Um homem bom
Si sensus abssit, ne mala
quidem sunt.
(Des. Erasmus - Stullitle Laus)
(Des. Erasmus - Stullitle Laus)
Atravessando de um salto o lago de Santo Antônio, numa triangulada breve, o caminhamento
seguia, em cheio, por um vasto teso de terra firme, que devia ser transmontado
na mesma deflexão.
À noite, uma chuva
forte, com trovoada, alagara os taperis da turma, varejando-os. O temporal
caíra com um rumor estranho de ramas sacolejadas e feitas em lascas às rajadas
mais violentas. Atrôos, gritos, grasnos, pancadas e pios, a todos os barulhos noturnos
e comuns, substituíra a tormenta uma só matinada, em que toda a mata estalava,
abalada no seu edifício intricado e em desaprumo. Singular, a floresta amazônica!
De alto porte e espessa, não tem força para se aguentar em pé, sendo além disto
quebradiça como vidro. Uma de suas árvores, caindo, arrasta as companheiras na
queda. Uma lufada prostra-a por bocados. Na sua debilidade, as raízes
adventícias, as lianas e as sapopemas amparam-na debalde no cambaleio...
Com a luz da madrugada tudo, porém,
sossegou escampado; apenas pingos grossos tombavam das folhas luzidias,
lacrimejantes da água, que as lavara à noite; e, gorjeios, trinos e pipilos de
pássaros invisíveis saudavam o fresco alvorecer.
A mata rorejante, que estremecera apavorada, aquietava-se, secando
risonha à luz, que lhe sorria. Uma endemoninhada, possessa,
que ao exorcizar de aurora se tornara bem-aventurada.
Acentuada a claridade, que a custo rompia as paliçadas da brenha, depois de me servirem de um prato
de caldo, onde se engolfavam dois pedaços de "queixada", partimos do
pouso agreste. Seguíamos a retomar o serviço deixado, na véspera, na estaca
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Aproveitando a aberta da picada já
feita, um homem houvera aí deixado uma armadilha. Encontramos, entre samambaias
e quiobas, o rifle desarmado; e, num alvoroço de alegria rodeamos, todos, uma
anta magnífica, que a arma vitimara. Estava o tapir um pouco adiante e um pouco
para fora da picada, no arranco primeiro da fuga impossível. Reclinava-se ele,
como a dormir, com o bucho roto, num tálamo suntuoso, pomposamente arranjado
todo, em delicados musgos e parasitas brancas. Jamais cadáver de rainha
repousara em tão mimosa alcatifa. Arrojara-o para ali o simples choque num
cordel fino. O animal, temível corredor de "steeple-chase", que não
tropeçava, rompendo os obstáculos dos troncos, estava derrubado por um
arqueiro. O fio tocado de leve determinara o tiro, na diabólica disposição da
máquina traiçoeira. Um "baliza" ficou tirando o couro ao bicho, para
depois o esquartejar, enquanto chegávamos a essa última estaca numerada.
Daquele ponto em diante, a mata se encorpava. Não era mais uma frouxa talagarça, mas um tecido
basto, que os terçados e foices a custo romperiam.
Por esse centro, passo de homem só
haveria, palmilhando trilhos a algum barreiro, ou a algum lago, ou igarapé,
remotos. O mais eram vestígios de onças, de pacas e de veados astutos e fujões.
Dominavam, de vez em vez, a tessitura da floresta castanheiras excelsas
de nome e de aspecto. Em torno delas ainda restavam ouriços, quebrados na derradeira safra. O cascabulho,
em montes, denunciava uma exploração extrativa, a qual havia animado o sertão,
que uns secos dados lineares e angulares iam configurar numa planta oficial.
Cessado o fruto caído das frondes
monumentais, acabara o trabalho. Remergulhava temporariamente a floresta no seu
abandono, por improdutiva. O homem voltaria com a carga amadurecida das épocas.
Então, nem as sezões, nem o risco de algum choque de ouriço, tombando
fulminador, rechaçariam o caboclo da "apanha da castanha". O patrão,
em algum lago ou igarapé próximo, vigiaria, aguardando com a sua garra leonina
a troca do produto. Uma barrica de castanha valeria um litro de aguardente...
E, envenenando o Mura, o "cearense" aumentava seus saldos; mas,
explorado por seu turno, enricava o português ou o judeu, que lhe aviara na cidade.
O "trânsito" fora
centrado na estaca, junto a um delirante torvelinho de ramas e sarmentos de
cipotaia, de dentro do qual uma sumaumeira se elevava para além das copas
verdolengas das outras árvores altas, mas anãs, junto àquele monstro calçado de
sapopemas. Apertado o parafuso de "pressão" e pelo de
"chamada", levada com rigor a linha de colimação ao pé da baliza, na
estaca anterior, o serviço de medição continuou, invertida a luneta da posição,
que a obrigara a visada à ré.
As folhas secas faziam no chão
um grosso e largo capacho, que se rasgava, esmolambando-se ao pisar dos homens
da turma atarefados.
A picada, avançando, fazia uma
vereda reta e longa. Imaginar-se-ia que um pesado réptil de lenda, a
"cobra grande" tivesse embarafustado naquela direção, no intento
suspeito de mudar de fojo, torando, com seu rastejo, grossos troncos e galhos
finos, pisando indiferentemente, com o desdobrar de suas grossas roscas e
escamas de chumbo, o solo arregoado e mole das baixas, o lamarão dos igapós, a
corrente dos igarapés e o lombo da terra firme.
Coava-se o sol pelo velabrum das ramagens, numa luz, que viesse
brincando pelos entalhes e relevos de velhas e
úmidas arcarias do claustro de uma abadia gótica c arruinada. O trabalho de
medição avançava devagar. Ouvia-se, somente, o bater dos ferros, decotando as
ramas, os caules e as folhas.
De repente, ao cair para cada lado do "pico", pelo corte das
foices e terçados, um denso pano de taquaris e
tiririca, a linha topara o grosso tronco de um murumuru, cuja coroa, opulenta
de palmas, vergava até o chão. Logo o trabalhador de machado o atacou; e, como
a fibratura do astrocarium fosse como o machado, acendi um cigarro e esperei
que caísse a rígida palmeira.
Perto de mim se conservava o homem, que tinha por encargo transportar o
instrumento. Uma barba rala no queixo magro, um rosto de maçãs salientes, uma tez baça de linfático e, na
fisionomia de um maleitado, os olhos redondos e inexpressivos de um peixe
morto.
Como uma réstia de luz
dardejasse no "trânsito", ele abriu o guarda-sol para resguardá-lo.
Nesse movimento, a camisa de algodãozinho entreabriu-se no peito descarnado e
moreno do homem e casualmente distingui, bem na altura do coração, uma enorme
cicatriz. Não pude me conter e perguntei-lhe a que era devido tão tamanho
golpe.
— Saiba Vossa
Senhoria, que foi no Ceará, respondeu.
— Mas, como? inquiri
num capricho de comunicação, que me dominou, enquanto o gume do machado batia
e se embotava no vetusto murumuru.
— Nem lhe conto, seu
doutor. — E continuou num solerte desabafo, passado por uma prosódia peculiar
aos hábitos de linguagem de velho sertanejo. — Isto deu-se no ano dos três
oito. Eu morava no Granguê e vivia de plantar algodão, afora roça. Uma vez por
outra ia ao Aracati ou à União, vender tabaco e courinhos. O seu coronel
Távora, meu chefe, me queria muito; e, quando precisava de homem, mandava logo
me chamar, e me entregava um clavinote boca-de-sino, que era arma, chamada
bicho-arma! Duma feita ele me mandou deitar um, que arreou redondo, mesmo ao pé
de uma carnau-beira, que tinha na volta da estrada dos mandacarus. Foi só um
papoco!
— E a polícia nunca
sindicou?
— Quem ousava?... seu
doutor, obtemperou o matuto.
Jacamis longínquos,
"esturrando", enchiam a mata de um bumbum retumbante.
— Era um bom homem,
seu coronel Távora, e importante, falado naquelas redondezas, que nem havia
outro! Ele era muito velho, na seca de setenta e sete já tinha filhos homens;
mas, apesar disso, se casara, havia pouco, com uma moça nova, parruda. Dona
Maroca cio Grato, filha do seu major Fulgêncio Cabeça de Sola. Linda moça! A
cara era que nem um algodão de tão alva e os dentes era ver duas carreiras
enfiadas de "conta de São Francisco". Esse tal, que eu havia
emborcado na carnaubeira, tinha vindo da capital, para Promotor.
Era um rapaz de boa aparência
e muito cantador de modas. Toda a noite, quando havia festa na fazenda, o
doutorzinho não faltava. Pelo jeito, ele andava querendo desencaminhar Dona
Maroca, e daí foi que o "seu" Coronel resolveu fazer virar o bicho,
com os pés p'ra riba.
— E foi unicamente
este que o Coronel mandou Você matar? perguntei.
O tabaréu, o
"carregador da luneta", como ele próprio se intitulava, esboçou um
sorriso significativo na face sem sangue.
— Bem, continua a
história, disse eu, entre interessado e distraído.
O machado percutia sempre na palmeira em golpes repetidos, mas
pausados. Grasnos de araras chegavam-nos das alturas.
Endireitando a aba do chapelão
de miriti, ele relatou a narrativa com ingênua sinceridade e até com uma pontazinha
de orgulho de estar lembrando, no cruel exílio do Amazonas, um caso do seu
Ceará amado, que interessava ao "branco".
— Mas Dona Maroca, a
mulher de "seu" Coronel, soube, positivo, do acontecido e que fora eu
quem derrubara o Promotor. Um dia, por causa de ser preciso preparar as
eleições na vila, o Governo mandou chamar o "seu" Coronel. Este, no
momento de mandar o pajem selar o quartau, um quartau famoso de pelo pedrês melado, me entregando o clavinote de
fiança, recomendou que todas as noites eu fosse vigiar a "casa
grande" e dormisse no paiol de farinha, que estava vazio. Assim o fiz. De
manhãzinha eu saía do paiol e ia cuidar de meu legume. Na terceira noite de
ausência do "seu" Coronel, fui direito ao paiol, mas ia assombrado e
cheguei até a me arear. Um pano de mortalha passou, açoitando meus ombros. Eu
beijei três vezes o meu bentinho. Enfim, tinha prometido ao seu coronel, fui
sempre. A noite estava feia; um vento, que de repente, chocalhava os galhos dos
angico e juazeiros na capoeira, que eu tinha de atravessar, Com muito custo me
desareei. Enxerguei o paiol e que nem um mocó, se escondendo na loca das
pedras, meti-me dentro. Estava todo transido; chegava a bater o queixo na
tocaia. Eu penso que o frio não era de fora, era de mim mesmo. Ah! seu doutor! Eu
me "alembro" bem. A lua era que nem um beiju e a papa-ceia já devia
estar se sumindo, quando, num instante, me vi agarrado por dois cabras, que me
amarravam e me arrastavam logo para o terreiro, mesmo debaixo de uma oiticica,
ao pé da cacimba. E quem havia de ver, seu doutor? Dona Maroca que, me
enxergando, foi falando no nome do Promotor e mandando: "Quero ver o
coração deste cabra malvado. Arranquem já e já..." Ah! seu doutor, esmoreci.
Eu estava peiado. Fiz só me encomendar a São Bonfim do Icó e senti uma parnaíba
me lavrar o peito. Também não acabaram, seu doutor. Foi só o tempo do velho, o
seu coronel, com um chiqueirador na mão, saltar ao pé de mim, que nem um canguçu.
Aí os cabras se sumiram; Dona Maroca ficou empalemada e branca, que era ver uma
visagem, enquanto ele me desatava aos relhos, que me acochavam o corpo. Seu
coronel havia chegado de surpresa, pois era um homem desconfiado como o demo. Ele
ficara, positivo, espiando tudo atrás de umas moitas de mofundo e assuntará
logo que Dona Maroca estava se vingando em mim da morte do Promotor. Avançando
para a mulher, ligeiro como um preá, o seu coronel subjugou-a, depois mandou, positivo,
que eu tirasse o coração dela... pelas costas.
O carregador do "trânsito"
fez uma pausa, que me deu aflição. Uma centelha estranha vivificou-lhe os olhos
baços. E acrescentou:
— Tirei, seu
doutor...; seu coronel era meu chefe... A mulherzinha estrebuchava que nem um
porco sangrado. Tinha nas mãos o coração quente,
que era ver uma fresura de bode quando seu coronel, dando ordem para enterrar
tudo, saiu do terreiro com cada soluço que parecia que tinha se acabado o
mundo...
E o narrador, instintivamente, procurando fechara camisa por onde eu
divisara a cicatriz do talho formidável,
considerava:
— Deixem lá! era um homem bom o seu coronel; ele sempre quem
me valeu, quando eu andava de rixa e em todos os apertos de minha vida. E confirmou
concluindo: — Homem chamado bom, seu coronel, e sabido danado, escrevia até
deitado!
As machadadas cessaram e, na picada, o murumuru tombando, dera um baque
no chão, semelhantemente a um corpo,
estendido morto por uma única e vibrante estocada na nuca.
--
Pesquisa, digitalização e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)
Pesquisa, digitalização e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)
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