seu sorriso, do seu modo de falar doce e grave, um pouco cantado
à alentejana. Tinha às vezes a necessidade quase irresistível de a puxar para
si, pondo-lhe um beijo longo e apertado na testa, à raiz dos cabelos — nada
mais. O desejo masculino e rude que sentira tantas vezes sem uma parcela de
amor, que sentia junto da D. Amália, apesar de a achar ridícula, de quem teria
nojo uma hora depois, nunca o sentiu ao pé da Margarida. A sua virilidade
diluía-se na intensidade da sua ternura.
E
julgando o seu amor menos forte, exatamente porque era mais fundo, adormecia
numa segurança toda fictícia, sem ver o que se passava dentro de si, sem ver
mesmo o que se passava em volta.
E
era necessário ser cego para o não ver. A história do Azevedo com a
Margaridinha do Pascoal andava na boca de todos. Uma personagem da importância
do candidato não podia dar um passo, sem que dezenas de olhos curiosos o
seguissem; e a frequência das suas visitas a casa do velho escrivão foi notada,
logo desde os primeiros dias. Naturalmente todos acertaram com o motivo; e
naturalmente também ninguém acreditou na inocência do idílio.
Alguns
acharam aquilo malfeito. Os adversários pensaram mesmo em levantar a questão.
Na loja do Faria chegou-se a falar em “sedução de menores”. Mas um advertiu
logo dali: “que era uma asneira, que a rapariga tinha vinte e dois anos já
feitos”. Isto calou-os. E, como a especulação política fosse impossível, o zelo
pela moralidade esfriou.
De
resto, a opinião geral não os seguia, muito indiferente, favorável mesmo ao
Azevedo, numa deferência pelos que estão de cima. Quando na loja do Loureiro se
discutiu o caso, todos se desinteressaram, achando desculpas: “Que diacho, o
Azevedo era um rapaz solteiro, tratava de arranjar a sua vida conforme podia...
e a rapariga lá lhe encontraria também as suas conveniências.”
O
velho Peres, o antigo juiz ordinário, bom latinista e muito devasso, teve um
dito feliz, recordando-se a propósito do seu Terêncio.
— Homo sum: humani nihil a me... — disse
ele, não terminando a citação, numa meia palavra de bom entendedor.
Na
roda, sem perceberem bem, ficaram convencidos, celebrando o dito, penetrados de
respeito pelo texto latino.
Unicamente
o Cairão, tocado pela esposa, se mostrou um pouco inquieto. Chegou a consultar
o Lopes; mas este tranquilizou-o:
—
Olhe, Sr. Cairão, eu não sei o que há, nem quero saber. Em todo o caso não me
parece coisa de circunstância... sim, não anda nisso envolvida uma família das
nossas relações. É uma rapaziada!... E nós quando éramos rapazes não fizemos
também o que pudemos?
—
Lá isso é verdade... e mesmo agora, hem!... e mesmo agora! — disse o Cairão,
com as rugas apanhadas num sorrisinho brejeiro.
Olharam
um para o outro satisfeitos, remoçados até por aquela aventura, numa alegria de
velhos gastos, que folgavam na taberna. E nunca mais falaram no assunto — era
uma questão liquidada.
A
opinião feminina... essa foi contrária à Margarida, absolvendo o sedutor.
Achavam-lhe simplesmente mau gosto. Uma das moças do Azevedo, a Bárbara,
rapariga de muitas posses e nada má, resumiu-a no fim de uma conversa com a
Rita do forno:
—
Até parece impossível, com uma lesma daquelas!
Nisto
é que todas se matavam: “o que encontraria o Azevedo naquela lesminha, naquela
santinha de pau carunchoso?”
Mas
algumas senhoras protestaram com mais aspereza. Uma manhã, à missa das dez,
quando as Pascoais vieram ajoelhar ao pé da capela do Santíssimo, a D. Plácida,
a amiga íntima da D. Amália, puxou ostensivamente a filha para o lado,
arredando-a daquele contato impuro. A Margarida não percebeu; mas a corcunda
viu o gesto, e, muito pálida, abaixou os olhos sobre o livrinho de missa.
Efetivamente
a Margarida não percebia. Vivia, como o Júlio, nas regiões aéreas.
Concentrava-se no gozo íntimo de uma coisa que ela sabia sem ninguém lhe ter
dito, por um saber lá de dentro, todo instintivo. Repetia mil vezes consigo:
“Ele gosta de mim”; e a felicidade que lhe davam estas palavras transbordava,
enchendo-lhe os olhos de lágrimas. No entanto, ambos iam dando que falar às más
e às boas línguas da vila.
O
Júlio agora vinha todas as manhãs, e voltava todas as tardes — naquelas tardes
intermináveis de Junho. Entrava ao cair do dia, quando o Sol se ia escondendo
atrás das últimas serras numa cor sanguinolenta de incêndio. Nesta hora, morta
para o trabalho, as duas raparigas, ao largar da agulha, andavam no quintal,
ocupadas nos arranjos da casa. E o Júlio sentava-se também cá fora, ao pé da
janela do velho. Uma ou duas vezes estranhou a Henriqueta. Pareceu-lhe
constrangida, hesitante, como desejosa de lhe falar. Achou-a mesmo mais pálida,
com o perfil mais afilado. Coitada... talvez estivesse mais doente? Mas sempre
ativa, girando de um lado para o outro no seu passinho desigual, entretida com
os pássaros do pai, mudando a água dos bebedouros; e, quando se aproximava
dele, sempre com o mesmo sorriso triste e bom.
Algumas
tardes vinha por ali o Pedro carpinteiro: “dar notícias ao sior Pascoal da
passarada”. Era um grande amigo do Azevedo, andava sempre a desafiá-lo para
irem às perdizes, ao reclamo; tinha dois perdigões como não havia outros na
vila, nem dali muito longe:
— Ó
sior doutor, onte à tarde ali ós
carrascais da Mãe-d'Água era uma praga. Abalei daqui já depois das três horas,
e inda matei quatro.
—
Homem, é tempo de defeso — objetava-lhe o Júlio.
—
Ora, isso o que monta?... Ninguém repara.
A
conversa esgotava-se, e ficavam muito tempo em silêncio. O Pedro ,
sentado no fundo de um cesto, inclinava-se para diante na sua fisionomia parada
e paciente de homem do povo, enrolando lentamente o cigarro nos dedos duros.
Ficava
ali como ficaria noutra parte, numa tranquilidade de animal, habituado a todas
as maçadas. E o Júlio caía num sonhar vago, tocado daquele adormecimento
contagioso.
Mas
a Margarida voltava do terraço do fundo, de regar os goivos, corada, levemente
despenteada do trabalho, sacudindo os pingos de água da saia; e, sentando-se no
ângulo do alegrete, voltava para ele os olhos negros, calada também, embebida
na quietação da hora.
Sob
as árvores, as sombras cresciam, mais negras e mais úmidas. Na obscuridade
nascente, as formas veladas perdiam as proporções; a ruazita das alfazemas
alongava-se; todo o quintal parecia maior, sem limites definidos. E defronte,
do outro lado da rua, o Júlio via a sua casa, a janela do seu quarto aberta, a
fachada cinzenta, um pouco vermelha ainda nos últimos clarões do céu. Vista
assim de baixo, a velha casa dos Azevedos, com as grades negras de ferro
batido, e, nas ombreiras de pedra, as
manchas amareladas e redondas dos líquenes mortos, tinha um ar severo, dominando o quintalzinho plebeu do alto da sua
aristocracia.
O
Júlio às vezes julgava ler uma censura naqueles muros denegridos; mas desviava
os olhos, procurando o perfil da sua Margarida, indeciso já na luz quase
extinta. Sentia-se preso no amor da rapariga; sentia-se enredado também na
doçura neutra daquela existência, para que o atraía o seu sangue apático de
provinciano, para que o preparavam as fortes impressões da sua primeira
mocidade.
Numa
preguiça invencível ia-se demorando até ser já escuro. A Henriqueta acendia a
luz no quarto do Pascoal; e cá fora, a aragem fresca da noite levantava-se,
passando nas folhas finas das amendoeiras, que tremiam num sussurro de gozo,
consoladas depois do longo dia abrasador.
CAPÍTULO 10
Mas,
de repente, esta tranquilidade alterou-se. A campanha eleitoral tomava uma
feição nova. Os ministeriais, que pareciam batidos, acordaram numa febre de
trabalho. Do governo civil vieram ordens terminantes, ameaças de transferência
e demissões, promessas de empregos, autorização até, segundo diziam, para
gastar muito dinheiro. E o candidato do governo — um tenente-coronel de
engenheiros — chegou também, indo alojar-se no Lendroal, em casa dos Carvalhos,
a quatro quilômetros da vila. Foi então um semcessar de mensageiros. De manhã,
de tarde, altas horas da noite, os moços do Lendroal nas éguas do monte, nas
mulas da lavoura, vinham trazer recados ao administrador, ou atravessavam a
vila, levando cartas para a capital do distrito. Este ruído de bestas pelas
ruas irritava o comendador, e punha o Castro num contínuo sobressalto.
Tinham,
porém, dias de triunfo e de vingança, quando os criados do visconde chegavam da
sua quinta de São Marcos, onde ele agora estava. Vinha às vezes o feitor, um
homem sério, já grisalho, na égua ruça do amo. Mas quem sobre todos fazia
efeito era o perreiro, o Joaquim Poças, um mulato alto do Sado, de jaqueta de
peles, espingarda de dois canos atravessada, montado no seu cavalo preto, que
marchava em passo espanhol, com um grande barulho nas calçadas, deixando a
perder de vista as mulas do Lendroal. O comendador chegava então à janela da Praça,
gritando aos seus criados: “que recolhessem o cavalo, que lhe deitassem ração”;
e ao Joaquim Poças:
—
Suba, Joaquim, suba!... Você vai tomar alguma coisa, enquanto eu respondo à
carta do Sr. Visconde.
Tudo
isto azedava os ânimos. Da botica do Moniz, os amigos do Júlio olhavam,
desconfiados e irônicos, para as entradas e saídas na loja do Faria, ao outro
canto da Praça.
Mesmo
as relações pessoais estavam quase cortadas. Apenas o João Gualberto,
partidário fiel mas de gênio fácil, parava algumas vezes à porta do Faria e
trocava uma chalaça com o administrador, apertando a mão ao Joaquim Carvalho,
um companheiro de caçadas. E o Castro não via aquilo com bons olhos,
resmungava:
— É
uma asneira do João Gualberto estar-lhes a dar confiança.
O
Júlio, sem querer, andava mais envolvido na eleição. Duas, três vezes por dia,
ia ver a Margarida; mas ficava menos tempo com ela, achava-se mais preso, mais
rodeado. O Chico barbeiro e o Norberto vinham procurá-lo a casa; traziam
notícias das manobras; alegavam serviços, contando as boas partidas que tinham
feito ao Faria. E os eleitores, dependentes da casa dos Azevedos, apareciam
também, obsequiosos, no seu ar cauteloso e fino de homens do campo — ofereciam
o seu préstimo, fazendo jus a favores futuros.
Emaranhado
numa série de intriguinhas, o rapaz aborrecia-se, voltava às ideias do
princípio. Queria fazer uma reunião popular, dizer àquela gente o que era uma
eleição, explicar-lhes os seus direitos, mostrar-lhes que iam votar contra um
governo imoral e estúpido. O candidato ministerial tinha chegado... Pois bem!
Que viesse à reunião defender-se. E, lembrando-se dos seus triunfos nas
assembleias acadêmicas, o Azevedo sentia um desejo vivo de controvérsias.
Então, o comendador dissuadiu-o, demonstrou... “ao seu jovem amigo, que tudo
aquilo podia ser muito bom em países adiantados, onde o povo tinha
ilustração... ali não... ganhavam mais no trabalhinho de sapa... além disso a
eleição estava segura”.
O
Castro foi mais positivo, num grande desdém pela palavra:
—
Parolas, Sr. Azevedo! Isso com eles não pega! Olhe, prometa-lhes o senhor
dividir em sortes a sua herdade de Vale de Pegas; arranja mais vinte votos em
São Miguel, e ainda, em cima ganha dinheiro.
E,
conhecendo os negócios do candidato a fundo, muito melhor do que ele próprio, o
Castro fazia-lhe as contas:
—
Vale de Pegas anda arrendada em trezentos mil réis: se a der ao quarto tira
dali dez moios de trigo e cinco ou seis de cevada, uns anos por outros... e
fica-lhe a pastagem livre...
O
Júlio, nervoso, sem ânimo para lutar, cedia, prometia dividir a herdade, caía
indiretamente nas compras de votos, que tanto lhe repugnavam. E agora, mais de
perto, via também as pressões, com que se não podia conformar. Não sabia
apertar as cordas nas gargantas. Chegou a trabalhar contra si.
Um
domingo, ao sair para a missa, encontrou na escada uma mulher ainda bonita, com
um belo olhar direito, e os cabelos pretos apenas riscados de fios de prata.
—
Eu vinha falar a sua eicelência por
via dos votos — disse-lhe ela, no ar desembaraçado das alentejanas do povo.
—
Ah! por causa dos votos! — respondeu o Júlio, a quem esta palavra “votos” fazia
mal aos nervos.
—
Sua eicelência já me não conhece....
já se não lembra da gente... inda nem ali foi abaixo à sua horta. Eu sou a
Prazeres, a sua hortaloa da horta dos Frades.
— A
Prazeres! — exclamou o Júlio. — Lembro-me perfeitamente!
E
lembrava-se; na sua memória tenaz passou num momento a visão da horta: a linha
das faias brancas e o canavial ao fundo; a mancha vermelha do romeiral em flor;
o porquinho louro, grunhindo debaixo da figueira, preso à estaca por um pé. A
Prazeres, casada então de fresco e uma linda moça, fora a sua primeira paixão —
aos treze anos. Quando artificiosamente podia convencer o Pascoal, lá iam os
dois parar à horta; e não dormia de noite, meditando planos complicados e
perversos para dar um beijo na horteloa, atrás do canavial. Os planos falharam
sempre, e deles nunca teve conhecimento, nem a Prazeres, nem ninguém.
—
Ora a Prazeres! — repetiu o Júlio, muito alegre de a ver. — E você ainda está
na horta?
—
Pois stou, mailo meu Bento e os rapazitos. E hoje vinha cá falar ó senhor por
via do voto do meu homem.
— O
seu homem vota em mim naturalmente.
—
Pois ‘stá bem. O Sr. Lopes mandou dizer à gente, que lhe havêramos de dar o
voto, quando não que nos tiravam a horta, p’rá dar ao Zé da Rita, que a quer.
Mais a gente conhece a razão; somos rendeiros cá da casa vai pra dezesseis
anos, e o meu homem disse logo, que o seu voto havera de ser cá p1rá casa. De
todo ó modo sempre ficamos desgraçados.
— Sempre ficam desgraçados!?
— ‘Stá
bém que ficamos. Bem vê sua eicelência que a horta é piquinina, e a gente ali
só não se podia governar, jamais com quatro filhos. Como o meu homem tinha a
parelha, pidiu umas terras ao Sr. Cravalho, na herdade dele que fica aí pegada
com os Coutos. Assim é que nos temos governado, com o que sameamos nas terras
do Sr. Cravalho, e alguma coisa que dá a horta. De maneiras, que as semanas
passadas o Sr. Lopes mandou-nos aquele recado; e ante o Sr. Cravalho foi estar
com o meu homem, e disse-lhe, que lhe havera de dar o voto p’rás outros, ou que
o deitava fora das terras. Já vê sua eicelência que sempre ficamos sem as
terras, ou sem a horta... sim... de todo o modo sempre ficamos sem o nosso
governo.
A
Prazeres contou a sua história serenamente, sem lamúrias, num desprendimento
fidalgo dos interesses materiais; mas o Júlio escutou-a em espinhos. Que diacho
de história tão desagradável... uma complicação de horta, e de terras, e de
hortelões desgraçados por causa dele! Depois, o belo olhar claro da Prazeres
lembrava-lhe a sua antiga paixão.
Via
a rapariga de outros tempos, forte, de lenço vermelho atado na cabeça, dando a
travia ao bácoro com os braços nus — uns braços que o faziam tremer todo.
Daquele primeiro acordar da imaginação e da carne ficava-lhe uma ternura vaga,
uma amizade pela mulher. Mentalmente mandava a eleição, e o Carvalho, e o Lopes
para... sítios muito distantes; e, de repente, numa inspiração:
—
Olhe, Prazeres, diga ao seu homem que dê o voto aos Carvalhos, percebe. E
quanto a tirarem-lhe a horta... isso é comigo, pode ficar sossegada.
Safava-se
já, sem a querer ouvir mais; mas de baixo chamou-a:
—
Ouça lá... vocês não falem nisto, é escusado que o Sr. Lopes, ou o Sr. Castro o
saibam.
Subiu
a rua, em direção à freguesia, muito satisfeito com aquela solução; contente de
ter deixado a Prazeres tranquila; numa alegria de estudante ao lembrar-se do
voto, roubado ao Lopes, e ao Castro. Apressou o passo, porque era tarde.
Em
Lisboa tinha deixado havia muito tempo de ir à missa, esquecido nas sonolências
preguiçosas das manhãs de domingo, almoçando depois do meio-dia para ir de
tarde aos touros; mas ali, na sua terra, cumpria regularmente o preceito católico.
Não para fazer efeito; nem ele se lembrava de tal; nem, no nosso céptico
Alentejo, uma missa de mais ou de menos era coisa que pesasse na balança de um
candidato. Ia naturalmente... porque tinha ido em pequeno com a avó, à mesma
igreja, à mesma hora. Reatava o fio daquele hábito, como reatara o fio de
tantos outros. Logo no primeiro domingo, ao ouvir o repique bem conhecido,
anunciando a missa das onze, pegou no chapéu e saiu, sem mesmo pensar no que
fazia.
Mas
nesta manhã chegou tarde, demorado pela conversa com a Prazeres; e, fendendo o
grupo dos homens de trabalho, apinhados junto do guarda-vento, foi encostar-se
à pilastra do primeiro andar, à esquerda.
A
missa estava começada, e ele ficou ali, de pé, numa distração pouco devota,
deixando a vista errar ao acaso pela igreja, grande, de uma nudez fria — aquele
frio especial do estilo jesuítico. Via, no corpo da igreja mal cheio, os grupos
disseminados das mulheres do povo, ajoelhadas com os xales pretos postos alto,
quase pela cabeça, em linhas rígidas de freiras; mais adiante, junto da teia de
pau-santo, os chapelinhos floridos de cinco ou seis senhoras, dando uma nota
moderna, discordante ali, de meia civilização; lá ao fim, no altar-mor, o prior
lendo a epístola, numa casaula verde debotada, a pequenina coroa muito nítida
nos cabelos duros; e por cima, sobre as luzes trêmulas da banqueta, a talha dourada
do trono, denegrida em tons roçados de cobre velho. Em volta, reparava agora
nas capelas dos lados, onde, na penumbra funda, se entreviam formas indecisas —
o branco sujo de um manto de imagem, a lividez doentia de um Cristo preso à
coluna. E, nos azulejos azuis e brancos que revestiam as paredes, examinava
curiosamente as figuras dos santos, esguias, em roupagens duras, tendo gestos
falsos e sem vida de autômatos. Com as janelas do coro fechadas, tudo isto se
velava de sombra, todas as cores se apagavam em entoações discretas e mortas.
Apenas, lá adiante, um raio claro de sol caía de uma fresta, marcado na poeira
visível — como uma cutilada de luz na obscuridade azul.
Sentia
uma tristeza pairando. Pensava naquela religião, viva e aguda quando se
levantou a igreja, e se pintaram os azulejos, e se esculpiu a talha; adormecida
hoje, caindo numa tradição, seguida como um simples hábito por todos os que ali
estavam, desde o prior até ele próprio. E pouco a pouco deixava-se penetrar por
esta tristeza — a tristeza das coisas que se vão sem serem substituídas...
Subitamente,
porém, uma leve emoção varreu como um sopro as suas meditações nebulosas. No vaguear
distraído dos olhos reconheceu as duas irmãs, ajoelhadas do outro lado da
igreja, muito atrás das senhoras elegantes; e o coração bateu-lhe ao ver a
Margarida, direita e graciosa no xalinho castanho, o modesto lenço de seda
carmesim sobre os cabelos escuros. Foi uma surpresa. Não as esperava ali; elas
iam habitualmente à Misericórdia, às dez horas, ouvir a missa do padre José.
Mas não teve tempo de fazer reflexões; o prior despachava as últimas rezas,
cortando atalhos pelo latim, e todos saíam já, num arrastar lento de pés.
Cá
fora, na luz deslumbrante do adro, o Júlio encontrou um grupo de rapazes
conhecidos: o sobrinho do Galrão; o Moniz, esperando a D. Carolina e a
namorada; o próprio Mena, que apesar de não ouvir missa por causa dos seus
princípios, vinha por ali ver as moças. Demorou-se um pouco com eles; e, quando
as Pascoais saíram, foi-lhes falar muito naturalmente, apertando-lhes a mão,
retendo um instantinho a da Margarida na rua. Despediu-se delas muito alegre,
dizendo alto:
—
Até logo.
Mas,
ao voltar para o grupo, feriu-o um riso parvo, insolente, estampado na cara dos
três rapazes. Teve uma destas impressões frias, súbitas, irrefletidas de
cólera; e, a voz baixa, o olhar direto sob as sobrancelhas apertadas:
— O
que estão os senhores a rir?
O
ar do Azevedo era tão agressivo, que o sobrinho do Galrão bateu prudentemente
em retirada; e o Mena, disfarçando, se afastou dois passos. Unicamente o Moniz
resistiu ao choque, fiado na intimidade maior, naquele tu que lhes ficara do
latim. Meteu no caso a bulha, querendo brincar:
—
Anda lá, maganão, que não perdes o teu tempo... parabéns, a rapariga é boa
deveras!
—
Que tolice, ou que infâmia é essa? — perguntou-lhe o Júlio entre os dentes.
—
Homem, não te zangues... ninguém te pede que te confesses! — respondeu-lhe
ainda o Moniz, já muito comprometido.
O
primeiro impulso do Júlio foi retalhar-lhe a cara com a bengala; mas, num resto
de sangue-frio, percebeu que não remediava nada com isso; e voltou-lhe as
costas, violentamente agitado. Via tudo, absolutamente tudo. Como um relâmpago
no campo nos mostra na décima parte de um segundo os mais pequenos acidentes do
terreno, aquele riso de três parvos mostrava-lhe agora tudo quanto se dizia e
se pensava em volta dela.
No
caminho para casa, e já depois, fechado no quarto, revolvia todos os indícios
que tão estupidamente lhe escapavam até àquele momento — todas as meias
palavras, todos os sorrisos significativos. Dava agora o verdadeiro sentido à
luz fria e dura que vira brilhar nos olhos da D. Amália, nas duas ou três vezes
em que inocentemente tinha falado da rapariga diante dela. Lembrava-se também
da expressão constrangida e aflita da pobre mana Henriqueta. Todos então
sabiam, todos falavam daquilo! E numa revolta — que ele julgava ser a revolta
da sua justiça, mas era no fundo a revolta do seu amor — sentiu um desejo louco
de ir pelas ruas, gritar àquela vila imbecil: “que se enganava, que ele nunca
tinha roçado os beiços pelo cabelo da Margarida”.
Mas,
no instante seguinte, viu a inutilidade dos seus protestos: caiu numa
desanimação. Achava-se desarmado diante da calúnia intangível. Ainda quando ele
corresse a pontapés o Moniz e o Mena, e todos os Menas, a calúnia ficaria de
pé, avivada mesmo pelo escândalo. E tanto menos a podia destruir, quanto era
plausível... tinha uma razão de ser. Acusava-se agora de imprudência, de
estupidez. No seu egoísmo bruto, só porque lhe era agradável passar longas
horas junto dela, tinha-se esquecido do que podiam dizer, tinha-a dado em pasto
às más-línguas de uma terra pequena. A consequência ali estava. Quando partisse
para. Lisboa, eleito deputado, triunfante e tranquilo, deixaria atrás de si um
rasto de lama — uma pobre rapariga perdida de reputação, e tendo para a
defender uma irmã corcunda e um pai paralítico. E era irremediável isto!
Lentamente
— o mundo exercendo mais uma vez o seu mister habitual de Galeoto —, uma ideia
germinou no espírito do rapaz, indecisa e confusa a princípio, sem que ele
próprio a quisesse formular claramente. Sim... era irremediável... se todos o
acreditavam... se todos o diziam... por que não viria a ser?... por que não
seria a sua Margarida realmente sua? Ele então, delicada, muito delicadamente,
poderia melhorar a sua situação, instalá-la numa casa boa, rodeá-la de bem-estar,
de luxo mesmo — aquele luxo de província, que no fim de contas se pode ter com
tão pouco. Não renunciava à sua vida livre de rapaz solteiro, às suas novas e
ainda pouco arraigadas ambições políticas, aos seus hábitos sobretudo. Não...
nem era necessário... continuava a viver em Lisboa, independente, tal qual como
antes. Somente, viria ali passar meses, muitos meses, com ela. Isto
convinhalhe mesmo; administrava a sua casa; podia talvez montar uma lavoura,
quando terminassem os arrendamentos das suas herdades. Esta ocupação
sorria-lhe. Afinal estava cansado da sua antiga existência, inútil e ociosa. E
quanto a ela, havia de a cercar de tanto carinho, de tantas a tenções, de tanto
respeito, que a imporia ao respeito de todos!
E
um momento deteve-se com satisfação neste plano. Via diante de si uma vida
tranquila, quase regular; a Margarida junto dele para sempre, feliz e...
Mas,
no fundo do seu espírito ou do seu coração, alguma coisa se insurgia contra
todos os seus planos, deixando-o mal consigo.
CAPÍTULO 11
E,
ao outro dia de manhã, o Azevedo permanecia nas mesmas dúvidas, na mesma
irritação surda.
Na
véspera à tarde, muitas horas depois da cena do adro, tinha descido como
costumava a casa das vizinhas. Encontrou a Margarida como sempre, naquele seu
enlevo submisso, concentrada na sua paixão, feliz de o ver, esquecida de si e
dos outros. A Henriqueta fez-lhe o efeito de estar mais triste, mais inquieta;
ou porque realmente fosse assim, ou porque ele agora a observasse melhor. E
tinha ali ficado até ser noite, no seu quintalinho querido, que lhe pareceu
muito diferente. Ainda lá estavam a ruazita das alfazemas alongando-se na
sombra, e as amendoeiras recortando a folhagem fina e negra no clarão vermelho
do sol-posto; mas a paz exterior das coisas tinha fugido, dispersada e desfeita
pela agitação interna do espírito. Saiu dali sem fixar uma ideia; voltava agora
para lá no mesmo estado, impelido unicamente pelo desejo imperioso de ver a
rapariga.
Quando
correu o ferrolho da porta, e entrou na casa de fora, viu a Henriqueta sozinha,
sentada à banca de pinho da aula, apesar de não ser ainda a hora da lição.
Estava-o evidentemente esperando. Veio logo ao seu encontro, ao mesmo tempo
hesitante e decidida, como quem obedece a uma resolução penosa, longamente
meditada. E, sem rodeios, sem mesmo lhe dar os bons-dias, naquela coragem
precipitada dos tímidos, perguntou-lhe numa voz baixa, um pouco trêmula:
— É
nosso amigo... não é verdade?
—
Se sou seu amigo, mana Henriqueta... Que pergunta!
— É
que eu queria-lhe pedir uma coisa. Há muitos dias que lhe quero pedir isto, sem
ter ânimo... e tenho feito mal... mas custava-me tanto! Queria-lhe pedir que
viesse cá menos...
A
um gesto involuntário do Júlio, a Henriqueta pôs-lhe no braço a sua mão de
doente, branca e fraca, num toque doce, apenas perceptível; e levantando para
ele os olhos, já cheios de lágrimas:
—
Eu bem sei que não faz mal nenhum... mas é para sossego da... de nós todos. E
não lhe peço que deixe de cá vir...
Bem
vê, daqui a pouco vai-se embora para Lisboa, e nestes dias que faltam vem menos
vezes... sim?
Como
o Júlio hesitasse, calado, ela acrescentou ainda, cada vez mais pálida:
—
Lembre-se que foi criado conosco, como se fôssemos suas Irmãs.
—
Tem razão, mana Henriqueta! — disse o Júlio; e saiu.
Tinha
razão... ele não devia, não podia ir ali. Mas ao encontrar-se na rua
experimentou uma sensação de isolamento doloroso, como se o tivessem
transportado subitamente para uma terra distante, desconhecida e hostil. Só,
sem ter para onde ir, viu bem o lugar que no seu coração, nos seus hábitos, na
sua vida inteira, tinha tomado aquela casita pobre, onde agora não podia
voltar. Sem ânimo de entrar na sua casa, receoso da solidão do seu quarto,
subiu a rua, dirigindo-se para o centro da vila. Sentia a necessidade de um
conselho, de um desabafo. Se ao menos tivesse ali um amigo — um destes amigos,
que nós ouvem pacientemente, com um bom sorriso de simpatia nos lábios,
enquanto nós, num passeio nervoso pelo quarto, vamos contando tudo, dizendo
tudo, como se pensássemos alto! Mas que podia ele dizer àquela gente dali, que
lhe profanara o amor nas suas suposições materiais e brutas? E, pensando bem,
lembrou-se que em Lisboa estaria no mesmo isolamento. Não tinha um único amigo
a quem falasse naquilo. Os amigos de
São Carlos, de rosa na casaca, o cérebro vazio sob o cabelo correto, a quem ele
contava a rir as aventuras com a Adelaide, a quem mesmo nuns momentos de
condenável vaidade — tinha deixado entrever algumas das peripécias da sua
ligação com a D. Sofia, a esses não podia falar na Margarida. Este sentimento
novo escondia-se nos retraimentos de um pudor, absolutamente novo também.
Sentindo-se
infeliz, o candidato vitorioso ia subindo a rua sem destino, sob o Sol a prumo,
brutalmente reverbado na calçada e no branco violento das paredes. Respondia um
pouco desconfiado às saudações das pessoas que encontrava; julgava ver nas
caras de todos, aquele riso parvo do Moniz e do Mena; parecia-lhe que atrás
dele deviam dizer: “Ali vai o Azevedo com quem está a Margarida do Pascoal.”
No
seu desejo de ver alguém, de fazer alguma coisa, fosse o que fosse, tendo
horror a entrar na botica, ocorreu-lhe ir procurar o Castro — esse ao menos só
lhe falaria na eleição.
E,
quando o encontrou, sugeriu-lhe um plano, uma expedição, a primeira coisa que
lhe veio à cabeça: “Talvez fosse bom irem à Corte, falarem com o prior, o padre
Soares, saberem o que por lá se passava?” O Castro caiu das nuvens ao notar-lhe
este excesso de zelo; mas não era homem que deitasse água na fervura de
ninguém, muito menos em uma fervura eleitoral. Combinaram logo jantar cedo para
ir de tarde. Iam no carrinho — a estrada municipal de macadame já chegava mesmo
à aldeia.
E
às cinco horas, sob um sol de chumbo, lá se foram pela planície enorme, sem uma
árvore, ao trote choutado do cavalinho lazão. O Júlio sentiu uma espécie de
prazer naquela viagem desagradável, através de uma desolação amarela e seca; a
erva seca nas valetas da estrada; as searas de trigo, sem fim, ainda de pé,
oscilando lentamente num ruído seco de palha já morta; os restolhos das cevadas
quase brancos, feios e hirtos como uma barba de oito dias; e, ao longe na
estrada, a poeirada seca, levantando-se num destes pés-de-vento, súbitos e sem
razão de ser, das tardes quentes.
Voltaram
já de noite. O rapaz ao menos tinha gasto a tarde, e trazia os nervos aplacados
pelo cansaço físico, a cabeça azamboada do sol, os rins moídos das molas
infernais do carrinho. Apesar de ser tarde, quase dez horas, vestiu-se e saiu
para ir a casa do Lopes. Conservava ainda o receio do seu quarto, do
isolamento, de se achar face a face consigo mesmo.
Encontrou
o comendador na casa de jantar, só com as duas irmãs e o padre José, sabendo já
da expedição à Corte e desejoso de notícias. As notícias eram excelentes; os
eleitores, teimosos a princípio no tal aforamento do baldio, cediam todos,
levados principalmente pelo prior e pelo Cairão, que tinha ali perto o seu
assento de lavoura. Deviam obter na Corte uma votação quase a flux...
Mas,
enquanto relatava o emprego da sua tarde, a D. Amália apareceu na porta da
sala, que estava às escuras, dizendo-lhe num tom de repreensão amável:
—
Ditosos olhos que o veem, Sr. Azevedo!
Efetivamente
ele não fora muito assíduo nos últimos dias; e, voltando-se agora numa
surpresa:
—
Ah! Vossa excelência estava aí!
—
Estive ali um bocado na janela da Praça. É o único sítio onde corre ar.
O
Júlio tinha-se dirigido naturalmente para ela, e penetraram juntos na escuridão
da sala, cortada pela fisga de luz que vinha da casa de jantar. A situação do
candidato junto da D. Amália era singular e levemente embaraçosa. Logo desde os
primeiros dias ele lhe notara os requebros, mais do que isso, um destes desejos
claramente manifestados de mulher já madura. Esta descoberta deu-lhe uma
vibraçãozinha agradável na vaidade e nos sentidos; e uma ou duas vezes
experimentou uma tentação mais forte, como umas veleidades de se deixar
conquistar. Reteve-o a princípio a consideração que tinha pelo comendador, tão
serviçal, empenhando o seu tempo e o seu dinheiro e mo fazer deputado. Reteve-o
sobretudo o lado vulgar da aventura, o sorriso involuntário que lhe despertavam
as pretensões senhoris da D. Amália. E ultimamente, com a vontade e o coração
presos noutra parte, deixara de pensar nela. Mas isto colocava-o em uma atitude
de resistência, em uma situação de defesa, sempre difícil e um pouco ridícula
mesmo da parte de um homem.
—
Então foi hoje à Corte? — perguntou-lhe ela agora, encostando-se à grade da
sacada sobre a Praça.
— Sim,
minha senhora. Com um sol medonho... por uma estrada medonha! — respondeu o
Júlio, exagerando comicamente o adjetivo.
—
Coitado! — disse ela numa lamentação irônica. — Não se aflija, o fim do seu desterro está por dias...
—
Não há desterros junto de vossa excelência — atalhou o rapaz na sua amabilidade
antiga. — E depois, não estou nada fixado sobre o fim disto, que chama o meu
desterro. Ainda não sei quando irei para Lisboa. Em todo o caso, se vencermos a
eleição, volto logo depois das câmaras fechadas; e conto passar aqui muitos
meses. Tenho mesmo umas ideias de não renovar o arrendamento da Pedra Negra, e
de me fazer lavrador. Já vê que estou um provinciano completo.
Sem
querer, o Júlio respondia mais às suas preocupações íntimas que às perguntas da
D. Amália. Na obsessão da ideia fixa, falava alto daquele seu plano incerto,
tão indeciso ainda, de ficar ali, de não abandonar a sua Margarida. Talvez a
mulher do comendador pressentisse isso, talvez a imagem importuna da rapariga
passasse de relance no seu espírito; mas não se denunciou. E vendo, ou querendo
ver nas palavras de Júlio coisas muito diversas, perguntou-lhe numa voz toda
cheia de intenções:
—
Isso... é sério?
—
Perfeitamente sério — respondeu ele simplesmente.
Ficaram
algum tempo calados, encostados à grade ombro a ombro, as mãos quase unidas
sobre o apoio de ferro, olhando, sem a ver, para a Praça escura e deserta. Do
outro lado, nas casarias altas, vagamente destacadas em negro no céu estrelado,
não havia uma luz, um sinal de vida. Apenas à esquerda, o petróleo brilhante da
botica do Moniz projetava sobre a calçada uma faixa clara. E defronte, para
além da loja do Faria já fechada, mesmo à esquina do Terreirinho, via-se um
clarão baço na porta envidraçada do bilhar do Caxinha. De vez em quando soava o
choque de uma carambola; um momento, as vozes dos parceiros levantaram-se mais
altas, numa disputa. Depois o silêncio caiu de novo em volta deles. E, neste
silêncio, a obscuridade da Praça e da sala rodeava-os, isolando-os numa cumplicidade.
D. Amália disse baixo, como na explosão involuntária da poesia interior:
—
Que céu tão bonito!
E,
direita agora, olhando para cima, as mãos apoiadas sobre o ferro, os peitos
salientes:
—
Como as estrelas brilham esta noite! Sobretudo aquela, ali, não vê, Sr.
Azevedo?
— É
Vega, minha senhora — disse o Júlio que, apesar de formado em Direito, tinha
seus laivos de astronomia popular.
—
Se eu amasse alguém que estivesse longe — continuou ela — havíamos de escolher
esta estrela, para todas as noites a contemplarmos à mesma hora. Nunca olhou
assim para uma estrela?
—
Francamente nunca! — respondeu o rapaz com um leve sorriso, que se perdeu na
obscuridade.
Mas
a D. Amália cortou a conversa numa frase inesperada, que deixava pairar a
suspeita da culpa sobre as suas inocentes relações:
—
Vamos para dentro, Sr. Azevedo... podem reparar.
Dava
meia-noite quando o Júlio se encontrou na rua, entregue de novo às agitações do
seu espírito, esquecido da D. Amália. Veio lentamente, sem vontade de entrar em
casa; e quando chegou à porta ficou-se a olhar para a casita pobre da sua
Margarida, donde o expulsavam a mana Henriqueta e... o dever. Mas, na claridade
frouxa das estrelas, pareceu-lhe ver uma das janelas meia aberta. Teve a
intuição de quem ali estava, e, atravessando rapidamente a rua, perguntou
baixo:
— É
você, Margarida?
Uma
forma indecisa recuou um pouco para a escuridão interior; mas ele,
conhecendo-a, perguntou ainda:
—
Que é... sucedeu alguma coisa?
—
Não... nada... eu não podia dormir. Por que não veio hoje cá em todo o dia? —
disse ela numa queixa muito humilde.
O
Júlio tomou-lhe a mão, murmurando umas desculpas confusas... “gente que o tinha
procurado de manhã... aquela maçada de ter de ir à Corte”.
Lentamente
puxava-a para si; e ela, cedendo mais ao impulso interior que à sua pressão,
encostou-se ao parapeito, um pouco debruçada. Muito perto agora um do outro,
tinham os olhos confundidos, as mãos apertadas e trêmulas; e de repente sem uma
palavra de amor que não era precisa, colaram as bocas num beijo interminável.
Ao contato úmido dos seus beiços entreabertos, sentindo-a abandonar-se,
desfalecida e entregue, o amor do Júlio — ainda agora casto e quase ideal —
completou-se subitamente num desejo ardentíssimo. Queria-a toda... toda!
Queria-a na vibração das mais Íntimas fibras. Queria-a, sim, num desejo ainda
cheio de ternura, purificado pela identificação com a paixão interior, num
desejo, que era como a aspiração infinitamente doce e infinitamente intensa
para a união absoluta de dois seres, almas e sentidos; mas que... nem por isso
o dominava menos rude, menos imperiosamente...
O
parapeito da janela era baixo, o Júlio apoiou as mãos em cima para o galgar de
um pulo, e... nesse instante teve uma singular reminiscência teatral. Viu-se
como o Fausto, à janela da casa casta e
pura, apertando nos braços a Margarida. Esta lembrança estranha, cortando a
violência da sensação, salvou-o de uma ação má. Ouviu atrás de si o riso de
Mefistófeles, e não lhe quis dar razão. Pegou com as duas mãos na cabeça da
rapariga, puxou-a mais para si; e dandolhe um beijo muito longo na testa, à
raiz do cabelo — naquele sítio tanto tempo desejado — fugiu para casa.
CAPÍTULO 12
Durante
três dias, o Júlio cumpriu religiosamente a promessa tácita, feita à mana
Henriqueta. Durante três dias não entrou uma só vez na escola; e quando, na
primeira noite, ao recolher a casa, viu aberto aquele postigo, junto do qual
experimentara a mais doce comoção da sua vida, teve a coragem extraordinária de
se não aproximar. Nas noites seguintes, a janela estava fechada, e tudo quieto
e silencioso, como de costume.
Nestes
três dias, o rapaz atravessou todas as fases, que vão da irritabilidade
violenta à prostração desconsolada. No compartimento mortal das horas tentou
trabalhar. Pegou de novo no seu romance, bastante adiantado nas primeiras
semanas de estada ali. Releu os capítulos já escritos, em que ele contava a
entrada de um provinciano na vida de Lisboa um advogadozito pobre do Norte,
lançado de repente na roda literária das redações, e na baixa cozinha política.
Ao mesmo tempo, um deslumbramento e uma desilusão. Um assunto bom — tendo
apenas o defeito de ser inspirado diretamente por algumas páginas das Illusions Perdues de Balzac — e que ele
tratara com uma certa
força. Mas quando agora quis prosseguir, o
trabalho recusou-se, a frase não vinha, a tinta não corria, pegada aos bicos da
pena. Rasgou nervosamente meia dúzia de folhas mal escritas, e não continuou.
O
romance vivido desviava-o do romance inventado.
Na
tarde do quarto dia, vestido já para a recepção semanal do comendador,
parlamentou com a sua consciência. Não lhe era possível viver assim. Tinha
feito muito mais do que podiam esperar; mesmo a mana Henriqueta não lhe pedira
tanto. Não queria passar nem mais uma hora sem ver a sua Margarida, sem lhe
ouvir a voz, sem ao menos lhe apertar a mão. E, cheio de emoções diversas, o
coração a bater, desceu a escada e foi direito ao quarto do Pascoal. O escrivão
teve uma grande alegria ao vê-lo, achando logo o motivo da sua ausência:
“Estava claro, o menino tinha tido muito que fazer, por força, nas vésperas da
eleição.”
Uma
única coisa preocupava agora o Pascoal, e era estar ali pregado na cama, não
lhe poder dar o voto. Pois todos haviam de dar o voto ao seu menino, menos ele!
Não se conformava com isto. Pensava até em pedir ao Pedro carpinteiro e a outro
que o levassem à igreja numa cadeira, numa escada, fosse como fosse. O Júlio,
sorrindo, consolou-o, explicando-lhe que o seu voto não havia de fazer falta, contando-lhe
com muita pachorra o estado próspero da campanha eleitoral. Enquanto falava com
o velho, examinou atentamente a mana Henriqueta, que, tranquila e triste, cosia
na sua cadeira baixa, e o acolhera à entrada com um olhar agradecido, mas muito
desconsolado. E só dali a pouco, quando a Margarida apareceu, ele penetrou bem
o olhar na Henriqueta — o olhar desconsolado de um médico, que tivesse aplicado
um remédio heroico já fora de tempo. A Margarida estava muito mudada;
lembrou-lhe a singular visão que ele tivera junto da mesa do monte. Parecia
sair de uma doença, pálida, as olheiras cavadas, os olhos maiores, como
dilatados pelo sofrimento.
E
na verdade tinha sofrido muito naqueles três dias; tanto mais, quanto não
percebia nada do que se passava. Havia tempo já que o seu enlevo alegre e
descuidado se desvanecera. Tinha revolvido longamente um problema doloroso na
sua cabecinha ignorante, mas inteligente. Sabia que não tinha nada,
absolutamente nada a esperar do seu amor. Vivia no presente, procurando afastar
do espírito um futuro, que não existia para ela. De um momento para o outro o
seu Júlio iria para Lisboa, esquecendo-a... talvez? deixando-a em todo o caso
ali, só, entregue às suas recordações, à sua paixão, que, longe como perto,
devia durar sempre! Estava preparada para isso. Pertencia à raça das mulheres
que aceitam facilmente a dedicação e a dor, como sendo o seu destino natural na
vida. Resignava-se a vê-lo partir; mas isto que sucedia... não podia perceber!
Ignorando o que diziam deles na vila, ignorando a intervenção da irmã, não
podia penetrar o mistério do seu súbito abandono. Pois ele estava ali,
defronte, e não a queria ver... porquê? Por que não gostava dela... então que
significavam a sua voz e o seu olhar dos tempos felizes?... Que significava
aquele beijo, que ela sentia ainda nos beiços, de dia e de noite?... E o outro
beijo, talvez melhor e mais doce, que lhe dera longamente na testa, ao
despedir-se?... Não percebia... e a sua dor avivava-se na picada irritante
desta dúvida... por quê?... Por quê? Que lhe fiz eu?...
A o
vê-lo de novo, ali, junto da cama do pai, Margarida ficou indecisa, tímida,
mais pálida ainda. Todos — exceto o pobre velho — sentiam como um peso a
angústia das situações difíceis. E era singular, ver como aqueles três entes,
que se adoravam, permaneciam assim, mudos, constrangidos, afastados por uma
desconfiança. De todos, o Júlio era talvez o que estava menos à vontade;
acusava-se do sofrimento tão visível da rapariga; via bem que a doce e
tranquila intimidade tinha fugido para não voltar; parecia-lhe agora aquela
entrevista, antes tão desejada, mil vezes mais penosa que a ausência. E,
passado pouco tempo, não podendo dominar-se, arrancou-se dali com uma desculpa
qualquer, que o velho aceitou logo:
—
Vá, vá, pois está claro, o menino deve ter muito que fazer!
Instintivamente,
a Margarida veio acompanhá-lo alguns passos pelo corredor. Não trocaram uma
palavra; mas, junto da porta, ele passou-lhe o braço à roda da cintura, teve-a
um instante encostada ao peito, sentindo-a chorar devagarinho. Baixou a cabeça
para lhe dar um beijo; e, sem lhe procurar a boca, bebeu-lhe nos olhos o sabor
amargo das lágrimas.
O
escritório do comendador estava completamente cheio.
Faltavam
apenas dez dias para a eleição, e naquela noite havia reunião magna de
influentes, apuramento de resultados, uma espécie de revista das tropas
aliadas. Logo da porta, através do fumo denso dos cigarros, o Azevedo
reconheceu nos grupos o velho Galrão, o Loureiro, o João Gualberto, o Francisco
Dias, o Moniz, que lhe veio imediatamente falar, um pouco embaraçado depois
daquela cena do adro. Estava ali também o Mena, convidado pelo comendador em
seguida a um artigo laudatório no Clarão.
À mesa, o Castro, positivo e metódico, não falava a ninguém, classificando uns
papéis que ia numerando a lápis. E, num ângulo, o padre José e o prior
conversavam com o padre Soares, chegadinho naquele instante da Corte, ainda de
esporas, todo empoeirado do caminho. Tinham vindo mais emissários: o feitor do
visconde, com uma carta do amo, em que se desculpava de não comparecer
pessoalmente por estar de cama; e o irmão do João Máximo, valentão de aldeia,
na sua barba loira inculta. Entre os grupos, o Lopes circulava, radiante, numa
auréola de glória — a eleição estava segura, seguríssima, arquissegura!
E
todos, muito alto, faziam as contas.
Ganhavam
nas duas assembleias da vila. Não seria por muitos votos, porque o Faria e o
administrador tinham feito nos últimos dias um trabalho dos diabos, usando e
abusando de todas as tricas, de todas as prepotências — uma pouca-vergonha. Mas
ganhavam com certeza; o Chico barbeiro e o Norberto cortavam a cabeça se se
perdesse em qualquer das duas assembleias.
Em
São Miguel ficavam em
minoria. Não lhe podiam valer, era o centro da influência dos
Carvalhos.
A
votação da Corte compensava, porém, esta diferença e muito mais. Ali, o padre
Soares e o Galrão tinham tudo a postos; e da aldeia de São Marcos — que vinha
votar à Corte — o visconde trazia a sua gente arregimentada, sem lhe faltar um
só homem. Restava São Gens, muito importante, onde o Lopes dispunha de grande
influência pessoal, e, aliado agora com o João Máximo, devia obter uma votação
quase unânime.
Tudo
isto somado, apurado, feitos todos os cortes, todo os descontos, deixando
margem para todas as eventualidades, dava quatrocentos votos de maioria,
perfeitamente seguros. Não havia que sair desta conta. Apenas o C astro, depois
de classificados e numerados os papéis, levantou um grito de prudência:
—
Em todo o caso, meus senhores, é necessário que ninguém se descuide. Olhem que
eles ainda trabalham como uns danados... e lá têm as suas esperanças. Eu não
sei o que há... mas há coisa!
Os
outros riam: “O Castro era o demônio, a eleição estava ganha, ganhíssima!” E,
na certeza do resultado, felicitavam o Azevedo, cheios de deferência,
considerando-o já o representante do círculo. O Lopes especialmente
contemplava-o com orgulho, com um amor de literato pela sua obra — era o seu deputado, feito contra o Faria e os
Carvalhos, contra o administrador, o governador civil e o ministro do Reino:
“Apre! haviam de ver se se brincava com ele!” Mas todos o queriam um pouco para
si — todos o tinham feito. Em roda do candidato havia como um murmúrio contínuo
de adulações, enquanto o comendador, pomposo e grave na sua jubilação íntima,
lhe prognosticava “... situações eminentes, a que ele tinha incontestavelmente
direito pelos seus dotes, pela sua respeitabilidade de grande proprietário”.
Pouco
a pouco, o Júlio animou-se, no ruído das conversas, na excitação daquela
atmosfera de batalha e vitória. A eleição, de que se desinteressara quase nos
últimos dias, embebido em outro e mais fundo sentimento, ocupava-o agora todo —
a sua ambição voltava. Parecia-lhe de novo invejável aquele lugar de deputado,
que o podia levar a tudo. No triunfo do momento, na visão de triunfos futuros e
maiores, esqueceu completamente as lágrimas da Margarida. Sentia uma impressão
de vaidade satisfeita ao ver-se rodeado, cheio de importância, a primeira
pessoa, em volta de quem tudo gravitava, de quem todos dependiam. Porque
alguns, sem perderem tempo, tomaram-no logo ali de parte, falando-lhe nas suas
pretensões: “...querendo ele era uma coisa feita... os deputados da oposição
gozavam de mais influência que os da maioria... todos sabiam isso”. O próprio
Mena, que ainda na véspera, irritado pelos seus ares arrogantes no adro, lhe
chamara na ausência “uma besta”, enfiou-lhe o braço, familiar e subserviente,
dizendo-lhe ao ouvido:
—
Olhe lá, Azevedo, não me deixe ficar enterrado nesta pelintrice desta terra. Em
sendo tempo, eu me farei lembrar.
E
mesmo o Galrão e o padre Soares, entalando-o a um canto, chegaram a
submeter-lhe o plano de um discurso, uma interpelação ao Governo: “A diretriz
da estrada de primeira classe, que devia passar à parte de cima da Corte, e
agora desviavam para os lados de São Miguel, contra toda a justiça, contra os
interesses mais evidentes e mais sagrados daqueles povos...”
Nesta
confusão de cálculos, de apartes, de recomendações, o tempo correu rapidamente.
Davam já dez horas, e alguns começavam a sair. No momento das despedidas, o
escritório tomava uma aparência pitoresca e bélica, ares de quartel-general. Os
que partiam para longe, e se não tornavam a ver até à hora da batalha, recebiam
as últimas instruções, os últimos apertos-de-mão. Tinham a gravidade decidida
de oficiais, que vão ocupar os seus postos de combate. O padre Soares ficava
naquela noite em casa do padre José, mas saía logo de madrugada para a Corte. O
feitor do visconde ia já para São Marcos, tinha a égua aparelhada à porta. E o
irmão do João Máximo também seguia dali para São Gens — só o tempo de ir buscar
o cavalo à estalagem.
—
Vê lá se te saem ao caminho — disse-lhe o João Gualberto rindo.
—
Isso sim!... Ainda lhes não nasceram os dentes com que me hão de morder! —
respondeu o valentão, cheio de desprezo.
Os
que habitavam na vila, desciam também a escada aos grupos, conversando, sem
mesmo se lembrarem de entrar na sala. Mas o Júlio não podia esquivar-se
polidamente a ir cumprimentar as senhoras.
Encontrou-as
muito abandonadas, sós com o Moniz e o amanuense da câmara, jogando em volta da
mesa um loto desanimado. No seu golpe de vista pronto, a D. Amália viu-o
entrar; chamou-o com um sorriso, fazendo-lhe um lugarzinho muito apertado entre
ela e a prima Joana. O jogo continuou. A Luisinha, a sobrinha mais velha da D.
Carolina, tirava os números, sentada junto do Moniz, com os olhos sonsos mas
brilhantes. E defronte, o amanuense da câmara, mais pálido do que o costume,
passava melancolicamente os dedos no bigode preto. No silêncio sonolento, a voz
fina da Luisinha deixava cair os números:
—
Vinte e seis... quarenta e oito... quinze...
D.
Amália, desinteressando-se do loto, começou a falar baixo com o vizinho:
—
Já sei que tudo corre às mil maravilhas, não imagina o prazer que sinto com
isso. Olhe, que me há de mandar dizer quando fala na Câmara... vou de propósito
a Lisboa para o ouvir.
O
coro de adulações do escritório continuava ali; mas mais íntimo e mais quente. A
voz reprimida da D. Amália dava a estas palavras simples a significação de uma
carícia lenta.
E,
requebrando-se, envolvia-o de lado no olhar verde, filtrado pelas pestanas
unidas. O rapaz ouvia-a confusamente, atordoado do ruído e do fumo do
escritório, ficando-lhe na cabeça fragmentos das conversas políticas. Não lhe
voltara ainda a visão nítida da Margarida em lágrimas; mas sentia-se outra vez
preso de uma sensação dolorosa — uma destas dores surdas que nos atormentam,
mesmo sem disso termos consciência. Abandonado, inerte, os nervos lassos depois
daquelas horas de excitação, não reparava bem no que se passava em volta. Mas num
movimento involuntário — muito apertado entre as duas senhoras — encostou de
leve o joelho ao da D. Amália; e, com uma surpresa que o despertou, sentiu-a
responder demorada, energicamente, à sua pressão casual.
—
Quinei! — disse do outro lado da mesa a D. Carolina.
Todos
fixaram os olhos no cartão. Verificavam-se os números; não se sabia bem se o
oitenta e sete já tinha saído.
E,
neste instante de atenção que lhes criou um isolamento, D. Amália disse-lhe ao
ouvido:
—
Venha comigo.
Levantou-se,
vagarosa e serena, dirigindo-se para a porta de vidros, aberta sobre o terraço.
Ao passar, disse na sua voz pausada:
—
Luisinha, eu não jogo agora. Acho isto aqui abafadíssimo!
Da
porta do terraço chamou o Júlio, que hesitava:
—
Está uma noite estrelada, lindíssima! Venha ver, Sr. Azevedo.
Quando
o rapaz saiu para a escuridão exterior, atravessada em diagonal pela faixa de luz
da porta, ela tomou-lhe as duas mãos com força, os braços hirtos num
espreguiçamento, dizendo-lhe baixo, de muito perto:
—
Era então certo que me amava... eu tinha-o adivinhado há tanto tempo!
Atônito,
perturbado momentaneamente numa surpresa dos sentidos, o Júlio murmurou algumas
palavras incoerentes. E ficaram ali, quase defronte da porta, no risco de serem
surpreendidos, as mãos enlaçadas. Ele via-a vagamente, alta e forte num vestido
claro; ouvia-lhe a respiração curta, passando entre os dentes cerrados. Num
movimento poético, ela levantou os olhos para o céu, dizendo:
—
Vê a nossa estrela?
— É
verdade, a nossa estrela! — repetiu o Júlio tolamente.
Mas
a D. Amália recobrou com presteza o sangue-frio; e, na sua voz habitual,
imperativa e decidida:
—
Precisamos ter muita prudência... Devemos voltar para dentro... amanhã lhe
direi como nos podemos ver a sós.
Quando
entraram, o comendador, que tinha chegado naquele instante do escritório com o
João Gualberto e o Castro, veio a o seu encontro. Radiante ainda, envolvendo-os
a ambos no mesmo olhar de proteção admirativa e terna, disse para a mulher:
—
Ah! estavas aí fora com o nosso deputado!
—
Estivemos ali um bocadinho a tomar ar — respondeu ela tranquilamente.
CAPÍTULO 13
Pelas
três horas da tarde, o moço de recados do Lopes trouxe ao Azevedo um escritinho
da Sra. D. Amália — um escrito muito simples, que todos podiam ler. Dizia-lhe
apenas que tinha ajustado com a D. Carolina irem dar um passeio de tarde; mas à
noite estaria em casa só, e esperava lhe fosse fazer companhia. Sublinhava a
palavra “só”, sem a explicar. Simples como era, este escrito veio avivar todos
os remorsos do Júlio.
Porque
ele agora sentia remorsos de se ter deixado envolver, um instante que fosse,
naquela estúpida aventura; remorsos
mesmo das horas em que se esquecera da Margarida, ocupado da eleição, no ruído
de lisonjas banais e interesseiras. Numa reação inevitável, recaía mais profundamente na contemplação exclusiva e doce do seu amor; e
ao mesmo tempo na angústia irritante das suas dúvidas. Mais do que nunca,
estava decidido a pôr um termo àquela situação, a calar por uma vez todas as
calúnias; somente... não sabia bem como. E esta ridícula aventura com a D.
Amália vinha complicar tudo! Um momento pensou, que não podia recuar — a honra
masculina não o permitia. Lembrou-se mesmo com um sorriso daquele sábio José,
que ainda se não levantou na opinião pública, e sobretudo na opinião feminina,
da prudência com que se houve em uma ocasião semelhante. Mas logo em seguida
esta ideia repugnou-lhe. No egoísmo a dois do seu amor chegou a ser injusto com
a pobre D. Amália. Desconhecia o que podia haver de verdadeiro, naquilo que
duramente chamava “um capricho de velha”. Se fosse preciso acabava tudo numa
explicação clara... Extremamente difícil e desagradável a tal explicação...
mas, que remédio?
E
pouco a pouco esqueceu-se do singular acontecimento da véspera; a sua
imaginação fugiu-lhe para outro lado. Voltou-lhe aquela visão constante de dois
olhos negros, magoados e cheios de lágrimas por causa dele. Numa esperança
vaga, num impulso irrefletido, foi à janela para ao menos ver a escola por
fora. Os postigos verdes estavam cerrados; o quinta linho, deserto, inundado de
sol. A humildade daquela casita pobre prendeu-o. Porque no seu amor complexo,
feito da antiga amizade de criança, de funda ternura, de desejos ardentes,
entrava inconscientemente outro elemento, sutil e mal definido... Sabia que não
tinha satisfações a dar ao seu velho Pascoal, nem à Henriqueta, nem à Margarida,
pois... por isso mesmo! Ele, que se revoltaria contra uma exigência, rendia-se
à submissão absoluta. Sem habilidade, na simpleza inocente da sua índole e da
sua paixão, a Margarida usara da maior arma de uma mulher, diante de certos
homens — a dependência. Tinha, perante a força, o encanto doce da fraqueza.
Apelava para o sentimento tão viril da proteção. E todos em volta dela, na sua
indiferença ou na sua hostilidade, se haviam feito involuntariamente seus
cúmplices. A pouca importância dada às suas relações supostas com a Margarida,
a naturalidade com que admitiam que ele tivesse seduzido uma pobre rapariga sem
defesa, indignavam o Júlio. Tomava o partido dela contra todos, e... contra si.
Neste
estado violento, passeando no quarto, acendendo cigarros que deixava apagar em
seguida, passou a manhã toda. Jantou só, em silêncio, servido pela Bárbara, que
o rodeava outra vez de atenções significativas, desde que ele deixara de andar
“metido com a lesma da vizinha”. Quando acabou, veio encostar-se à velha grade
de ferro forjado, com um novo cigarro entre os dentes.
E
ali, apoiado à grade, olhando para o vale, recordou-se daquela esplêndida manhã
dos princípios de maio, em que se encostara naquele mesmo lugar, e vira pela
primeira vez a Margarida despregando a roupa no quintal em bicos de pés. Dois
meses apenas... nem tanto... e como tudo estava mudado fora dele e dentro dele!
Lembrava-se bem do vale ainda fresco; os olivais em flor; o trigo espigando,
num verde-claro, lavado de branco; a folhagem nova das faias, fina e trêmula na
aragem ligeira. Dois meses apenas!... E agora o Verão tinha passado sobre
aqueles campos como um incêndio. Na várzea ceifada, amarela e feia, os
restolhos deixavam ver por baixo a terra ardida, reduzida a pó, toda gretada do
calor. Os olivais sem brilho pareciam cobertos de cinzas. As faias mesmo
envelheciam, picadas já de folhas mortas. Todo o campo, árido, sequioso,
prostrado sob o Sol chamejante, se estendia sem viço e sem vida até às últimas
serras, roxas agora na luz da tarde. E por cima, no azul do céu, duvidoso e
quente, encastelavam-se umas nuvens brancas, compactas, duras, como feitas de
algodão-em-rama, que anunciavam trovoadas distantes. Dois meses apenas!...
Lembrava-se bem da sua emoção ligeira e fresca, ao reconhecer na rapariga
delgada e graciosa, a Margaridinha dos tempos passados, a antiga companheira de
infância. E agora esta emoção convertera-se em um amor profundo, aquecido nas
dúvidas, amadurecido na luta interior, regado já de lágrimas...
Envolvido
nos seus pensamentos, o rapaz olhava distraidamente em volta, e viu com
surpresa abrir-se a porta da escola. As duas irmãs saíam, caso raro, em traje
de passeio, nos seus xales escuros, os lencinhos na cabeça. Num movimento
involuntário, como se sentisse culpado, recuou um passo, e ficou escondido,
observando-as. A Margarida levantou para a sacada os olhos, que lhe pareceram
muito tristes, e desceu a rua devagarinho, esperando pela irmã. Viraram ambas
no fim da rua a uma travessinha, que dava embaixo para os farrejais de fora da
vila. O Júlio hesitou um instante, e decidiu segui-las; queria falar à
rapariga, mesmo diante da Henriqueta, dizer-lhe... não sabia o quê, qualquer
coisa, contanto que o sangue voltasse às suas faces pálidas, a alegria aos seus
olhos negros!
Mas
quando ia a retirar-se da janela para sair, reparou no João Lopes, que vinha do
outro lado, rua abaixo, num passo rápido, nada habitual. Mandou internamente
aquele maçador para o inferno; e, com o fim de lhe abreviar a visita, veio
esperá-lo ao alto da escada. O comendador entrou esbaforido, excitado, muito
fora da sua costumada pompa e gravidade. Sem poder falar na falta de
respiração, deixou-se cair sobre a primeira cadeira que encontrou, tão
alterado, num ar de caso tão estranho, que o Júlio — tocado de uma inquietação
— lhe perguntou quase sem querer:
—
Há alguma coisa de novo?... alguma coisa que lhe dê cuidado?
—
Se há alguma coisa de novo? — respondeu o Lopes numa ironia concentrada e
feroz. — Há uma traição e uma infâmia!
Ficou
um instante calado, e, achando um termo mais forte, repetiu:
—
Há uma pouca-vergonha, é o que há!
A
consciência mal segura do Júlio disse-lhe que o marido da D. Amália sabia tudo.
Não podia perceber como, mas evidentemente sabia tudo. Viu num relance todas as
complicações desagradáveis da sua situação. Serenou-se, porém, num esforço de
vontade; e, tendo umas reminiscências românticas, murmurou as palavras
sacramentais:
—
Eu... eu estou às suas ordens, Sr. João Lopes.
—
Bem sei meu querido amigo... bem sei, mas não há de ser preciso. A coisa é
comigo, e só comigo.
—
Então, por Deus, explique-me o que é!? — exclamou o rapaz, na manifestação
involuntária e muito comprometedora da sua surpresa.
— O
que é? E o João Máximo que se passou. Que patife!
Fazem-lhe
a ponte que ele queria no rio Crez, e dá-lhes os votos todos. Mas que
pouca-vergonha de governo!... Já aí está o engenheiro para ir lá pôr as
bandeirolas, chegou esta manhã. O Castro bem dizia que havia coisa. Que grande
patifaria!... Manda-nos ontem cá o irmão para nos deitar poeira os olhos... e
já tinha tudo combinado...
O
comendador passeava na sala, agitado, falando alto:
—
Que isto não nos faz diferença nenhuma. Temos a eleição aqui... fechada na mão.
Ainda que ele lhes desse os votos todos de São Gens, nós tínhamos a eleição.
Mas não dá... que eu para lá vou... Quero ver aquele patife cara a cara!
Na
distensão dos nervos, o Júlio sentia-se agora penetrado de simpatia pelo
comendador, cheio de remorsos, agradecido aos seus serviços, ao calor que ele
tomava na sua causa; e num oferecimento muito espontâneo:
—
Vamos ambos.
—
Não, Azevedo, não! Francamente não me ajudava. Vou com o Castro, e ficamos lá
esta noite no meu monte da Ferraria. Venho de manhã, mas volto outra vez de
tarde se for preciso. O senhor João Máximo há de saber com quem se meteu! Que
patife!... Nem você Azevedo pode calcular toda a patifaria que há nisto.
Mas
o Júlio lembrou-se dos famosos novecentos mil réis, a que o comendador
delicadamente não aludia.
—
Aí vem o Castro — disse este, sentindo rodar uma carruagem. Desceram a escada
juntos. Embaixo, o Castro deitou a cabeça fora da portinhola, dizendo ao Júlio:
—
Então... que me diz a uma destas?
O
comendador perguntava ao cocheiro, o Jerônimo, se vinha o alforje, e o embrulho
das mantas, e a condessa, e a maleta. Tudo pronto, ao despedir-se, apertando a
mão ao Azevedo:
— É
verdade, a Sra. D. Amália disse-me que lhe tinha escrito, e que lá o esperava à
noite sem falta. Até amanhã.
De
dentro da carruagem, o comendador gritou ao cocheiro:
— Ó
Jerônimo p’rá Ferraria, e toca!
O
rapaz ficou um instante parado na porta, vendo a carruagem descer a rua ao
trote dos machos castanhos. Pensava no João Lopes, que ia passar a noite em um
monte, tratando da sua eleição... e
na D. Amália, que o esperava em casa, só.
CAPÍTULO 14
O Júlio tinha perdido um tempo precioso a conversar com o João Lopes — as duas irmãs deviam ir já longe, mesmo naquele passinho demorado da Henriqueta.
Quando
desembocou da travessa para o campo, ficou um momento em dúvida, sem saber a
direção que devia tomar. Mas lembrou-se, que elas, em pequenas, iam bastantes
vezes à horta da D. Margarida — a horta chamada dos Frades, onde estava a
Prazeres, e que era agora sua. Podiam muito bem ter ido para lá — ficava perto,
do outro lado do ribeiro. Ele nunca mais para ali fora desde os tempos de rapaz
de escola; mas conhecia o caminho a palmos. Tomou à direita, na estrema de um
farrejal, um carreirito estreito, entre chupa-méis já secos e cardos em flor. Na encosta descoberta,
voltada ao poente, o Sol da tarde ainda caía pesado, num calor abafadiço de
trovoada. Em cima, na matriz, ouviu dar seis horas.
Depois
de atravessar o ribeiro sobre a velha ponte de um só arco, achou-se em uma das
estradas, que desciam da vila. Orientou-se. Virando à esquerda, a horta dos
Frades devia ficar logo ali embaixo, a terceira ou a quarta. A estrada, uma
simples carreteira fundamente cortada das rodas, acompanhava a margem do
ribeiro, apertada de um lado pelos valados de pitas das hortas, do outro pelas
balsas de silvados, que trepavam aos troncos das faias. O Júlio seguiu-a
devagar, procurando encontrar na poeira a marca dos pés das raparigas. Esta
pesquisa interessava-o; dava-lhe a sensação do caçador que segue uma pista.
E,
pouco a pouco, o sentimento angustioso de dúvida que o oprimia, desvaneceu-se;
voltavam-lhe todas as alegrias de rapaz, toda a elasticidade de espírito dos
dias passados. Esqueceu-se da D. Amália, do comendador e da eleição,
sentindo-se de novo criança. Não tinha tomado uma resolução; não sabia o que ia
dizer à sua Margarida sabia só que ia em busca dela.
Isto bastava-lhe. O simples fato de ter saído do seu quarto, onde se agitava ao
acaso como um urso na jaula, dava-lhe a excitação do sangue em movimento. Depois ,
a estradinha assombrada, que ia conhecendo pedra a pedra, árvore a árvore,
recordava-lhe a sua vida de estudantinho de latim, as longas excursões aos
pássaros com o Pascoal, o inocentíssimo namoro à Prazeres. Sorria, pensando
naquela infantil paixão; e mergulhava-se mais na sua nova paixão, tão
diferente, tão séria e tão funda! De vez em quando, julgava distinguir no pó da
estrada a marca estreita do pé da Margarida. Devia ser!... ali adiante...
dentro em pouco alcançava-a... via-a... falava-lhe!... E isto enchia-o de um
contentamento intenso e louco. Parecia-lhe que toda natureza em volta celebrava
o seu amor, que as árvores e as ervas estavam contentes como ele. Ao lado, o
ribeiro cantava alegremente nas pedras. Por cima, as folhas das faias tremiam,
num sussurro leve e festivo.
Em
uma volta, viu lá o portão velho da horta dos Frades. Conheceu-o logo. E,
quando o empurrou e entrou, ficou surpreendido ao encontrar tudo sem uma
alteração: as faias e o canavial ao fundo; as tabuadas do romeiral, com a meia
dúzia de laranjeiras grandes por detrás; mesmo, debaixo da figueira, um
porquinho louro, absolutamente igual ao antigo. Não se tinha enganado; diante
da porta da casa, as duas irmãs estavam sentadas com a Prazeres. Esta viu-o
entrar, e levantou-se, dizendo numa surpresa alegre:
—
Olha, o Sr. Azevedo!
O
Júlio caminhou para elas, sorrindo, perguntando:
—
Então, que passeios são estes?
E a
Margarida, corada ao vê-lo, muito pálida em seguida, foi a primeira a
responder:
—
Ora... uma lembrança da Henriqueta. Diz que havíamos de sair esta tarde, porque
eu andava assim... amarela, sem vontade de comer.
A
Prazeres foi-lhe buscar uma cadeira; e o Júlio sentou-se junto delas
conversando, olhando longamente para a rapariga. Achou-a abatida ainda, um
pouco animada agora de o ver, de perceber que ele tinha vindo em sua procura.
Revivia na sua presença, como ali embaixo, nos canteiros da horta, as plantas
murchas iam revivendo na água corrente da rega. Um momento fitou-o também,
avidamente, para se certificar de que o tinha outra vez junto de si. Os seus
olhos encontraram-se, e eles sentiram como uma impressão física de ternura
interior, os beiços trêmulos, as pálpebras pesadas. Mas o Júlio queria-lhe
falar; e, reparando numas roseiras de todo o ano, que estavam mais longe, junto
do tanque, disse-lhe brincando:
—
Margarida, eu quero a minha rosa do costume... que me não dá, já nem eu sei há
quantos dias?
Levantaram-se
juntos, dirigindo-se para o tanque, e, afastados já da Henriqueta e da
Prazeres, ele perguntou-lhe:
—
Por que estás triste?
Pela
primeira vez, instintivamente, sem saber porquê, tratava-a por tu. A rapariga
não respondeu, procurando a rosa com as mãos a tremer. Ele continuou docemente:
—
Não quero que estejas triste... Sabes... já me não vou embora. Fico... por tua
causa... porque não posso viver sem ti. E tu gostas um bocadinho de mim?
—
Para que me pergunta isso... sabe-o tão bem como eu — respondeu ela muito
baixo.
O
rapaz calou-se... sem saber... sem se atrever talvez a dizer o que queria.
Tinha-a diante de si, com a cabeça curvada, os olhos no chão, torcendo
nervosamente nos dedos o pé da rosa. Via-lhe de cima a risca estreitinha nos
cabelos escuros, e a passagem para a testa, onde lhe dera aquele longo, longo
beijo... um só. No silêncio em volta, ouvia-se distintamente o ruído de uma
nora distante, o chocalhinho da mula, a água dos alcatruzes caindo em jorros
sobre o tabuleiro. Lentamente, ele insistiu, ainda numa hesitação:
—
Não, não quero que estejas triste. Quero-te alegre, feliz... feliz comigo...
feliz por mim...
Margarida
levantou os olhos, bebendo uma a uma as suas palavras. Na última tentativa de
resistência ainda murmurou:
—
Bem sabe, que isso não pode ser...
—
Não pode ser, porquê? — atalhou ele. — Pois não vês que eu fico para sempre...
que te hei de ver todos os dias.
Não
queres que esteja sempre contigo... como antes... mais do que antes? Dize, não
queres?
—
Quero tudo quanto quiser — respondeu ela, muito submissa.
Interromperam-se,
porque a Henriqueta se aproximava.
Não
para os separar — coitada, toda a sua energia se esgotara naquela primeira e
infeliz tentativa de intervenção. Vinha unicamente lembrar à Margarida, que
eram horas de voltar para casa.
— É
por causa da ceia do pai — explicou ela ao Júlio.
—
Eu vou com vocês — disse este.
E,
despedindo-se da Prazeres, saíram. Subiram a estrada vagarosamente para não
cansar a Henriqueta. Estava mais fresco já. O Sol tocava nas colinas
fronteiras; e as sombras das faias, alongando-se, cortavam a estrada,
perdiam-se para além dos valados sobre os canteiros regados das hortas.
A
aragem tinha caído. Nem uma folha bulia. No ar, úmido de repente naquele fundo
de vale, espalhava-se o perfume da hortelã brava, viçosa e densa nas margens do
ribeiro. Eles subiam, calados. O Júlio sentia-se menos alegre. Trazia junto de
si a sua Margarida, reanimada só de o ver, esquecida já do que sofrera nos dias
passados, enleada de novo na sua paixão, que a não deixava resistir, nem
pensar. E... apesar disso, sentia-se menos alegre, invadido outra vez por um
mal-estar... como por um remorso. Pesava-lhe não ter dito... uma coisa.
Mas,
subitamente, em uma das voltas da estrada, antes de chegarem à ponte, viram à
distância um grande grupo que descia. Vinha a D. Amália, a D. Carolina e as
sobrinhas, a D. Plácida, o Moniz, o sobrinho do Cairão — uma ranchada. A
retirada era impossível, seria uma derrota vergonhosa — do grupo também os
tinham visto. Nem havia meio de o evitar; a estrada apertava-se entre as pitas
e os silvados, sem uma saída. Deviam passar ombro a ombro, com os vestidos a
roçarem quase maquinalmente, sem raciocinar este movimento, o Júlio deu o braço
à Margarida. E a Henriqueta coseu-se também muito com ele, toda trêmula.
Seguiram assim; e neste silêncio de observação sentia-se uma crise, uma
catástrofe que se aproximava. Vagamente, o sobrinho do Cairão teve medo, e
foi-se deixando ficar para trás. Mas a D. Plácida, que logo de manhã tinha
recebido umas confidências talvez exageradas, colocou-se resolutamente ao lado da
D. Amália.
Quando
iam quase a cruzar-se, o Júlio tirou o chapéu, cumprimentando respeitosamente
as senhoras. Então, a mulher do comendador não pôde conter-se; direita, as
ventas abertas, os olhos verdes duros, disse numa tranquilidade afetada:
—
Ah! O Sr. Azevedo por aqui! Sentimos muito incomodá-lo... a culpa não é nossa.
Em... certas companhias é melhor andar de noite, ou por sítios escusos.
O
Júlio tinha variadíssimos defeitos; mas não era cobarde. Ao ouvir aquela
injúria clara, lançada assim às faces da sua Margarida, tomou instantaneamente
a resolução, diante da qual hesitava havia dias. Encaixou o monóculo na órbita;
e, curvado, muito amável, com o chapéu ainda na mão, disse para o grupo:
—
Minhas senhoras, eu peço-lhes licença para lhes apresentar a minha noiva, que
justamente acaba de me dar a honra de consentir no nosso casamento.
Nesse
instante ele sentiu os dois braços da rapariga, que se enlaçavam no seu para o
resto da vida. Do outro lado, sem ninguém reparar, a corcunda pegou-lhe na mão,
e beijou-lha.
o
efeito desta cena foi deplorável. Naquela mesma tarde, e sobretudo no dia
seguinte, ninguém se ocupava de outra coisa na vila.
Logo
de manhãzinha, a Bárbara, que amassava, o lenço vermelho atado nos cabelos
pretos e os belos braços nus, declarou peremptoriamente à comadre Rita, quando
esta veio buscar o pão, que não ficava nem mais uma hora na casa:
—
Era o que me faltava... era servir uma lesma que não é mais do que eu!
E
entre os amigos políticos do Azevedo havia também uma grande emoção. Quando o
Francisco Dias, com os seus colarinhos altos e bem lavados, o estômago
conchegado na cinta larga, veio um bocado às notícias antes de sair para o
monte, encontrou a loja do Loureiro já muito animada. Sentado na cadeira do
costume, à parte de fora do balcão, o velho Peres escutava com um sorriso; e os
comentários cruzavam-se em volta dele, desfavoráveis mas confusos. Todos tinham
admitido que o Azevedo quisesse “arranjar os seus negócios com a rapariga”; mas
aquilo desnorteava-os. Não percebendo,
condenavam — ouvia-se esta frase repetida: “É uma loucura, uma perfeita
loucura!” E consultavam o Galrão, que, tocado pela esposa, tinha vindo sondar a
opinião pública. O Galrão, porém, respondia evasivamente, sem se querer
comprometer, não conhecendo ainda o modo de pensar do Lopes:
—
Decerto... decerto! Eu sempre julguei que o Azevedo tinha outras ideias... Sim,
outras intenções... Mas casar-se, senhores!... casar-se!
Pela
volta do meio-dia, o C astro caiu ali como uma bomba. Chegava naquele instante
da Ferraria, e acabava de receber a notícia. Estava fumando:
—
Então, que me dizem a isto? Que disparate! Uma destas nas vésperas de uma eleição!
Isto dá cabo de um homem... é uma vergonha!
A
palavra soou mal a o Francisco Dias, que protestou timidamente:
—
Lá uma vergonha, também não sei porquê? ninguém tem nada que dizer à
rapariga...
—
Muito bonita é ela apesar de trigueirinha! — apoiou o João Gualberto, já meio
voltado na sua benevolência habitual.
— Nigra sum, sed formosa — explicou do seu
canto o velho Peres, que se conservava muito superior àquelas coisas. Mas o
Castro saltou-lhes, irritado sobretudo com o João Gualberto:
—
Que diabo de asneira! Que importa lá se é bonita ou feia? É uma costureirinha
ordinária, sem um vintém, sem situação, sem nome, sem família, sem coisa
nenhuma! Olha que o Azevedo fica numa boa posição! Arranjamos um fresco
deputado... não tenha dúvida!
Justamente
o Moniz entrava, de braço dado com o Mena; e a sua chegada criou uma diversão.
Todos quiseram ouvir o Moniz, que tinha presenciado “a coisa”. E, no silêncio
da roda, ele contou a coisa pelos miúdos, principiando pelo princípio, como os
tinham visto de longe, como se encontraram cara a cara, como a D. Amália disse
palavras muito sérias...
—
Ela lá teria as suas razões para estar escamada — observou maliciosamente o
Mena.
Mas
a insinuação caiu; e o Moniz pôde completar a sua narrativa, demoradamente,
fazendo estilo, referindo mesmo o que disseram depois as senhoras, que “ficaram
vexadas”.
— O
que se podia ver — disse ele ao terminar — era o ar satisfeito e insolente do
Azevedo. O rapaz está doido!...
—
Qual doido! — interrompeu o Mena. — O que ele é, o tal cavalheiro das donzelas,
é um papalvo de marca, a quem a pequena meteu gato por lebre...
Isto
fez sair do seu sério o Francisco Dias, que havia pedaço já que estava
embuchado, e demais a mais embirrava com o Mena:
—
Olhem! Sabem que mais, cá quanto a mim o Azevedo andou como um homem de bem...
e aqui o siôr Mena há de andar toda a sua vida como um pulha. E com esta vou-me
até ao monte, que tenho lá as parelhas a debulhar favas.
O
Mena esperou que ele se afastasse, e, quando o apanhou já longe, desafogou
energicamente:
—
Arre, grandessíssimo bruto!
Os
outros sossegaram-no: “... O Dias era assim, muito arrebatado!... muito
arrebatado! sobretudo se lhe tocavam lá em pessoa de quem fosse amigo... Era
melhor não fazer caso.” E calaram-se respeitosamente, vendo chegar o
comendador. Vinha magoado, mas digno. Recebeu os apertos-de-mão como se estivesse
de nojo.
— É
uma ocorrência desagradável, não tem dúvida nenhuma! — disse ele para a roda. —
Mas francamente a culpa é toda nossa, em nos metermos com estes escritorzinhos
modernos, que não têm a noção clara das coisas, que desconhecem as distinções
sociais sobre que, em última análise, assentam todos os princípios de ordem. E
o pior é, que isto altera os nossos planos políticos. A Sra. D. Amália já me
disse esta manhã, e eu concordo plenamente com ela, que nós em vista deste
escândalo não o podemos apoiar.
CAPÍTULO 15
Três
dias depois, o ministro do Reino recebia do governador civil do distrito o
seguinte telegrama:
“Dissidências
entre chefes oposição. Comendador Lopes abandona urna. Eleição segura para
governo.”
---
Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)
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