O cancã não fugiu do trato: fez, no talhão marcado, as duas primeiras limpas, com trabalho horrível porque a trapoerada e o marmelada estavam altos, o picão florescido, o caruru de semente, e o ora-pronobis com grande viço de fartura e de sombra. O administrador não teve incômodos: antes do romper do sol escutavam-lhe a voz entre as ruas do cafezal, e o anúncio da noite já era bem negro no céu, quando aquela voz cessava.
A tempo e hora, foram feitas as replantas; os
cafeeiros aparados tiveram ligeira poda; aos mais velhos foram tiradas as
saias; e, por último, o Cancã chegou terra a cada pé, quebrando galhos secos,
amassando ramagens e folhas. A não ser a galinhada de sua cria, e algum tizio
ou patativo assustado, quando não um bando errante de papagaios curraleiros,
não tinha companhia no serviço.
Afizera-se bem à vida solitária: vivia em
qualquer rancho de sapé, com a purunga de água e as vasilhas de mantimentos,
anos e anos, aturando empreitadas desconformes, pouco se lhe dando das festas
que faziam na capela. Agora, como a terra ajudava, teve licença de plantar no
café novo, e arranjara um pouco de tudo: feijão e milho, mangarito e abóbora,
mandioca e gergelim.
Mão abençoada era aquela! O feijão, que por
toda parte andava sofrendo o rigor da seca, e mal embainhara e granara,
chocando lamentavelmente, viera-lhe às mil maravilhas, enrodilhara bem,
alastrara pelo chão, pesado de vagens cheias; as bonecas do milho davam bom
jeito; o mangarito enfeixara-se todo, como um pequenino capão; e até a mandioca
vassourinha, que todos diziam ser novata por aqueles cantos, frondejava em rica
vitória de força e frescura.
O administrador, que era cabroche enjoado e
intiquento, varava horas e horas o olhar para as plantas do Cancã,
entusiasmado, chegando a dizer-lhe frases de meia adulação:
— Home! Você tá suparado p’ra temperar um
chãozinho! Jugou as sementes e deitou as ramas, e não teve batimento nem um de
pacuera, porque tudo rompeu dereito, que foi uma boniteza!
o Cancã tratava de atenuar os gabos, muito
modesto:
— Qual nada! Daqui p’ra deante é que é o
feio! Um pé de vento pode ainda derrubar o cateto; uma tempestade de muitos
dias é capaz de estragar o mulatinho; o gergelim não tá livre de estorar fora
do tempo, co’este solão que tem havido; a abób’ra ás vez fica um horror, de
aguada...
O administrador apartava-se, contemplava de
longe o porte, a verdura do milharal, andava um tanto, voltava-se outra vez,
desaparecia para tornar no dia seguinte, menos por tomar fé no estado do talhão
que por se entreter com a roça do empreiteiro. O Cancã era um simples, um
largado; mas não faltou quem o advertisse:
— Olhe, que o Veríssimo tá aguando p’ro amor
de as suas plantas. E fique sabendo que aquilo é um gaudério dos mais piores
que Deus ponhou neste mundo: um larifo excumungado, que tem fel no logar onde
os outros tenham o coiração!
Para o Cancã, tudo era nada: não lhe passava
pela mente que o Veríssimo fosse capaz de cobiçar-lhe as posses, quando tinha
de seu, a par com a fazenda do patrão, um sítio encantado, de bom. A inveja é
para os fracos; é para os que não acham encosto nem valedouro em ninguém; é
para os que muito querem e nada podem... Não atentava nos ditérios e conselhos
dos outros parceiros ou camaradas: ia enfiando os dias, calmo e confiante, à
espera da quebra do milho e do malhar do feijão, das mais tardias feituras do
polvilho azedo e da farinha de beju.
Aproximava-se a lua da última carpa do
talhão. O Cancã cuidou do que relevava na própria roça, porque não tivesse de
interromper a limpa do café para olhar pelo que era de casa, afiou as enxadas,
encabou-as de novo, esperou. Houve uma chuva atrasada, que se prolongou por
dias e, depois, calor de fornalha. Parecia levantar-se da terra, às horas mais
quentes, fumaça clara com vivos de fogo, que tremia e dava tonturas; os coleirinhos,
que de manhã esvoaçavam pela erva em bandos turbulentos, aquietavam-se entre as
árvores das capoeiras, cansados e silenciosos: e era tão áspero, na
transparência dos ares, o rouquejar dos caranchos, que se imaginava estar
ouvindo a cada instante, uma trovoada longínqua.
Certo dia, por volta de uma da tarde, o Cancã
teve que abrir mão do eito: doíam-lhe os olhos, um forte peso nas costas o
arcava para a frente, sentia frouxas as pernas e os braços bambos. Deu parte da
doença ao administrador:
— Seo Veríssimo, vim-lhe dar definição de um
causo que me sucede. Hoje eu arreio um tiquinho: tou morrinhento, não sei do
que, mas porém me representa que panhei um ramo de influência: preciso de beber
um café com limão e suar algum pouco. Vou p’ro rancho.
O outro mostrou-se compadecido:
— Ora já se viu só que infalência tão sem
graça, esta agora, quando a gente véve apurada duma vez, por via do patrão que
tá chega-não-chega! Não há de ser nada: cuide premeiro do corpo, depois vigie
os tratos.
Retirando para o ermo, a um lado do talhão,
junto já da capoeira, viu o Cancã que um curiango dos grandes se desmanchou no
carreadouro, debatendo as asas longas, e abriu o voo curvo para a escureza de
u’a moita de mamoneiros. Entristeceu-se:
— Não mal-agoure um pobre, pass’o triste! Eu
não quero bater o trinta e um ainda: tou muito moço, coitado de mim!
Entrou no rancho, ingeriu a xapoeirada,
acomodou-se. As ripas da cumiada estreitaram-se, baixaram, entrançadas de sapé
muito escuro e muito quente, abafaram no com o peso. Onças irosas miaram pelos
arredores. Jaguariaivas malcriados ladraram ao doente, ensurdecendo-o,
atormentando-o. Um desconhecido sacou de uma azagaia, com feições ferozes, e ia
cravar-lh’a no peito, quando, a romper-lhe o delírio, veio dizer o administrador:
— Antão, como vai essa quitanda? A mó’ que já
tá cuo semblante mais sussegado!
O Cancã levantou-se num dos quadris:
— Agora, louvado Deus, tou tendo u’a
melhorinha! Aminhã garro cedo no serviço.
Não mancava nem torcia nas promessas: logo ao
alvorecer, de feito, achou-se no talhão da empreitada. Mas havia gente a fazer
aquela última carpa, e ele admirou-se:
— Como é, seu Veríssimo? Pois este talhão é
meu ou não é meu?
O Veríssimo olhou-o de alto, muito sério,
duramente:
— Já foi seu: como houve apuro, e você teve
sua manha, entreguei p’r’outro.
— E as minhas plantas, seu Veríssimo?
— As plantas do empreteiro que larga o
serviço, de quem é que são? São do que manda na terra!
O Cancã fez-se lívido e pegou a tremer.
Contem- piou demoradamente, com amor e quase já com saudade, a verdura tenra
dos arbustos. Funda tristeza principiou a tremer-lhe o coração e os olhos.
Levou-os ao céu, que se ria todo azul e sem nuvens, e, caindo na crueldade do
mundo, implorou com humildade de cachorro, que rasteja e lambe os pés do
senhor:
— Por tudo quanto é sagrado, patrão, não me
tire as minhas plantas! Ao menos me dê licença p’ra mim fazer a colheira: eu
acupo só por mais uns dias o rancho, e depois mexo!
Mas o Veríssimo fechou-se no dito. E houve
tanta lágrima, e tanta queixa, e tanta importunação, que mais tarde, como já
desse de pretejar a barra do céu, e a teima não cessasse, foi preciso chamar
uma escolta de seis soldados, que mandou sair aquele vagabundo, desaforado e
cabeçudo, para além das porteiras da fazenda...
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Pesquisa, digitalização e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)
Pesquisa, digitalização e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)
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