Última dádiva
(A Júlio Monteiro Aillaud)
Distante do rio apenas um tiro de
bala ficava o horto do José Cosme, belo horto ainda que pequeno, todo mimoso de
frutas e hortaliças, fechado entre velhas paredes musgosas, atufadas em
silvedo, comunicando com a estrada por um pequeno portelo mal seguro. E eis aí
quanto ao pobre homem restava dos seus antigos haveres: – o horto, a um canto a
nora, e perto da nora, sob a umbela tufada e virente da antiga magnólia
gigantesca, a mísera casinhola de alpendre, apenas com uma porta e duas
janelitas laterais, mas toda pitoresca das heras que a revestiam, que lhe
pendiam dos beirais enlaçadas com as trepadeiras.
De modo que na Primavera, quando
as parasitas abriam serenamente os seus melindrosos cálices sobre esse fundo de
verdura reluzente, e a magnólia toda se toucava de flores fazendo dossel à
vivenda, aquele pequeno canto de horto, com a sua nora e com a sua água
espelhante e límpida, tomava a feição ingênua de uma delicadíssima tela de
paisagista, aguarela deliciosa, alegre e idílica, cheia de encantos na poesia
rústica da sua simplicidade.
No Verão, às horas de calor,
quando o sol caía a pino sobre a larga paisagem adormecida e turva, e as
árvores da estrada não davam sombra que aliviasse, aquela tranquilidade com que
o José Cosme ressonava sob o alpendre, braços nus e peito nu, o chapeirão de
palha grossa resguardando-lhe a cara, fazia inveja aos que por ali passavam,
cansados e cheios de poeira, flagelados por aquela estiagem inclemente.
– Ó tio José! – gritavam-lhe do
caminho. – Tio José! Ó regalado!
Mas os que entendiam de lavoura,
proprietários e maiorais, esses deixavam dormir o José Cosme e ficavam-se a
admirar o horto.
Ora na verdade!... Belo horto,
sim senhores! Por aquelas redondezas não havia outro que se lhe comparasse, tão
esmerada era a sua cultura – tão esmerada e tão completa, pois que demais a
mais nem palmo de terra ficara inculto. Nas leiras, dispostas com simetria
agradável, verdejavam cheios de viço, frescos e medrados, legumes de todas as
castas – desde a alface muito tenra, de folhas verde-claras, toda acaçapada no
chão úmido das regas, até às trepadeiras das vagens que enroscadas ascendiam
pela basta “rodriga” de castanho aparada com todo o esmero, formando maciços de
verdura sombria que os casulos esguios dos feijões crivavam de alto a baixo.
Árvores, apenas as precisas para aformosearem o horto, sem prejudicarem com a
sombra a vegetação franca das hortaliças. Mas todas as que havia eram mimosas
de frutas nas estações competentes – cerejas, peras, maçãs, pêssegos mesmo.
Poucas flores: uma coisa que
todos notavam com estranheza. Mas desde que lhe morrera a mulher mais a filha,
o José Cosme deixara-se de as cultivar, e nos canteiros ainda devolutos tinha
semeado repolhos, que por sinal vinham enfezados. Só teve o cuidado de não
deixar morrer os goivos. Uma vez por ano, em fins de maio, colhia-os todos de
uma vez, e ia levá-los em braçado à sepultura rasa das suas defuntas.
Exatamente nessa tarde tinha ele
ido ao cemitério fazer a fúnebre visita. Quando se recolheu era já noite. Mal
acabou de cear levantou-se bruscamente da mesa e foi-se para o horto, com uma
grande vontade de chorar. Estava nas suas horas tristes, nessas horas em que as
energias todas da sua alma e até as do seu corpo vergavam sob o flagelo de uma
dor violenta, exacerbada agora pela saudade dos que lhe tinham morrido... E
para maior desgraça fugira-lhe o bem das lágrimas. De modo que, sem esse
lenitivo, aquelas medonhas tempestades custavam o dobro a suportar. Abstrato,
numa espécie de entorpecimento idiota, percorria sem descanso todas as ruas do
horto, cabisbaixo, acabrunhado, autômato. Se por vezes parava, recolhendo-se
numa quietação atenta, logo um gesto brusco desmanchava a sua imobilidade de
estátua, soltava um fundo gemido, e punha-se de novo a andar.
– Vens ou não vens?! – perguntava
ele, evocando com dorido esforço a imagem da mulher ou da filha. Não vinha; e
quando aparecia era como se fosse um relâmpago: apagava-se logo.
Nesta luta com a sua dor as horas
iam passando longas. Era já tarde, talvez a uma da noite. Luz, apenas a das
estrelas, pois que o luar nascia tarde. Pesava sobre toda a paisagem o largo
silêncio da noite, apenas cortado, ao longe, pela melopeia sonolenta do rio.
Um rapaz que ia na estrada olhou
por acaso para o horto do José Cosme e viu um vulto perpassar de repente e de
repente sumir-se num recanto, onde a sombra era mais densa.
– Temos história... – resmungou
consigo o rapaz.
E, rente a uma árvore, quedou-se
alapardado, à espreita. Não desconfiou que fosse o José Cosme: aquilo era
mariola de larápio que vinha por ali fazer das suas. Agachou-se então, e pôs-se
a procurar uma pedra. Apanhou duas, para o caso de não acertar a primeira.
– Cão do diabo! – exclamou baixo
o rapaz, pondo-se em posição de jogar a pedra. – Espera que eu te arranjo... –
E já ia arremessá-la na direção do canto, quando o vulto saiu da sombra e tomou
por um carreiro, direito ao lugar onde o rapaz estava.
– Melhor! Mais a jeito ficas... debruçando-se
um pouco na parede, pôs-se a fixar o vulto que avançava, para ver se o
conhecia. Quem quer que era trazia a jaqueta sobre os ombros, alvejavam-lhe as
mangas da camisa. A meio do carreiro, mesmo defronte dele, parou. Foi então que
o rapaz se lembrou do José Cosme. O vulto parecia, com efeito, ser o dele;
lembrava-se agora de ter ouvido que o pobre homem, quando o ralavam saudades da
mulher e da filha, levava noites em claro, a percorrer como doido aqueles
carreiros por onde elas tinham andado.
Quando ouviu soluçar, acabou
então de se convencer. Insensivelmente, deixou cair as pedras e perguntou:
– Tio José! Ó tio José! Sou eu, o
Luís... Vossemecê que tem?
O lavrador não respondeu, parece
que nem tinha ouvido. O rapaz insistiu:
– Dói-lhe alguma coisa, ó tio
José?!
– Não dói, não! Sabes que mais?
peço-te pelas alminhas que me deixes. Bem me bondam as minhas aflições. Vai com
Deus, vai!
O rapaz ficou surpreendido,
triste do tom de súplica dorida que o José Cosme dera àquelas palavras, e
retirou-se silencioso, quase aterrado agora com a ideia de que poderia ter
matado o pobre homem, caso jogasse a pedrada.
No entanto a noite ia avançando,
grave, soturna, sem outro ruído que não fosse o das águas do rio. E o José Cosme,
sem despegar do seu fadário, ia e vinha pelas ruas do horto, lembrando um autômato
ou um sonâmbulo. Às vezes abeirava-se da porta de casa e punha-se a escutar.
Como não sentia nada, voltava de novo ao seu passeio. Nisto, de uma vez que
passava em frente do cancelo, pareceu-lhe ouvir passos.
– Ó Tomás!...
– Senhor José! – respondeu o que
entrava, numa voz que era mesmo voz de barqueiro.
O Cosme sentiu então uma grande
vontade de chorar, mas remordendo os beiços dominou-a. Como o barqueiro
estranhasse encontrá-lo a pé, ele então redarguiu-lhe que nem se tinha deitado.
– Como tinha de madrugar...
– Pois são horas de largar,
senhor José; isto vai para as duas. Não tarda que comece a amanhecer. – E como
estavam à porta de casa: – Será bom acordar já o pequeno: veste, não veste, é
tempo que se vai. – Iam à vela se o tempo não mudasse. Era bom aviar, por isso.
Mas à ideia de ter de acordar o
pequeno, o José Cosme deixou-se cair sobre o banco que estava debaixo do
alpendre, e desatou a chorar violentamente.
O barqueiro tentou animá-lo,
constrangido:
– Então, senhor José?... O chorar
é lá para as mulheres! Olhem agora que homem! – E tentava levantá-lo, pô-lo de
pé. – Limpe lá essas lágrimas, que vai afligir o pequeno! Ou quer que ele vá a
chorar todo o caminho?
O Cosme fez que não com a cabeça,
violentamente, e pôs-se a enxugar os olhos com a manga da camisa.
– Pois então levante-se lá. – E
segurou-o com força por baixo dos braços. – Assim! Lá porque o pequeno vai para
o Brasil não fique vossemecê a pensar que o não torna a ver!
Mas era isso mesmo o que ele
pensava...
– Porque não sei que me adivinha
que não torno a ver o pequeno! – concluiu a chorar o José Cosme.
– Cismas! lembranças que vêm à
gente quando está aflita. Mas há de vê-lo que o não há de conhecer, digo-lho
eu! Mais ano menos ano, aparece-lhe aí rico...
“Rico! bem lhe importava a ele
que o pequeno viesse rico! O que desejava era que voltasse, e que ele ainda
fosse vivo só para o abraçar.”
“Pois sim, mas era preciso aviar,
que tivesse paciência: o José Cosme que se animasse para animar o pequeno” –
recomendava o barqueiro.
– Sim... sim... – tartamudeava o
Cosme. – Vamos lá com Deus! Com’assim...
E num profundo ai dolorosíssimo,
foi-se direito à porta para chamar o pequeno. “Não havia remédio, tinha nascido
em má hora, havia de ser desgraçado até que o levassem para a cova...” Sobre a
estreita e humilde cama o filho dormia profundamente. Que dor, ter de o
acordar! Vieram-lhe tentações de mandar embora o Tomás e deixar dormir a
criança. Quem sabe se a sua sorte futura, se toda a sua vida, valeria a boa
tranquilidade daquele sono! Não tinha coragem para o acordar, fazê-lo vestir:
era quase um pecado quebrar aquele último sono dormido sob o teto paterno... “O
último sono! o último sono!”
– Ainda se o deixássemos acordar...
– aventurou-se a dizer o triste.
Mas o Tomás, que estava com
pressa, lembrou secamente que eram horas de por o barco a andar.
O José Cosme acendeu então a
candeia, receoso de que a luz o acordasse, e achegando-se do filho pôs-se a
escutar-lhe a respiração. Dormia... Mas brandamente pousou-lhe a mão sobre a
cabeça e chamou baixinho, quase ao ouvido, beijando-o, sobressaltado como se
fosse praticar um grande crime:
– Filho, olha que são horas, meu
filho...
Quando o pequeno se sentou na
cama, estremunhado, ainda sob o estonteamento do sono, cerrando os olhos àquela
hostilidade viva da luz, o pai agarrou-se a ele num abraço, e ambos romperam a
chorar.
– Adeus, pai!
– Adeus, filho!
Confrangido, o Tomás, que se
deixara ficar à porta, avançou para desatar aquele abraço.
– Olhe que é tarde, senhor José!
Perdoe, mas olhe que é tarde!
O pai vestiu o pequeno, beijou-o
ainda muito, e saíram. Debaixo do alpendre, o Joaquinzito ficou-se um instante
a olhar o teto.
– A andorinha, filho?! –
perguntou o José Cosme. – Deixa que eu hei de olhar por ela, mais pelos filhos
quando os tiver! Vai sossegado!
Mas o pequeno quis vê-la, pediu
ao pai que o erguesse, era só um instante. Lá estava ela, coitadinha! sentiu-a
estremecer quando lhe tocou com as pontas dos dedos...
– Adeus! – disse-lhe o pequeno
afagando-a.
A esta palavra, o pai retraiu os
braços e tomando o filho ao colo seguiu. Atrás, o barqueiro levava ao ombro a
mísera arca de pinho: toda a bagagem do Joaquim.
Ao transpor o cancelo o José
Cosme deteve-se um pouco e perguntou soluçando:
– Quando voltarás ao horto, meu
filho?!
O pequeno não respondeu. Chorava
constantemente de ver que o separavam de tudo o que adorava – a andorinha,
depois da andorinha o horto, as árvores, a velha nora, o cancelo, tudo enfim!
Atravessaram então a estrada e
tomaram para a banda do rio. Quando o sentiram murmurar, apertaram mais o
braço, deram-se um longo beijo, úmido das lágrimas que ambos derramavam. Ah,
como o triste pai desejava que o rio ficasse mais longe, muito longe, que
fugisse diante deles, de modo que nunca o alcançassem! Mas eis que a areia
principiava, divisava-se já perto o vulto escuro do barco onde os da tripulação
falavam alto.
– Pronto? – perguntou ainda de
longe o Tomás.
Do barco responderam que era só
marchar, de mais a mais ia romper a lua.
Chegaram enfim. Num leve silêncio
de acaso ouviam-se os soluços dos dois, parece que prolongados infinitamente,
na sua expressão de angústia, pelo deslizar monótono das águas... Aquilo confrangia
o barqueiro, ele também era pai... Por isso, mal chegaram à beira do rio,
apressou-se a dizer para o pequeno:
– Ora bem, Joaquinzinho, beija a
mão a teu pai e diz-lhe adeus.
Ouviu-se um chorar lancinante, a
voz do pobre José Cosme a querer animar o filho:
– Então, meu filho?... Deus te
abençoe, meu amor... Nossa Senhora te veja ir. – E fez-lhe prometer que havia
de rezar sempre a Nossa Senhora: ele também lhe rezaria, pois era ela quem dava
saúde, quem fazia a gente feliz...
– Não te esqueças dela, mais da
alminha de tua mãe e de tua irmã!
Mas o pequeno chorava cada vez
mais, agarrado ao pescoço do pai, beijando-o sofregamente, acarinhando-o, sem
forças para dizer palavra. Então o José Cosme, perdida a esperança de animar o
filho, só exclamava desvairado:
– Valha-me Deus! O Senhor me
valha pela sua infinita misericórdia!
E o Joaquim, sempre agarrado a
ele, beijava-o na cara, na cabeça, nas mãos. Até que o Tomás teve de intervir:
era preciso despegar dali por uma vez.
– Com’assim, senhor José, isto
tem de ser... – E segurando o pequeno com força puxou-o para ele. Quando já o
tinha nos braços, ouviu-se o José Cosme, que suplicava de mãos postas:
– Só um instante, só um quase
nadinha, Tomás! – E o pobre pai caía de joelhos na areia, numa atitude de
súplica.
Mas nesse momento o barqueiro
saltou de um pulo para o barco, levando ao colo a criança.
– Rema! – intimou em voz rápida.
O barco recuou então subitamente,
ao mesmo tempo que os remos fizeram – plhau!
– sobre a água.
Então o choro do José Cosme
tornou-se de uma violência desesperada, ao ouvir a voz lacrimosa do pequeno
dizendo-lhe adeus – lá do barco.
– Adeus, Joaquim, adeus!
– Adeus, pai!
– Adeus!
Mas, repentinamente, com voz
resoluta e firme, o José Cosme gritou na direção do barco:
– Tomás! ó Tomás! Por alma de teu
pai faz lá alto um instante.
Acabou-se! custara-lhe tomar
aquela resolução, mas já agora era melhor ficar sozinho de todo. E segurando
nos dentes um pequeno objeto, arremessou a jaqueta ao areal e de um lance
deitou-se a nado. O Tomás, que ouvira o mergulho do corpo, fez recuar o barco;
mas o José Cosme, velho nadador destemido, com meia dúzia de braçadas
ganhou-lhe de pronto a quilha. O filho tinha-se debruçado, na ânsia de esperar
o pai, de o ver ainda outra vez. Num movimento rápido, o José Cosme entregou ao
pequeno o que levava entre os dentes, dizendo-lhe a chorar:
– É a medalha, Joaquim; é a
medalhinha de tua mãe, meu filho! Reza-lhe, sim?!
E chorando cada vez mais, o pobre
José Cosme pediu ao barqueiro que lhe chegasse o pequeno para o último beijo...
Dado o último beijo, o barco
pôs-se de novo em marcha. Vinha a romper a lua, enorme, torva, afogueada, como
se viesse de algum banho de sangue em região misteriosa de lágrimas... E no
silêncio agoureiro da noite, apenas cortado pelo bater monótono dos remos e
pelo bracejar desalentado do triste nadador, à voz do filho que chamava
respondia cada vez de mais longe – longe como se fora do Infinito! – a voz
lacrimosa do pai – com o seu fúnebre adeus! que ele bem sabia ser eterno...
***
...Só quando o eco do último
adeus do Joaquim, perdido na distância, diluído no luar que surgia, desfeito no
lugente murmúrio das águas, fundido no derradeiro suspiro da brisa matinal,
deixou de chegar à praia, é que o pobre abandonou o areal e se foi, sempre a
chorar, tiritando ao frio da sua desgraça, como a um vento agudíssimo do polo,
na direção do horto silencioso...
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Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)
Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)
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