Tipos da terra
(A Rafael Bordalo Pinheiro)
Desembocaram num largo. Era o
ponto mais central da terra, – a praça. – Aqui e ali, ao acaso, algumas árvores
enfezadas, quase tudo olmos brancos, vegetavam a medo, com os troncos
protegidos por velhas grades de madeira, desmanteladas. Era um terreiro vasto,
muito chato, com casas em volta, – o que na vila havia de melhor em
construções. Ficava ao meio o pelourinho, exótico, mutilado, de uma pedra
grosseira e muito negra. Era uma alta coluna de oito faces, com o seu anel de
ferro ao meio, e uma argola pendente do anel. A coluna, que se elevava sobre um
pedestal de três degraus, em hexágono, terminava ao alto num grande X de pedra
deitado horizontalmente. Um espigão de ferro, de três gumes como os floretes de
esgrima, irrompia hostilmente do meio do X, perfurando o espaço. Em volta, a
casaria era triste, sem estilo, sem gosto, sem cal. Algumas pedras de armas em
velhas paredes decrépitas, desequilibradas, hidrópicas, atestavam aristocracias
remotas, agora de todo extintas. Ao alto, dominando a negrura chamuscada dos
telhados, o velho castelo, romano de origem, fazia tristeza com as suas ameias
derrocadas, e as grossas paredes em ruínas. Ao lado do castelo erguia-se
destacadamente a velha torre do relógio, de uma arquitetura primitiva. Tinham
dado onze horas, mas eram apenas as sete: aquele – estafermo – é que não andava
nunca direito. De dia ninguém o entendia, com o seu ponteiro de ferro girando
num mostrador sem letras, de uma pedra azulada. De noite fartava-se de badalar,
alvoroçando a povoação como se fosse a fogo, ora atrasado, ora adiantado, dando
meia-noite quando eram quatro da tarde, e meio-dia mal despontava o sol. Eram
as sete. Àquela hora é que os figuros da terra, quase tudo empregados públicos,
vinham para o largo, fresca. Alguns passeavam, – seu fraque, sua bengala de
cana com castão, chapelinho à banda, sapato branco um ou outro. Nas escadas do
pelourinho, sentados, outros do mesmo feitio cavaqueavam, – coletes
desabotoados, perna cruzada, chapéu para a nuca, às três pancadas. Um de pera
comprida, no degrau superior, contava facécias. Os outros riam alarvemente,
chamavam-lhe intrujão. Algumas – madamas – pelas janelas em volta, nostálgicas,
anafadas, de claro. À porta do estanco, em cima, havia outra roda, – uns de pé,
outros sentados em caixas, alguns montando cadeiras de pinho. Era a – roda mais
forte, – quase tudo maiores burocratas: – o Melo da Administração, o Antunes da
Câmara, o Escrivão de Fazenda, o Rodrigues do Real de Água. E outros. À porta,
perfilado e muito cerimonioso, o dono do estanco, alto, esguio, flexível, com a
sua cara rapada e o seu chinó castanho, eriçado e velho. Era de maneiras feminis,
uma falinha melíflua, cantante, viva, muito desempenado quando andava,
saracoteando-se todo, em biquinhos de pés como se fosse levantar voo.
Chamavam-lhe Ernestinho. Não se podia falar diante dele num rato morto, numa
carocha. Aquilo “fazia-lhe nervoso”, enojava-o, ficava-se a cuspinhar meia
hora, dizendo constantemente:
– Ai Jesus! ai Jesus! Caticha!
Nossa Senhora do Carmo! Nem sei como não lanço fora!
E se riam, ele exasperava-se: não
compreendia como pudessem falar em tais coisas! De resto, bom sujeito, finório
para o seu negócio, – um poucochinho beato... – diziam-lhe.
– Meu proveito. Não que eu não
quero a minha alma nas penas do inferno, a arder! Leiam a Missão Abreviada,
leiam esse rico livro!
E as palavras saíam-lhe a correr,
espremidas nos seus lábios delgados, um poucochinho sibiladas nos ss.
– Cigarros, Ernestinho, um vintém
deles. Querem-se dos de Lima, desses fortes.
Declarou que também havia dos “especiais”.
Algum senhor queria? Tinham chegado três maços, para ver. Oito por um vintém.
– Pois guarde-os! – disseram
alguns, horrorizados com a ideia de dar um vintém por oito cigarros. –
Guarde-os!
“O senhor engenheiro, quando
vinha à vila, perguntava-lhe sempre por eles. Dos de Lima nem o cheiro, não
gostava.”
– Olha o figurão! – disseram a
rir. – Por esse mundo fora sempre há muito idiota! Forte cavalgadura!
O Ernestinho veio com os
cigarros, em feixe nas pontinhas dos dedos. À porta, antes de os entregar,
contou-os de novo. Doze. Estavam certos.
– Ó senhor Ernesto, se faz favor,
ponha isto lá no caderno, ao pé dos outros.
Ernestinho foi para dentro,
contrafeito, fazer o apontamento. Houve um silêncio oprimido, o dos cigarros
tossiu para o quebrar, ao mesmo tempo que num gesto acanhado, receoso, fazia
menção de oferecer: – “alguém era servido?”
Dentro do balcão, ao pé das
garrafas com licor, e das botijas de genebra, Ernestinho somava a conta. Era já
taluda. – “E vão dois e dois quatro e dois seis: seiscentos e vinte! Sabe Deus
quando os receberia!” – E suspirava, arrumando os maços encetados, sob o olhar
tranquilo e indiferente do Santo Antoninho que lá estava em cima, ao alto das
estantes quase vazias, no seu nicho feito de um caixote forrado a verde, com
flores artificiais muito sujas e duas velinhas dos lados. Mas resignava-se, que
não tinha outro remédio. Eram os ossos do ofício...
Cá fora tinham dado fé,
acotovelavam-se chamando asno ao Ernestinho, – “um pulha a quem ajudavam a
viver... Se hoje não há dinheiro, há-o amanhã, essa é boa! E pagava-se, com os
diabos! E pagava-se! Mas não senhor! aquela besta mostrava sempre má cara, o
alarve! A culpa tinham-na eles, afinal, que o procuravam, que o preferiam!
Tomaram os outros ter aquela freguesia...”
O dos cigarros fiados anuía,
assobiando baixo o Água leva o regadinho. Por fim levantou-se, lentamente, com
um ar de enfado, um sorrisinho de despeito nos lábios, encolhendo os ombros.
– Estender as pernas – disse. –
Quem vem daí?
Todos ficavam: “era uma estopada
andar para trás e para diante, naquela sensaboria da praça”.
– Até logo. Você aparece no
sítio, à noite?
– Apareço, vou à desforra.
E cumprimentou em roda:
– Meus caros! Muito boa-tarde,
senhor Ernesto.
Foi-se, puxando para baixo as
pernas da calça, alisando as joelheiras.
– Que tal está o asno, hem? Quer,
ainda por cima, que o Ernestinho lhe diga bem haja...
“Era um parvo”. – “Era um tolo”.
– “Tinha dívidas nos outros estancos”. – “Em toda a parte”. – “Lá em casa a
família passava fomes”. – “Um batoteiro de marca”.
Houve agitação, alguns puseram-se
de pé, outros mudaram de lugares. Ia a passar um grande carro de palha, chiando
muito. Ernestinho chegava-se de novo, muito ronceiro, roendo as unhas.
– Com que então... ponha lá ao pé
dos outros? – disseram-lhe, para o lisonjear nos seus despeitos. – Bem bom
freguês!
Ele encolheu os ombros e cerrou
os olhos, beatificamente, num gesto de mártir resignado. E não disse palavra: –
“para falar daquele tinha de falar também deles...”
Mandaram vir limonadas: – “três
limonadas!”
– Aí vão trinta réis!
“Diabo! era preciso animar
aquilo! Assim não tinha jeito!” – E puseram-se a falar do tempo, das moscas,
daqueles idiotas que andavam na praça a dar-se ares. Ensoberbecia-os a ideia de
que iam tomar três limonadas, – e sentiam-se felizes, alegres, um tanto estroinas.
O Ernestinho deu dois passos fora
da porta, e chamou para a varanda, onde grandes manjericões floriam:
– Ó Emília! Emilinha!
A mulher assomou, gorducha, muito
mole.
– Três limonadas, ouves? Três
limonadinhas depressa.
As conversas animavam-se. – “Pois
senhores! havia de ser difícil encontrar uma coleção de asnos assim!” Falavam
dos que passeavam na praça, aos grupos. – “Deus os faz. Deus os ajunta!” O
palerma do Fernandinho dera-lhe agora para cantar! Lá andava ele. Volta, meia
volta,
Vai alta a lua na mansão da morte
com umas tremuras na voz, que eram mesmo de o esbofetear! Estava antipático,
aborrecido, desde que andava de namoro com a Marques. Só tinha uma coisa boa –
a caligrafia. – Um talhe de letra bonito, – confessavam. – E as calças, hem?
reparem vocês naquelas calças: vai flamante! Casualmente, Fernandinho olhou de
longe para os do estanco, disse-lhes adeus com a mão, afável. Corresponderam
todos muito risonhos, mas a chamar-lhe nomes por entre os dentes:
– idiota, palerma, pechisbeque...
Sozinho, numa lentidão moribunda,
olhos nas botas, olhos no céu, o Teles escrivão passava ao largo, ruminando
alguma poesia. Às vezes quedava-se extático, suspenso, o polegar esquerdo entre
os dentes, um olho cerrado fortemente, a meditar. Vinha um gesto e punha-se de novo
em marcha, contrafeito.
– Ó senhores! mas não me dirão em
que anda a parafusar o Teles, aquele telhudo? É isto: – e pôs-se a imitar o
escrivão.
Riram. O Melo imitava-o bem, o
alma do diabo, no andar especialmente! Mas aquilo era um logogrifo. Há uma semana
às turras a um logogrifo em acróstico.
– Isso é o Teles! – fez um que
vinha da praça. – Aquilo é um intrujão! Na rua não é que se adivinham
logogrifos. Ó Ernestinho, você ainda tem daquilo que ferve?
O Ernestinho deixou descair o
lábio, não percebia...
– Homem! daquilo que vinha numas
garrafórias escuras, compridotas...
– Quer dizer gasosas. Uma rolha
segura com guitas...
– Ora é isso mesmo, nem mais.
– Bem sei.
“Mas não tinha já. Nem mesmo
queria mais, para quê? Achavam caro um tostão...”
– Eram aos três para beber uma
garrafa...
– Pudera! Por um pataco, trinta
réis levando o açúcar, fazia o Ervas uma soda, – objetaram alguns. – Ponha lá
que em gosto é a mesma coisa!
– E aquela porcaria, ó Ernestinho,
e aquela porcaria amarela que sujava tudo de escuma?
Alguns cuspiram, disseram ao
Alves que se calasse, que vomitavam, com seiscentos diabos!
– Cerveja! – disse o Ernestinho –
cerveja! uma coisa que lá para baixo toda a gente bebe por gosto, as senhoras
mesmo!
E com um sorriso de desdém, exclamou:
– O que é ser do calcanhar do
mundo! Em nome do Padre, e do Filho...
Mas na praça um grupo altercava.
Ouviu-se distintamente a palavra – pulha – pronunciada com força. Saíram em
tropel, ficaram só três. – O que pagava as limonadas exultou:
– Homem! nem de propósito! Ficava
exatamente quem ele queria, estava mesmo a ver que aquela súcia lhe chupava o
refresco:
– Tó Ruça! Já lá vai esse tempo!
Precisamente, a Sra. Emília
chegava, com os copos numa bandeja: – “Que provassem: diriam se precisava mais
açúcar. Mas parecia-lhe que devia estar bom...”
Beberam de um trago, estava ótima!
– “A senhora Emília tinha dedo para aquelas coisas”.
– Obrigado, ó Melo!
– Obrigado, ó menino!
E os dois saíram de rompante,
chamando pato ao Melo, rindo-se dele e limpando os beiços.
Quando o Melo ia a sair, – a ver
o que ia na praça, – o Ernestinho, muito cortês, objetou-lhe que faltavam
trinta réis: – Se ali não tinha, depois. Isso era o mesmo...
– Mas trinta réis?!... De que são
os trinta réis? – perguntou desconfiado o Melo.
– Do açúcar, foi do refinado, –
explicou o Ernestinho. – O mascavado acabou-se. Amanhã ou depois já devo ter
mais. O senhor Melo desculpe.
“Não tinha que desculpar; somente
notava que aquelas coisas diziam-se no princípio”. – E saiu sem dar mais
palavra, furioso: – “Uma ladroeira! Três vinténs não valiam os dois que lhe
tinham chupado o refresco...”.
Na praça tinha cessado a
altercação; os grupos, reunidos, formavam uma grande roda, comentava-se. O Melo
quis informar-se: – que lhe contassem – o escândalo.
“Ora! não fora nada: o Veiga que
se tinha lembrado que as correspondências na Voz do Distrito eram escritas pelo
Albano. Disse-lho na cara. O Albano negou, deu a palavra de honra. O Veiga, que
é casmurro, teimou: – “que não acreditava, ainda assim!” – Vai o outro
chama-lhe pulha, iam-se pegando. Ora ai está!”.
– Mas afinal, quem diabo escreve
aquilo? – quis saber o Melo. – Aquilo há de ser escrito por alguém, está claro!
“Dez réis pela novidade! Que
havia de ser escrito por alguém sabiam eles...”
– Quem, então?
Divergiam as opiniões. Podia ser
Fulano, podia ser Beltrano. Um ou outro dava a sua palavra de honra que também
não era ele, jurava-o! Houve um que se lembrou se aquilo seria do padre
Mendonça...
– Qual?! Do padre Mendonça não é.
Fazia coisa melhor, se se metesse nisso. Olha o padre Mendonça, o da gibreira
de Braga...
Mas o da ideia insistiu,
renitente: – “havia ali duas coisas que o faziam lembrar, certas facécias, como
a de chamar Frei Asneira ao Reitor e Cabeça de Comarca ao Felisberto”.
– Pois se é ele, que se regale;
pode limpar as mãos à parede! Mente como um alarve, mente da primeira linha até
à última! – disse firmemente o verdadeiro autor das correspondências. Olhem o
que ele diz do juiz de direito, só calúnias! O juiz! um homem teso! Tem lá o
seu fraco pelas saias, mas isso, que diabo! isso não é defeito.
De resto, eram todos acordes em
que as correspondências eram uma infâmia. O que se chama uma infâmia pegada!
Mexericos e mais nada, uma coisa de soalheiro! E depois, o dizer-se lá que
entre os rapazes não havia duas amizades leais, que era tudo uma impostura?!...
Houve um silêncio significativo,
talvez de aprovação.
– Só de pulha! – rematou por fim
o Nunes da Fazenda, o tal que escrevia as correspondências com o pseudônimo de
Aramis. – Vejam vocês aquelas galegadas ao comendador! Aquilo chama-se lá fazer
política?! Discuta-se o homem como presidente da Câmara, sim senhor; discuta-se
o homem público, o funcionário; mas deixe-se-lhe em paz a marreca, os fundilhos
das calças; ninguém quer saber se os criados lhe param em casa, ou se não! E
depois, aquelas alusões à família, aquelas piadas à D. Engrácia, pobre velha...
– A quem? – interrogaram uns
poucos. – A Dona quê?
– À D. Engrácia, está bem de ver.
Aquela beata que fazia peúgas de lã aos missionários ela. Presumo eu que é ela,
– fazia o Nunes das correspondências com um grande ar de suposição. – Eu cá foi
para onde deitei.
Os outros não. E como o das
correspondências tinha prometido explorar a “crônica beata”, aguardariam mais
informações. Supunham, no entanto, ser com a D. Joana, a do – chá da erva
cidreira. – Outra canalhice! A D. Joana, para festejar os anos da filha,
convidara tudo, lazarões e penicheiros, não fizera política. Depois foi aquela
tareia que se viu: – que o chá era erva cidreira, que tinham bolor os doces de
ovos, que ela parecia a quaresma e a filha o entrudo...
Ora isto não se diz; a pobre
mulher doeu-se! Citavam-se de cor frases inteiras da correspondência. Por
exemplo: – “A deusa da festa dizem que recebeu telegramas de... amor.” – Uma
facécia de mau gosto aludindo ao Proença telegrafista. Depois do que por aí se
diz, é forte... Que afinal, quem sabe lá?! Entre os dois que diabo pode haver?!
Namoro?!
No grupo alguns tossiram forte,
rindo. O Nunes interveio:
– Não senhores! Isto agora alto
lá! A Amélia é uma rapariga séria...
Riram às gargalhadas: foi um
barulho com a tosse!
– Quando digo uma rapariga séria...
Mau! Acomodem-se lá com o banzé, vocês deixem falar! – tornou o Nunes,
formalizado. – Quando digo uma rapariga séria, quero dizer… sim… quero dizer...
– e procurava a frase, entalado, – por exemplo, que ela não é capaz de receber
ninguém, alta noite, lá pelos quintais, como o tal das correspondências quer
fazer suspeitar.
Iam replicar-lhe, mas ele
atalhou:
– Chama-se àquilo ser canalha às
direitas, arre! Isto agora é falar franco. Saltaram-lhe:
– E você jura, ó Nunes? Você
jura? – perguntou, com gesto perfurante, o Alves dos Pesos e Medidas.
“Não... isso agora... Jurar, não
jurava; mas, com os diabos! pelo que se via, pelo que se podia julgar...”
– Lérias! – disseram todos.
“O Nunes parece que estava com os
beiços com que mamara! Com que então, para ele era tudo uma récua de santas?!
Desenganasse-se, que era tudo uma canalha, uma corja de sonsas! Que diabo de
ingenuidade!”
O Nunes observou modesto, quase
agradecido:
– Ingenuidade, eu te digo... Não
é bem isso... O que sou, é prudente. Desconto sempre noventa por cento àquilo
que vocês dizem, aí é que está...
– “Vocês” é um modo de falar! –
emendaram alguns.
– Vocês, digo eu, vocês… quando
escrevem correspondências, – explicou sofisticamente o Nunes.
Calaram-se, disfarçaram. Próximo
deles, a Amélia toda de verde, com guarnições de fita preta, caminhava ao lado
da mãe, solenemente. Tiraram todos o chapéu, cortejando risonhos, respeitosos.
O Nunes foi cumprimentá-las, submisso.
– Dar o seu passeio, não é
verdade? – E apertando-lhes a mão: – Vocelência como passou? A senhora D.
Amélia? Obrigadíssimo. Assim... assim...
“Então? que diziam àquele calor?”
– Abafava-se, ali pelas duas. Que
forno!
– O Brasil tal qual – reforçou o
Nunes.
“Mas que fora feito, que as não
tornara a ver desde os anos? Uma noite de truz, aquilo sim!”
– Olhe, senhora D. Amélia, a
flauta... a flauta é que nem por isso: foi pena! O Abelzito andava constipado.
A D. Amélia explicou: – “A mãe
ficara doente, já não era para aquelas noitadas”. – E em voz mais baixa, quase
dolente:
– Depois, veio a Voz do Distrito:
aquilo chocou-a muito.
– Não há tal! – fez a mãe. –
Meteu-se-te isso na cabeça. Deixe-a falar, senhor Nunes. E por pouco não
chorava ao dizer isto.
O Nunes afetou um sentimento
profundo: – “Era melhor não falar nisso, não pensar em tal; todos as conheciam,
todos lhes faziam justiça. Tinham acabado de falar na tal correspondência,
agora mesmo.” – Uma garotada! – resumiu o Nunes. – E em tom confidencial:
– Anda-se na pista do garoto. Ele
há de aparecer. E depois... e depois... Muito boa tarde, minhas senhoras! O que
for soará. É preciso dar um exemplo, – concluiu terminantemente.
– Uma severa lição!
Despediram-se; elas agradeceram
ao Nunes – “a parte que tomava no seu desgosto”. – E seguiram cumprimentando
para as janelas, perguntando se vinham daí um bocadinho até à capela,
espairecer.
As Silvas pediram que subissem. “Um
bocadinho só. Ficava bem aquele vestido à Amélia.”
“Não podiam subir, talvez à
volta.”
– Pois sim, hás de ver o meu
bordado a miçanga. O papagaio está quase pronto, que trabalhão!
“Estava na dúvida se lhe poria o
bico assim, de gancho. Não gostava. O risco era do
Fernandinho. Já lhe fizera outro,
talvez mais bonito.” Coisas de anjinhos:
– Verás.
Os grupos tinham-se reunido em
volta do Pelourinho. Passava gente que vinha do trabalho, da labuta áspera da
eira, – homens com malhos, e mulheres de cestas à cabeça. A tarde descaía numa
serenidade calma. No degrau de cima, o Paula, oficial da administração, com
fama de tipo de chalaça, cantava em surdina umas cantigas de caserna, obscenas,
zaranzando na barriga como se fosse numa guitarra. De volta, os outros formavam
roda. Todos riam, pediam bis.
– Tu hás de conhecer isto, ó
Chico! – dizia o Paula para o Francisco Maria, um cabo que estava de licença. –
Tu hás de conhecer isto.
O administrador do concelho, um
pobre-diabo desmazeladão e filósofo, afirmava “que lhe lembrava Coimbra, a
pândega das vielas. Ao Paula valia-lhe a prenda, palavra de honra que lhe valia
a prenda, senão já o tinha demitido, às vezes que lhe entrava borracho pela
repartição.” – E pedia a rir, boçalmente:
– Ó Paula! Aquela do bate-bate,
canta lá.
E trauteava as primeiras notas,
castanholando com os dedos. – Se era preciso, o Fernandinho ia pelo violão.
– É verdade, você que fez hoje
que me não apareceu na repartição, ó Fernando?
– Dormi, está claro! Ao senhor
doutor acontece-lhe o mesmo às vezes. Olhem que pergunta!
Mas o Paula tinha-se calado,
bocejava.
– Então, ó Paula... – suplicava o
administrador.
– Está fechado o realejo! Depois.
Quem lhe dera que fossem as nove
para irem até ao “sítio”. Ou perder ou ganhar; tinha ali seis tostões que eram
para um mico.
– Mas eu não lhe dizia, senhor
doutor? eu não lhe dizia ontem que a dama se negava? Eu estava mesmo a ver
aquilo... Bem feito! “gramou” um entalão que se consolou.
– Quatro coroas. – Na véspera tinha
ganho um quartinho.
Nesse momento passava o juiz,
sozinho como sempre. Todos tiraram o chapéu; ele passou gravemente, cortejando.
– Quem eu te quero à perna é o
Aramis... – rosnou o Teles escrivão, que embirrava com o juiz desde que o
suspendera uma vez. – E ainda ele não sabe tudo... – insinuava perfidamente.
– Pois o resto diga-lho você,
diga-lho no Almanaque de Lembranças, em verso – fez de um lado o Rodrigues do
Real de Água.
O Teles, com famas de literato,
redarguiu que “não dava confiança a analfabetos”.
– E eu a brutos, sabe você?
Mau! que eles lá começavam!
Oficiais do mesmo ofício... Ó senhores, lá porque ambos faziam versos não se
seguia que devessem embirrar um com o outro. Pelo contrário.
O Teles, furioso, disse que não
embirrava com o outro: que nem lhe dava essa importância, essa honra!
O Rodrigues ia saltar-lhe,
tiveram mão nele. Mas jurou que de outra vez seria, que fizesse de conta que já
lá tinha na cara quatro bofetadas tesas.
– Tesas, hem?! Olá! quatro
bofetadas tesas!
Havia de dar-lhas, tão certo como
dois e dois serem quatro, só para ter o gosto de dizer depois, num comunicado,
que desafrontara as letras portuguesas – ele, o Rodrigues, ele, um simples
fiscal do Real de Água!
Aquilo fez surpresa,
convidaram-no a explicar-se.
– Não senhores! – dizia colérico
o Rodrigues, com grandes gestos. – Bem sei que não valho nada! Escrevi, é
verdade que escrevi; faço ainda o meu verso quando me dá na cabeça. Uma
rapaziada! Estão maus? Concordo. Mas não há de ser aquele négalhé que o há de
dizer! Não o julgo habilitado. Lá porque tem soletrado dois romances, não se
segue. Mas o que mando para o público, sim, o que entrego aos prelos – é meu! –
E batia no peito com a larga mão espalmada, furioso, numas raivas de orgulho
triunfante. – Não roubo! nunca roubei! – afirmou mais alto o Rodrigues, para
que o Teles, que se ia retirando, no meio de dois amigos, conciliadores, o
ouvisse. – Repito: não roubo, não faço como ele! – E as palavras saíam-lhe
salivadas, violentas por entre os lábios espumantes, atiradas ao Teles como
pedradas.
Os outros escutavam agora com
interesse. Estavam a dar razão ao Rodrigues, instintivamente, sem compreender
bem o que ele queria dizer.
– As provas... – e meteu a mão no
bolso do seu casaco de lona, com ímpeto: – as provas, elas aqui estão!
Mostrou no ar a brochura verde do
Almanaque de Lembranças. – Era do ano que vem, tinha-lhe chegado hoje. Ali
estava o Peres do Correio que lho tinha entregado ele mesmo.
– Sou testemunha – confirmou do
lado não sei quem.
O Rodrigues, então, afirmou que
era preciso “historiar”: contaria a coisa em duas palavras. O Sr. Teles, o
borra-botas do Sr. Teles, lembrara-se um dia de ser escritor, de ser poeta! O
alarve! Todos os anos – zás! versalhada para o Lembranças...
– Era colaborador! – disse o
Antunes da Câmara que admirava o talento do Teles. – Era colaborador!
– Era quê?! – interrogou logo o
Rodrigues, de mão atrás da orelha. – Maçador, maçador que ele era! Nunca lhe
admitiram as asneiras, se me faz favor, nunca! Na correspondência troçavam-no,
chegaram a dizer-lhe que podia fazer fortuna pelas tombas, que o não chamava
Deus para as letras. Aquele – Serei ousado? – é ele, sei eu que é ele. Nunca o
admitiram!
– Lembro-lhe a Flor do Campo,
senhor Rodrigues, lembro-lhe esses versos! – insistiu o Antunes.
O Rodrigues teve um risinho
feroz, fitando o escrivão da Câmara. Não lhe respondeu. Subiu os três degraus
do Pelourinho, pausadamente, com pompa, e chamou a atenção dos amigos. Ia ler.
Abriu o Almanaque de Lembranças, onde trazia um papel, e rompeu: – “Indignidade.”
– Em letras bem graúdas, queiram
inspecionar.
E colou ao peito o Almanaque,
voltando para fora na página onde o seu dedo reboludo apontava a terrível
palavra, – escrita ao alto em epígrafe.
Houve um sussurro, alguns pediram
silêncio. O Rodrigues que lesse.
“Os versos intitulados Flor do
Campo, que viram a luz no Almanaque de Lembranças do ano extinto, foram-nos
remetidos pelo Sr. José Maria Teles, escrivão.”
– Copiados por mim, uma letra
floreada – esclareceu o Fernandinho. – Ele depois assinou – e fez no ar, com o
dedo, o traço complicado da firma complicada do Teles.
Pediram silêncio outra vez. O
Rodrigues continuou:
“Publicamo-los na convicção de
que eram da lavra daquele senhor, pois que ele os assinava.”
– E então? – perguntaram uns
poucos, sem compreender ainda.
– “Pura ilusão!” – continuou
solenemente o Rodrigues. – “Escreve-nos o mimoso e assaz conhecido poeta Sr.
Alfredo Mendonça, dizendo que os versos lhe pertencem, e que o Sr. Teles os
roubara (sic) do seu volume Lira Matutina.”
Foi uma estupefacção! O Rodrigues
prosseguiu mais alto, fugindo aos comentários:
“Averiguamos, e disso alfim nos
convencemos. Os leitores avaliarão a probidade do Sr. Teles, a quem mais de uma
vez tínhamos fechado a nossa porta por incapaz. Hoje damos-lhe com ela na cara
– por indigno.”
E o Rodrigues fechou o livro com
estrondo, como os outros fechariam a porta na cara do Teles escrivão; tomou
praça fora, o livro debaixo do braço, e foi-se para o estanco do Ernestinho,
altivo, solene, – vingado!
Os da roda seguiram-no silenciosos,
corridos de vergonha, desnorteados, porque além de sempre terem julgado o Teles
muito superior ao Rodrigues – e o Rodrigues bem o sabia, olha ele!... – tinham
dado uma sorte de mil demônios, agora é que eles viam! distribuindo no teatro,
por ocasião da festa de Santa Bárbara, a Flor do Campo que eles tinham mandado
imprimir avulso – para lisonjear o Teles, que tivera o trabalho de os ensaiar
no Santo Antônio. Hem? quem diabo havia de dizer que aqueles papelinhos de cor,
uns verdes, outros amarelos, chovendo sobre a plateia entre o segundo e o
terceiro ato, e quase disputados a murro, num alvoroço de seiscentos diabos,
encerravam uma insídia, – um logro à boa-fé, à incredulidade ingênua de “toda a
comarca”!
E relembravam episódios,
particularidades quase extintas: o Fernandinho vestido de menino de coro,
batina vermelha e roquete de rendas, cobrindo-se de teias de aranha lá pelo
forro do teatro, de gatinhas e com um “toco” de vela na mão, aos tropeções, só
para ter o gosto de ser ele a despejar do óculo aquela papelada; o Melo da
Administração, vestido de Frei Antônio, sandálias e grande chinó de calva
redonda, feita de uma bexiga de porco, com o Teles em triunfo por entre os
bastidores, seguido pela turbamulta dos companheiros, em hábitos de frade e
fradetas de galuchos, dando vivas ao – Poeta! – ao grande Teles, “ensaiador da
rapaziada!”
Que desastre! Afinal tinha-lhes
saído um intrujão! E quase se regalavam da sorte que tinham dado, pelo prazer
que sentiam de o ver agora humilhado, corrido, esbofeteado pelo ridículo. Bem
feito!
O Antunes da Câmara, sobretudo,
estava furioso. Fora ele o da lembrança de se mandar imprimir a versalhada.
Escrevera para Coimbra ao Manuel Caetano, ao Manuel Caetano da Silva, Praça
Velha nº 2, que mandava os impressos para a Câmara, e pedira-lhe aquilo como
especial favor. O homem – pronto. Duzentos exemplares, quinze tostões. Quinze
tostões que se tinha combinado dividir por todos, contas do Porto, mas que
desembolsara ele só, afinal. Bem feito! ninguém o mandava ser burro. – Arre!
cavalgadura!
E dava patadas no chão, cada vez
mais furioso, apopléctico.
– Mas a bem dizer, tudo isso é
nada! – continuou comovido o Antunes. – Ó senhores! e a figura que eu fiz...
sim, a figura que eu fiz naquele intervalo do drama para a farsa?!...
Todos desataram a rir, tinha sido
fresca... Ele sempre acontece cada uma! E relembravam – levantara-se o pano
quando os ouvintes menos o esperavam. Os que tinham saído lá fora, às doceiras,
voltavam apressadamente com os cartuchos na mão, ensacando os rebuçados. Ia um
rebuliço pela plateia. Na “galeria dos camarotes” para onde só iam senhoras,
gente fina, começavam a aparecer caras barbadas de sujeitos que iam saber – “que
tal” – perguntar se ia uma pinguinha de licor, um docinho. Em cima, na galeria
alta, criadas e raparigas do povo, debruçadas no parapeito, apontavam para o
palco, de olhar atônito:
– Ele que dianho é? –
perguntavam.
De baixo, da plateia, todos
faziam – chut! – voltados lá para cima:
– Caluda, sua gentalha!
No palco estavam todos
perfilados, trajando como na peça. O Freitas da Recebedoria com o seu fato de
Marco Aurélio; o Paula de cardeal, báculo em punho e a cara metida numa
estriga; o Fernandinho de menino de coro, todo lépido; a Ana Pisca muito
acanhada no seu fatinho de Olívia; a Margarida que tinha feito de anjo no
quadro final da Glória, em que ela subira num cesto vindimo à “região sidérea
dos astros”; o pai de Santo Antônio, em ceroulas e de saia branca pelo pescoço,
lívido como saíra do túmulo; aquela canalha da tropa, – todos enfim!
Nisto, entra pelo fundo o Teles
todo de preto, no meio do Melo vestido de Santo Antônio e do Proença
telegrafista que fazia de Frei Inácio. Avançaram. Embaixo, o Felisberto mandou
tocar o Hino da Carta à meia dúzia de músicos que não entravam na peça. O hino
rompeu com grande estampido de pratos, numa cadência fúnebre. No palco, tudo
imóvel.
Ninguém sabia o que era aquilo,
não estava no cartaz. Esquecimento do Fernandinho, talvez... pensavam.
Mas ao acabar o hino, o Antunes
da Câmara, com farda de centurião, durindana e botas de água, irrompe furioso
do buraco do ponto e prega um discurso na bochecha extática do Teles:
“Não era ele o mais competente,
decerto, o mais... etc. Mas tinham-no encarregado, obedecia... e tal. Só sentia
não ter frases, oratória, porque enfim estava falando a um poeta... –
colaborador do Almanaque de Lembranças para Portugal e Brasil – acrescentou
voltado para o público, esclarecendo. Enfim, finalmente... vinha para aquilo:
dar-lhe um abraço em nome de todos...” – e abraçou-o comovido, enquanto os
espectadores berravam apoiados, dando palmas
– “...e para isto” – acrescentou
fazendo com a mão que se calassem, que se calassem depressa.
Houve um sussurro de aplauso, dos
camarotes crianças gritavam – “ó Emilinha!” – Era com efeito a Emilinha, a
filha do Alves dos Pesos e Medidas, que saía também do buraco do ponto, vestida
de anjo, tules verdes e muita lentejoula a brilhar.
Ficou-se a olhar a plateia, imóvel,
muito fria, ensaiada, enquanto o Felisberto preludiava na flauta. Em certa
altura, num requebro doce da “melodia”, ele fez-lhe com a cabeça “que entrasse”,
e a Emilinha rompeu nuns guinchos, cantando a Flor do Campo, com música de
Muchagateira, original do Peres do Correio.
O Teles sorria, entre glorioso e
modesto, falando a Santo Antônio e a Frei Inácio: – “Era de mais, era de mais,
ele não merecia...” – “Ora essa!” pareciam dizer-lhe os outros – “seríamos
ingratos se...”
A “cantoria” acabou, o teatro
parecia desabar com palmas, tudo berrava, um ou outro cão latia. Senão quando,
os do palco desataram a rir, cosendo-se uns aos outros, fingindo um grande medo
de que as bambolinas do teto desabassem.
Todos olhavam, curiosos. E
naquela expectação viram de repente descer do alto, sobre o palco, agarrado a
uma corda, o Freixedas da Mercearia vestido de Lusbel, rubro e com chavelhos.
Cuidaram de estoirar a rir. Da boca muito inchada saíam-lhe faúlhas, do algodão
a arder que lá trazia dentro. Fazia caretas horrendas, arremedando Satanás nos
ímpetos de cólera. O pano começou a descer, oblíquo, esfarrapado de uma banda.
O Freixedas, suspenso, atirou fora o algodão e gritou, furibundo:
– Alto! suas bestas! Inda não!
Voltou-se de costas para o
público, e um letreiro que trazia de ombro a ombro dizia em caracteres amarelos
– C’est fini! – O pano desceu então, estabalhoadamente. Os espectadores olharam
uns para os outros, não tinham percebido... – Foi nesse momento que o Sr.
Antoninho, que tinha estado em Braga, traduziu de um camarote, em voz alta:
– É findo!
---
Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)
Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Sugestão, críticas e outras coisas...