Sr. Anselmo
(Perfil grotesco dum provinciano ilustre)
(Perfil grotesco dum provinciano ilustre)
Nasci em 74— eu, Teotônio
Mendes, de muito boa família.
Tenho,
portanto, atualmente (1906) trinta e dois anos.
A minha vila
fica entre serras, na vertente dum vale, e o calor ali aperta sempre muito.
Naquele verão
sobretudo (eu não sei se os senhores estão bem lembrados) no verão a que se
referem estes acontecimentos, mal se respirava. As fontes secaram; a vegetação,
sequiosa, sufocava sob ardentes nuvens de poeira, e as pedras nos caminhos
quase estalavam com o sol.
Horrível!
Há quatro
meses que não chovia. Moviam-se preces ao Altíssimo, celebravam-se procissões,
missas — ad petendam
pluviam — mas do céu afogueado e seco... nem pinga!
Cumulus de
trovoada, no horizonte longínquo, relampejavam em noites caladas, logo
desaparecendo varridos dum bafo morno de canículas.
Dizia-se,
farejando as alturas:
— Isto é que
vai ser! isto é que vai ser!
Os dias
sucediam-se no entanto ronceiros, bocejados, com um firmamento implacável, de
bronze, e a aflição da terra calcinada e triste.
O termômetro
de Anselmo continuava a marcar muitos graus. Este Anselmo, farmacêutico, grande
influente político na localidade, era com efeito uma figura curiosa e típica.
Inteligente, astuto, conhecido árbitro em questões de peso, dava as leis e
orientava a mentalidade sertaneja da vilota.
Mesmo os mais
orgulhosos e independentes, senhores do seu nariz, sofriam a sugestão
infalível daquela poderosa vontade.
— Ali, na
Turquia... — dizia por exemplo ele.
E tinha a
gente a impressão de que a Turquia era ali mesmo, a dois passos, que podíamos
lá chegar se quiséssemos, — a pé!
Anselmo
todavia nunca viajara. Perdão! foi uma vez a Lisboa por três dias, e viu a
Galvani no Coliseu.
— Que tal?
perguntaram-lhe, quando voltou.
— Um rouxinol!
Já essa noite
no clube, o fidalgo da Vela, homem na verdade muito entendido de música,
recomendava:
— -É preciso
ir a Lisboa... à Galvani. Diz o Anselmo que é um rouxinol.
Geradas nas
bitesgas do seu cérebro e reveladas depois a um círculo de amigos no cantinho
da farmácia, as suas ideias extravasavam cá por fora, caudalosas, engrossando,
impondo-se, fazendo opinião. Alvitre que trouxesse marca de tão abalizada
procedência, dava sempre coisa que se visse, convertia-se logo em
realidade: fosse uma árvore, um baile, o itinerário num cortejo, um espetáculo
— um urinol.
Casado, sem
filhos (e sem esperanças já agora de os fabricar) Anselmo professava pela
esposa um amor e um respeito inconcebíveis. Se alguém diante dele referisse fatos
menos edificantes ou alarmasse a assistência com a nova dalgum moderno
escândalo em supuração, comentava ruborizado e colérico:
— Deboche!
Indecência! Quem quer mulher arranja-a, mas casa-se, que é o que todo o homem
limpo deve fazer.
Ela, a D.
Ermelinda, correspondia a essa louvável demonstração de bons sentimentos da
parte do marido, com uma dedicação sem limites, a que a sua enorme fealdade —
uma "fealdade específica", como diz Camilo — prestava fiança idônea.
Além do
termômetro havia também na farmácia um barômetro. E todos os dias
amigo Anselmo informava a vila e arredores com aquele rigor meticuloso,
científico, aquela probidade verdadeiramente espartana, que era um dos
ornamentos hereditários do seu caráter...
Ninguém saia
da terra, ninguém projetava uma viajem, um passeio, que não fosse primeiro
consultar o Anselmo:
— Que diz
você?
E Anselmo, do
alto da sua importância quase divina, resolvia:
— Pode sair,
homem; vá descansado que não chove.
Ou então:
— Deixe-se
ficar; o barômetro desceu e temos água.
Sei até de
pessoas que atribuíam tamanha autoridade a Anselmo em assuntos meteorológicos,
que havendo resposta negativa chegavam a observar-lhe:
— Demônio!
Faz-me tanta falta agora não poder sair... Se isso fosse coisa que se pudesse
arranjar, Sr. Anselmo...
Ele não se perturbava,
não achava aquilo demais, respondia:
— Tenha
paciência, homem, resigne-se; para outra vez será. Tenha paciência.
Quem é que
sentia frio ou se queixava de calor enquanto Anselmo não manifestasse que sim,
que estava calor ou que havia frio? — Anselmo batia o dente? Venham os
jaquetões, os agasalhos, os capotes... Anselmo transpirava? As janelas logo se
abriam e largavam-se os cobertores, as braseiras...
Não era só
respeito — era medo!
Nessa altura,
por exemplo, o boticário decretara que havia um calor excessivo. Toda a gente
entrou a dizer que era demais, que uma tal temperatura se não aturava, uf! que
havia um calor excessivo...
Certo dia
Anselmo lembrou na farmácia que "talvez andando nu...". Pois
surpreendi gente digna, disposta a seguir-lhe o conselho, quase a pôr-se como
ele dizia...
Pela uma hora
Anselmo examinava o termômetro (chamava-lhe: a coluna) primeiro à sombra, metodicamente,
em seguida aos raios diretos do sol, na soleira da porta.
Freguês que
após esta operação penetrasse na farmácia era antes de mais nada avisado
pelo Anselmo dos graus que atingira a temperatura ambiente:
— Já sabe?...
30 à sombra e 50 ao sol!... É de rachar!
Depois é que
aviava a receita limpando o suor da pescoceira ao mesmo pano com que enxugava
as garrafas dos remédios.
A notícia
circulava rápida. Perguntava-se por hábito:
— Já viu o
termômetro? Quantos marcará hoje o termômetro do Anselmo?
E aí por volta
das duas já se sabia, já constava cá por fora:
— Então hoje,
hein? 30 à sombra e 50 ao sol no termômetro do Anselmo!
Desapertavam-se
os coletes...
De fato, desta
vez tinham razão. Havia umas horas no dia em que as ruas ficavam desertas, só
as moscas e as abelhas faziam o seu giro zumbidor. Dos canos e das valetas onde
levedavam detritos, subiam no ar quente exalações pestíferas. Eu esperava o
correio com ansiedade, por causa dos jornais, as janelas do quarto
entreabertas, o pavimento borrifado com água; ali me conservava naquela meia
penumbra, estirado na cama, de papo para o ar... e nu, consoante o Anselmo
preconizara.
Saia só à
noitinha, que refrescava um pouco, quando a vila se punha a respirar às portas
das lojas, ou passeava em grupos pelas estradas, os homens de chapéu na mão e
as senhoras de vestidos claros, muito lânguidas, com as blusas desbotadas nos
sovacos — da transpiração diurna.
Foi por essa
época que eu recebi a carta do meu amigo Felizardo — Felizardo Antunes Vieira
Leite, do Porto — convidando-me a ir passar com ele uma temporada numa quinta
do Minho, para onde partia nesse mesmo dia com a mãe, uma senhora respeitável
que desejava muito conhecer-me.
No verão iam
sempre para lá, dois meses, a regalarem os pulmões viciados do ar urbano e a
vigiarem de perto as colheitas naquela quadra mais intensa da vida agrícola.
Adorável
amigo!
Acabei de ler
a carta e ergui-me dum pulo. Abri as janelas de par em par, para que a luz
entrasse amplamente. Depois puxei os gavetões e pus-me a atacar de roupa a
minha maleta de viagem. Porque eu ia viajar, senhores! Eu ia enfim ver esse
Minho pitoresco de que ouvira sempre falar com tanto entusiasmo.
Fui ao
telégrafo e expedi para Dr. Vieira Leite o seguinte aviso: "Chego
amanhã".
As delícias do
progresso!
Jamais
apreciara como nesse jovial momento esta coisa cômoda e vulgar que se chama — o
telegrama. E a descer as escadas dos correios eu ainda vinha a parafusar nas
belezas da Civilização, — contente, reconhecido...
De passagem,
porque me ficava a caminho, entrei na farmácia. Nunca me dobrara em contumélias
aparatosas de adulador ante a figura severa do boticário. Nunca balançara com
mão subserviente o turíbulo da Fama com que a vila usava incensá-lo. Digo isto
sem a menor sombra de prosápia e sem querer censurar ninguém, — apenas
para estabelecer a verdade.
Eu sou um
apóstolo da Verdade!
Mas que razões
me dera Anselmo que justificassem, até à data, a minha frieza, o meu desdém,
quase? A valer, nenhumas! Ficar-me-ia mal, portanto, que eu tivesse desta vez
uma atenção e pondo de parte caprichos, orgulhos, lhe perguntasse muito
cortesmente se queria alguma coisa "para esse Minho"?
Anselmo estava
só, absorvido na laboriosa manipulação duma pomada. Um enxame de moscas pousava
na gaze suja que revestia o candeeiro de metal suspenso do teto fuliginoso; e
atrás, sobre o pano fundeiro, lia-se no vidro fosco duma porta interior esta
palavra em letras gordas debaixo dum emblema galênico:
LABORATÓRIO
Avancei,
anunciei-lhe o objeto da minha visita. O boticário ergueu a fronte majestosa,
reconheceu-me, e mergulhando de novo no trabalho, rosnou por entre dentes:
— Boa viagem!...
Aquilo
vexou-me; não eram formas de corresponder a uma delicadeza. Vai não vai estive
para lhe dizer das boas, das fortes, — das minhas...
Mas não pude.
Não sei porquê, mas não pude.
Dei umas
voltas fora do balcão, meio acobardado, com um terror supersticioso que não me
deixava falar, nem me permitia arredar pé.
Coisa
esquisita!
Baralhavam-se-me
as ideias e, na confusão mental em que me via, uma só coisa me preocupava
impertinentemente: se aquele Anselmo, aquele pigmeu! teria realmente alguma
influência no destino das chuvas, do vento ou das trovoadas?
Admitida a
hipótese, podia muito bem, querendo, vingar-se de mim. Que mais não fosse senão
uma telha despenhada do alto dum prédio, no sopro duma rajada acintosa, sobre a
minha cabeça ímpia.
Mas... — protestava
uma voz do fundo de todo o meu ser angustiado — o Anselmo, que pisava
linhaça, que eu via ali na minha humana presença a fazer pomada!? Insensata
apreensão, pueril receio, que o falso, infundado prestígio de semelhante
figurão, exercendo-se sobre o meu espírito num inexplicável momento de fraqueza,
havia logrado produzir!
Ah! mas a
desforra ia ser tremenda! Eu ia resgatar, num gesto nervoso e varonil, a
liberdade de pensar e de proceder de toda uma pequena aldeia de fanáticos,
mostrando na hora augusta da emancipação, à luz da evidência e da sutil
análise, o que esse insignificante valia por dentro — como homem e como
divindade!
Mas de novo
uma dúvida, um vago temor se interpôs ao meu intento, quebrando-me as forças,
jugulando-me, — nem que alguma poderosa mão invisível estivesse ali sobre mim
suspensa e pronta a estrangular-me à primeira voz.
— Ora esta!
murmurava eu mentalmente, ora esta!
E passados
instantes, tornando a olhar o boticário, que continuava indiferente e mudo a
esmagar com a espátula, sobre um pedaço de mármore polido, uma pasta
esbranquiçada e fedorenta, perguntei-lhe com a mais cariciosa das maneiras:
— E que me diz
o meu amigo do tempo?...
Ora! foi uma
beleza: um milagre! Levantou de novo a cabeça, que me pareceu agora aureolada, e
encarou-me. Tinha estampada no rosto a surpresa que a pergunta lhe causara.
Vi-o sorrir; e mirando o barômetro (ou o termômetro: não sei...) veio até mim,
afável, meigo, aliciador. Percebi que ia ter uma resposta, significando talvez
o beijo tácito da reconciliação. Eu ia confraternizar com Anselmo, abraçá-lo,
entrar-lhe na intimidade... Que bom! Que pechincha!
Nessa altura
porém, um sujeito baixo, agitado, nervoso, investe porta adentro com os braços
no ar, exclamando:
— Ó Anselmo! ó
Anselmo! você já viu? você já sabe?
Fitamo-lo
surpresos.
Era o Menezes,
jornalista, que assim vinha estragar a doce situação.
— Que é,
homem, que é?!... Conte lá, desabafe! disse o boticário sem encobrir o seu mau
humor.
E o outro, com
muitos gestos, esbaforido:
— O ministério!
caiu o ministério!
E sentou-se
por já não poder.
Anselmo largou
a espátula:
— Que me diz?!
— Olhe,
veja!... — murmurou sufocado.
E estendeu-lhe
um papel, um telegrama, aonde vinha tudo explicadinho: "ministério em
terra, chamado João Franco, parabéns." Não era preciso mais!
Anselmo ficou
sem ar. E o Menezes, outra vez muito excitado, ia e vinha da porta ao balcão,
do balcão à porta, a rir-se, transtornado da cabeça, doido com a história.
— Até que
finalmente, dizia, ora até que finalmente: o João Franco! Ó Anselmo, ó menino,
mas você já pensou bem no caso? O João Franco!
E esfregava as
mãos de contente.
— Agora é que
se vai ver o que é governar às direitas; agora sim, é que se vai ver o que é
governar!
O boticário
quase não queria acreditá-lo. "Ficara banzado!" E o Menezes,
vociferando:
— Corja! Os
outros por pouco que não põem o país a saque! Tudo a comer, tudo! E eu, e você,
e os mais, — os que trabalhamos — a pagarmos para aqueles piratas!
Anselmo sorria
benévolo às considerações acerbas do jornalista que prosseguia irado, numa linguagem
perversa:
— Súcia de
gatunos! Pulhas! Pulhas!
E já
frenético, em altos gritos:
— É bem feito,
é bem feito: rua! É bem feito!
Começou a
juntar-se povo, garotada, a quem o Anselmo, vindo à porta, enxotava,
explicando:
— Que é? que é
que vocês querem? Foi o ministério que caiu... Vão-se embora!
Um dos garotos
porém, mais curioso e atrevido, foi a espreitar para dentro, pelos
vidros da outra porta, — a ver se via o ministério no chão...
A Anselmo
continuava no entanto a afigurar-se-lhe aquilo um sonho. Assim tão de repente,
sem se falar em nada, sem ameaças de crise... Não seria balela?
O jornalista
então pôs-se a raciocinar: Qual! era lógico; o Hintze fartara-se lá de fazer
asneiras, e antes dele toda a gente sabia que quem governava não era o Zé Lucyano:
era a mulher.
Tomou fôlego,
prosseguiu:
— Quando aí
veio o imperador da Alemanha, e a rainha Alexandra, e o outro... (fez um gesto
com o polegar na direção da raia) o de Espanha, nem sequer tínhamos um
presidente do conselho em termos de se apresentar! Uma vergonha!
Cuspinhou,
bateu com a bengala, consultou o relógio. Era tarde.
— Olha o
Teotônio! Você aí! — disse, dando por mim. — Desculpe, não tinha reparado...
Então que diz a isto?
— Eu?...
— Sim, que diz
você a isto?
Encolhi os
ombros, sem responder, verdadeiramente embaraçado. E ele:
— Nem de
encomenda, meu caro, nem de encomenda! O João Franco nestas alturas foi a sorte
grande para o país!
Estendeu-me
dois dedos a despedir-se; e quando se retirava:
— É verdade, ó
Anselmo, você agora volta outra vez lá para cima, para a câmara. Creio que
agora...
— Qual câmara
nem qual carapuça, opôs o farmacêutico, modesto — o que eu quero é que me
deixem. Têm aí muita gente...
Menezes não
via, não achava:
— Muita gente!
Aonde?...
Foi então que
eu, Teotônio, julguei oportuno intervir:
— Se me dão
licença, direi que sou também do parecer do amigo Menezes...
— Diga, diga!
aprovou este.
— É impossível
na verdade encontrar por todo o concelho quem, como o Sr. Anselmo, seja capaz
de desempenhar com tanta capacidade e proficiência o papel de presidente
do município.
— Apoiado!
— Haja em
vista, — justifiquei, voltando-me para ele, — o que vossa excelência fez da
outra vez por ocasião da greve das leiteiras!
— Ora, ora...
— desdenhou Anselmo.
— É a verdade,
é a verdade! aplaudiu o Menezes. — Está na memória de todos. De todos! —
repetiu, aprumando-se, nos bicos dos pés.
— Andava-se
aterrado, continuei, como na véspera dos grandes acontecimentos. Dizia-se que
ficaríamos sem leite na vila por uns poucos de dias!
— Um alimento
de primeira necessidade... — avolumou o jornalista.
— Vai então o
Sr. Anselmo, num abrir e fechar de olhos, resolveu. Lembro-me como se fosse
hoje da memorável sessão a que assisti e em que vossa excelência sossegou a
população, declarando que uma greve dessa natureza seria para temer se em vez
de ser feita pelas vendedeiras de leite, fosse feita pelas próprias vacas...
— Sim
senhor... — confirmou o Menezes. — Lembro-me perfeitamente; eu também lá
estava. Por sinal que estreei um fato nesse dia...
— Enfim,
rematei, e quantas coisas mais!? A quem se deve por exemplo o melhoramento
entre nós do carro do lixo?
Menezes
coadjuvou-me, indicou o boticário:
— A ele!
— A quem se
deve a construção do coreto na Praça Nova?
— A ele!
— A quem se deve
a compra dum irrigador para o hospital civil?
— A ele! a ele
só!
— Ó senhores,
pelo amor de Deus! confundem-me! — bradou o boticário realmente confundido,
levando as mãos ao crânio — Eu sou um humilde trabalhador, com desejos de
acertar, de bem servir a minha terra e os amigos. Nada mais!
— Esse
pouco...
— Mas quanto a
política, francamente, confesso — estou farto; estou farto dela até aos olhos!
— Isso diz ele
agora, isso diz ele agora, murmurou o Menezes, piscando-me o olho. — Olha quem,
o régulo!
Depois,
despediu-se; chegou mesmo a descer o passeio; mas voltando atrás afogueado:
— Ouça lá,
Anselmo, e hoje? o termômetro?
Anselmo foi
verificar. Inclinando para o solo o dedo indicador, hirto, num gesto
onipotente, informou:
— Desce!
— Ah! Ótimo...
Assim era duma pessoa morrer!
E muito
meneado, o jornalista lá se foi de vez a semear notícias.
Dispus-me
então a comentar o caso a sós com o Anselmo. Do seu facundo e preclaro espírito
viria até mim, triste mortal, o bom conselho, a opinião autorizada e justa...
Ministério em
terra, o João Franco inesperadamente no poder... Era com efeito um extravagante
acontecimento.
Eu nunca fora,
porém, um político interessado. A dizer a verdade, não sabia mesmo se
aquele fato, na aparência sensacional, representava uma vantagem ou um
inconveniente para o país. Não me encontrara jamais inclinado para estes ou
para aqueles. A ser um franquista, um progressista ou um regenerador, preferia
não ser coisa nenhuma — que é para o que eu me sinto realmente com vocação...
Naquele momento
todavia achei o João Franco simpático. Decerto vinha animado de bons
propósitos, decerto; e era um homem rico, o que — seja dito de passagem —
significava uma grande segurança para a inviolabilidade do Tesouro... Menezes
tinha razão.
Todas estas
considerações eu aduzi a Anselmo, que me fitava e sorria satisfeito.
— Mas por que
cairia o Hintze? indaguei.
Anselmo
torneou o balcão, veio dizer-me ao ouvido:
— O rei,
entende? que tem um medo dos republicanos que se fina (isto aqui para nós) e
quer lá no poder um homem de envergadura, um homem que os tenha no seu lugar,
ora entende o senhor? Para isso, ninguém mais nas condições de que o João
Franco. O João Franco é um valente! Se lhe constar, verbi gratia, estando
aqui, que lá fora a uma esquina há um homem com um cacete à espera dele —
acredite — é quando lá passa mais depressa. Olha quem!... Nem o Bismarck!
Eu ia
acompanhando com interjeições o caloroso panegírico do ministro. E quando
Anselmo terminou:
—
Efetivamente, o João Franco...
Anselmo
benzeu-se:
— Ah! meu
amigo: é um colosso!
Fez-se
silêncio. O boticário acondicionava numa caixinha a pomada preparada.
Assoou-se. Escreveu um rótulo e colou-o na tampa, a assobiar o hino da carta.
— Diga-me uma
coisa, inquiri; o Menezes não era progressista?
— Era; mas
passou-se para os nossos há de haver um mês. É um convicto.
— Parece.
— E brioso; um
cavalheiro.
— Parece.
— Ali o Souto
dos telégrafos mijou-lhe um dia fora do testo...
— O Souto? Ah!
sim... Mas esse é um trampolineiro!
— É. O Sr.
fala-lhe?
— Às vezes,
por cortesia...
— Pois uma
ocasião teve o descaramento de afirmar, no clube, diante de quem o quis ouvir,
que um artigo que o Menezes publicara não era do Menezes e que era... sabe o
senhor de quem? imagine! — do Navarro, do Emídio Navarro!
— Patife!
— ... que
tinha vindo nas Novidades já não sei há quantos anos, e que o
Menezes o fora copiar, alterando apenas ligeiramente a forma.
— Patife!
patife!
— O Menezes,
mal aquilo lhe chega aos ouvidos — ele que é um esturrado! — agarra num
vergalho e onde encontra o Souto prega-lhe uma destas coças...
— Bem feito.
— De manhã já
o Menezes aqui me tinha dito a mim, furioso: "Juro-lhe, Anselmo, que
onde encontro aquele tratante, quebro-lhe um corno". — Se bem o disse
melhor o fez: vai e quebrou-lho.
— Anda-me.
— No domingo
imediato, quando tudo supunha a questão arrumada, zás: sai o jornal? Eu cheguei
a saber aquilo tudo de cor, homem!
Concentrou-se,
os olhos fechados, a mão na testa, a ver se se lembrava.
E com pesar:
— Já não vai;
paciência!
— É pena.
— Mas digo-lhe
o final, descanse, que esse é daqui... — e beliscava o lóbulo da orelha. Então,
o braço estendido, em atitude declamatória, o polegar e o índice aplicados num
gesto precioso, recitou, com uma pontinha de malícia nos olhos: "Diz D.
Basílio que da calúnia alguma coisa fica. Não tememos, porém, etc., etc.,
etc..." Repare agora: "Os aleives resvalam na consciência dos justos
como zagalotes no aço." (Anselmo sublinhava: como zagalotes no aço...).
"Todo o mundo sabe que só usamos o que nos pertence..." (Piscadela de olho do Anselmo)
"Não costumamos botar figura com coisas alheias: o dinheiro dos amigos ou
as joias das amantes: Meneses dos Santos".
— Isso é
medonho! comentei.
Enquanto
Anselmo repetia, vibrante de entusiasmo:
— "O
dinheiro dos amigos ou as joias das amantes"! Refere-se à mulher do
notário... Genial! genial!
Rimos depois
muito, com aplausos efusivos ao jornalista e censuras ao procedimento do Souto,
que fora indecente.
A conversa
decaiu. Anselmo bocejava. Eu peguei num jornal, percorri-o com a vista,
distraído.
— Então sempre
vai amanhã? perguntou-me.
— Sempre vou
amanhã.
— Pois o tempo
está firme. A coluna desceu, mas descanse que não há de haver
novidade. Isto conserva-se.
Bateu-me no
ombro palmadinhas amigáveis:
— Pode ir
descansado...
— O Sr. Anselmo
não quer para lá nada? — perguntei.
— Não; quero
que tenha muita saúde.
Fitou-me
carinhosamente:
— E veja se
engorda, coma-lhe! Parece que anda magro, homem... Dê cá um abraço.
Estreitá-mo-nos
peito com peito. Éramos dois amigos velhos... Comovi-me; e visto que se faziam
horas de jantar, segui rua abaixo.
— Até à volta!
— Até à
volta!...
O sol
abrasava. Quando dobrei a esquina, olhei. O boticário tinha vindo à porta,
dizia-me adeus de lá, — com a mão...
***
Anselmo estava em Nagosa,
fazendo a vindima, quando se declarou em Lisboa o movimento revolucionário de
outubro.
Tinha vindo
nesse momento de baixo, do lagar, aonde meia dúzia de homens hercúleos, de
calça arregaçada e pernas ao léu, roxas como canelas de perdiz, pisavam a uva,
dançando ao som de ferrinhos e de adufe uma dança bárbara, grotesca, entre
uivos e assobios.
O filho mais
velho do caseiro fora a Moimenta pelos jornais e por tabaco, e a
encomendar a carne do dia imediato, que era dia de matança na vila.
Não devia
tardar.
D. Ermelinda
arranjara a ceia: uma ceia de caldo verde e sardinhas assadas, raras naquela
região e muito frescas, — nem que Nagosa fosse um braço de mar e as houvessem
ali pescado nesse instante... No fim, para assentar, chá, — um chazinho de
cidade, louro e aromático, dando a nota apurada da civilização após
aquele menu de cavadores.
Viera a criada
erguer a mesa, dobrando a toalha cautelosamente para não espalhar as migalhas
pelo chão, quando chegou o portador de Moimenta com a notícia de que estalara a
revolução em Lisboa. A notícia era vaga e incerta, sem pormenores, porque não
havia jornais nem o telegrafo funcionava; um caixeiro de amostras chegado de
Lamego essa madrugada, em diligência, espalhara a novidade e dissera que
Lisboa, a essa hora, era um mar de sangue!
Desde o assassinato
do rei que Anselmo sentia um forte desanimo por tudo isto... D. Carlos, tipo de
sibarita sem escrúpulos, inteligente, mentiroso e gabarola, fora a última trave
que ruíra do desmantelado edifício monárquico. A sua morte, cuja forma, ele,
Anselmo — homem de processos sóbrios — veementemente reprovara, deixara o país
em alvoroço, debatendo-se nas garras duma agonia cruciante, mal amparado por
gente tímida, com um rei no trono "que não era rei nem era rainha",
figurita débil e epicena de maricas.
— Havemos de
ir longe! profetizava com melancolia.
A nova da
revolução na capital, trazida assim, de súbito, àquela hora da noite, por um
lábrego analfabeto, a um lugar sertanejo e ignorado, não o surpreendeu
portanto, mas encheu-o de ansiedade e sobressalto. — Qual seria o resultado de
tudo aquilo? Venceria o governo? Venceriam os insurrectos? E depois: a
intervenção estrangeira?...
Um calafrio de
susto percorreu-lhe a espinha dorsal ao pensar nisso, nos horrores duma
carnificina e dum saque. Viu-se desapossado dos seus bens, violentamente, à
coronhada; viu-se escorraçado, preso, fuzilado a uma esquina! Ele estava
disposto todavia a declarar, sob sua palavra de honra, que embora tivesse
militado no partido franquista, não tinha a mínima sombra de responsabilidade
no indigno decreto de 31 de Janeiro...
— Com que
então Lisboa é um mar de sangue? perguntou de novo ao seu rústico informador,
como para certificar-se de que não delirava. E confirmada a notícia, comentou:
— Pois bem... Nós cá não temos nada com isso; lá é com eles. Acima de tudo o
que eu sou é patriota. República ou Monarquia tanto se me dá; o que é preciso é
haver quem nos governe. Boa noite!
Havia lua
cheia.
Anselmo antes
de se ir deitar saiu para o terraço da casa a respirar um pouco, à vontade. Arrotou.
As sardinhas vieram-lhe à boca. Murmurou arreliado: — "A mania de
comer a esta hora há de acabar."
O arzinho do
campo, porém, reanimou-o, fez-lhe bem, descongestionou-lhe o rosto afogueado.
Sentou-se num
banco, à fresca, de colete desabotoado e a fumar.
De dentro,
através duma janela aberta, a voz de D. Ermelinda vibrou esganiçada:
— Anselminho,
olha a bronquite!
Não respondeu.
A noite estava um encanto! Um luar muito claro punha em relevo as silhuetas da
paisagem larga, beiroa, de vegetação sombria e de penedia hirsuta. Os cães
ladravam na quinta. Milhões de estrelas cintilavam no céu opalino, levemente
ofuscadas pela alvura do luar...
Murmurou,
regalado:
— E é que já
daqui não saio, enquanto a coisa se não decidir...
A 5 de Outubro
estava a República definitivamente proclamada em Portugal, sabendo-se da nova
em Nagosa quando o vinho de Anselmo começava a ferver nas dornas.
De tarde
Anselmo foi à lagariça para calcular com a vista a importância da colheita. Bem
boa! Sabia-se que em Moimenta os republicanos tinham já içado na casa da Câmara
o pavilhão revolucionário; ia um delírio na população. E o brasileiro de
Cabaços deitara meia dúzia de foguetes que se viram perfeitamente de Nagosa
subir e estalar no ar, deixando uns novelos de fumo branco, por momentos, no
azul do céu e no ouro vivo do sol outonal.
Anselmo
debruçou-se sobre o lagar, farejou o mosto, teve um sorriso feliz de proprietário
favorecido, e chamando o caseiro:
— Ó Jose, o
vinhito este ano parece-me bom, hein?
— Parece que
sim, meu padrinho...
Era afilhado.
— A uvazita
fundiu... dizias que não.
— Houve mais
que eu sei lá!
— Pois sim,
mas...
Não concluiu,
não explicou o que queria dizer na sua.
Tirou do bolso
a tabaqueira, um livrete de mortalhas; ofereceu uma na ponta dos dedos ao
afilhado; deitou-lhe na palma da mão calosa duas pitadas de tabaco francês;
limpou depois ele próprio as mãos sujas do rebordo da dorna a que se agarrara,
a umas palhas que ali topou a jeito, e pôs-se a fazer um cigarro, trauteando
a Portuguesa.
O primeiro
desgosto sério que ele sofreu depois da República, foi com a lei da Separação.
A mudança de
regime, como Anselmo a entendia, resumir-se-ia a abolir a realeza, causa
imediata e suficiente de quantos cataclismos e desgraças assoberbavam este
pobre país. O resto era pó, ou melhor, era ódio, vingança, perseguição,
fanatismo. Impressionara-o bem, ao começo, o fato de serem os próprios
miseráveis, os pobretanas, os maltrapilhos, quem guardara, nos dias da
Revolução, os bancos e as casas da gente endinheirada. Mas a questão da
bandeira, logo a seguir, a picuinha de substituírem as antigas cores
constitucionais pelo vermelho e pelo verde (há quem diga que Anselmo sublinhava
a palavra verde com intenção maliciosa; talvez) começou a
indispô-lo, a irritá-lo. De mais a mais havia gente insuspeita a condenar as
novas tintas! E os olhos sinceramente se lhe arrasaram de lágrimas quando viu
tremular no edifício da câmara municipal da sua vila (da sua vila!) o hediondo
trapo republicano.
Aos primeiros
dias de harmonia e de entusiasmo começaram a suceder-se no país, pouco a pouco,
outros, menos tranquilizadores e festivos. Tinham-se efetuado prisões,
demissões; surgiam ali e aqui desacordos, antipatias, notas desafinadas no
geral concerto; havia descontentes; principiava a falar-se vagamente de
conspiradores. O capitão Paiva Couceiro saíra para Espanha, agressivo, no
intuito de organizar um exército restaurador da monarquia. Os padres, dizia-se,
tinham o povinho ignorante das aldeias na mão, e era só dizer-lhe: —
"Vamos!" tudo marcharia à uma sobre as cidades e daí sobre
Lisboa, engrossando, rolando, com a força duma vaga e o barulho dum trovão!
O Governo
Provisório, sorrindo desdenhosamente, tomava no entanto as suas medidas de
defesa, ordenava prevenções rigorosas nos quartéis. As redações dos jornais
monárquicos eram assaltadas por magotes de homens armados e coléricos que
partiam o mobiliário, empastelavam o tipo, espatifavam as maquinas de
impressão, pondo tudo em fanicos, pelas janelas, no meio da rua.
E foi numa
altura destas, num estado assim de insubordinação e de efervescência, que o
governo se lembra de perseguir os bispos!
Anselmo
indignava-se:
— O país é
católico, dizia, o país é católico e não pode permitir semelhante
arbitrariedade! É um atentado contra a religião de cada um.
Alguém lhe
ponderou que não, que o governo não pensava em perseguir ninguém; que não era
esse o espírito da lei; que o Estado o que não devia era apadrinhar esta ou
aquela religião. Eu mesmo, Teotônio Mendes, republicano hereditário,
apoiei com certa autoridade e firmeza estas sensatíssimas explicações.
— Cale-se!
vociferava ele, exaltado, dirigindo-se-me; cale-se, que não diz se não
asneiras. A República tem de ser tolerante se quiser viver! Os jacobinos, os
carbonários como o senhor, não conseguirão por mais que se esforcem abafar os
protestos da opinião pública; e a opinião pública está abertamente com a
Igreja. Com a Igreja, fique-o sabendo!
Todos nos
calávamos. Anselmo limpava a fronte donde o suor porejava.
— Podem-me
prender, se quiserem, que eu direi sempre a verdade. A verdade é só uma!
E cheio de
provas, revoltado:.
— Admite-se lá
que se tire assim o pão a tanta gente, que se lance na miséria tanto português,
tanto padre com mulher e filhos... perdão (emendava): com família numerosa.
Em volta houve
um silêncio aprovativo.
Tudo mudara,
na verdade...
Um dia,
Anselmo andava passeando na farmácia, as mãos atrás das costas, a meditar
no futuro do país. O barômetro marcava tempo seco — e lá fora chovia! A coluna indicava
uma temperatura alta, e Anselmo tinha a certeza de que era falso. Aquilo queria
dizer que andava tudo às avessas, que ninguém se entendia neste país, que a
indisciplina reinava — até no tempo!
Não havia
doentes: há 15 dias que o movimento farmacológico era insignificante. Assim, a
própria ociosidade colaborava nos acontecimentos, gerando nos cérebros ideias
insubmissas...
— Vossa
excelência é que é o Sr. Anselmo Nogueira? — perguntou a meia voz um
desconhecido que entrou, descobrindo-se.
— Eu mesmo em
carne e osso. Ponha o seu chapéu. Que deseja?
Mas logo,
reconsiderando, medindo-o, fez pé atrás como quem desconfia do sujeito e se
prepara para se por a salvo, no caso de perigo.
— Não se
assuste, disse-lhe o recém-chegado, observando aquele gesto, — eu não sou quem
pensa... pelo contrário.
— Ah!
— Sou
dos fiéis.
Trago-lhe aqui uma carta da Galisa...
E levou a mão
ao bolso. Anselmo segurou-lhe no braço, pálido:
— Ó diabo,
espere... espere lá, tome cautela.
E foi à porta
espreitar. Não havia ninguém. Chovia.
— Tem a
bondade de entrar ali para dentro, indicou.
E encostando a
porta de vidro fosco do laboratório:
— Estou às
suas ordens, pode falar... Estamos sós.
Todo ele
tremia.
O outro
entregou-lhe a carta em que lhe pediam dinheiro para uma próxima incursão e lhe
perguntavam se poderia auxiliar, a coberto da sua seriedade insuspeita, um
pequeno contrabando de armas: pistolas e munições. Assinava a carta, em nome de
Paiva Couceiro, "um amigo da Religião e da Pátria."
Anselmo
gaguejou:
— Sim...
sim... dinheiro, talvez, mais adiante... Agora as pistolas, desde já lhe digo,
meu caro senhor, que as pistolas não... Escusam de contar comigo para
semelhantes aventuras. A minha casa é muito frequentada, tudo mexe e remexe...
não há esconderijos...
— Nesse
caso...
— Nesse caso,
o melhor é ir bater a outra porta. Do meu lado podem contar apenas com o apoio
moral.
O desconhecido
ia retirar-se desanimado. Anselmo deu-lhe uma esperança:
— Ah! olhe: e
estricnina e sal de azedas, à descrição...
O enviado
sorriu, agradeceu, despediu-se.
— Diga-me cá,
inquiriu ainda Anselmo interessado, com a mão dele apertada, — o nosso Paiva
Couceiro como ficou?
— Bem.
— E o rei,
tem-no visto?
Não o tinha
visto. Estava em Londres.
— Coitado!
aquele também... Quando calhar, dê-lhe lá muitos recados meus, sim?
O indivíduo
misterioso prometeu, saiu da botica.
— Ouça, ouça!
A Ermelinda, minha mulher, também se recomenda. E à D. Amélia. Diga-lhe que cá
os esperamos a todos, muito brevemente.
Fez-lhe uma
mesura aparatosa:
— Meu caro
senhor...
Uma vista de
olhos, rápida, furtiva, pelas janelas dos prédios fronteiros, a ver se alguém
teria dado pela visita, e tornou ao laboratório, ruminando o caso, arreliado
por se ter esquecido na perturbação que o invadira, de perguntar o nome do
tipo. "E a gente às vezes a supor que ninguém nos conhece, que não consta,
que se não sabe lá por fora! Ai Anselmo, ai Anselmo!..."
Tirou do bolso
a carta comprometedora, levemente amarrotada; acendeu um fósforo e ali mesmo,
antes de outra coisa, queimou-a, com prudência, reduzindo-a a cinzas.
O documento!
Nisto, uma
mulherzinha entrou na farmácia, a correr, sem xale, a pedir linhaça para o
Sr. administrador que estava a morrer com uma cólica.
Anselmo
estremeceu. Para o Sr. administrador? Fingiu que ia servir a mulher, e de
repente:
— Oh co'a
breca! esta agora! não tenho linhaça.
— Não tem
linhaça?!
— Não tenho.
Acabou-se-me.
— E agora?
— Agora...
deve chegar amanhã.
— Amanha!
Amanha pode o homem estar no outro mundo!
Anselmo sentiu
que as pernas se lhe vergavam àquela ideia homicida; ia trair-se, não podia mais.
— No outro
mundo?!
— Sim, no
outro mundo; se o Sr. o visse!
Anselmo,
porém, num abrir e fechar de olhos, raciocinou: "mas se este é dos tais
que a monarquia não poupa quando voltar; se ele está fatalmente condenado pela
revindicta... Deixá-lo ir já!"
— Pois tenha
paciência, santinha; onde não há el-rei o perde...
— El-rei!
exclamou a mulher, furiosa, voltando costas, de repelão, — o que o Sr.
precisava bem sei eu; não haver linhaça numa terra onde não há mais boticas!
Anselmo ainda
ouviu a mulher a distância, queixar-se para alguém, fazendo escândalo:
— É ali o
boticário que não tem linhaça; anda só a pensar na monarquia, o talassa, e
esquece-se das obrigações...
O epíteto de
talassa custou-lhe os olhos da cara; mas enfim, tudo eram sacrifícios pela Causa.
Mais tarde havia de saber-se e os juros viriam — se viriam! — com larga usura e
gratidão...
— Talassa!
Talassa!... — gritava a mulher.
— Pois
sim...
A incursão
falhou. Pela raia, em Vinhais, bandos de malfeitores assalariados tinham
tentado um simulacro de luta contra a existência do novo regime. Fugiram.
A notícia do fracasso voou por todo o país com rapidez. Anselmo soube-a de
manhã, na cama, pela criada, e já se não quis levantar. Adoecera. Queixou-se de
arrepios, gemeu, disse à mulher que mandasse vir o médico.
— E para a
farmácia, quem vai?
— Vai a
senhora, rosnou, de mau humor.
E abafou-se na
roupa.
O médico veio
e receitou: era intestino. Como republicano, falou do caso. Anselmo, mordido de
curiosidade, desejou conhecer toda a ação nos mínimos detalhes: quantos eram,
quem vinha, quem comandava e por último, convencido da derrota, da inanidade
daquele esforço ridículo, perguntou:
— E dos nossos, quem foi?
— Dos nossos?!
interrogou o médico, sem perceber.
— Sim, dos
republicanos: quem é que o governo mandou a correr aquela tropa fandanga a pontapé?
O médico, que
era um homem distraído, respondeu com indiferença:
— Não sei;
creio que ninguém; nem se pensou em tal, ilustre correligionário...
À tarde,
Anselmo pode sair. Não tinha febre. O intestino desatou a funcionar melhor e
nem foi preciso medicar-se.
— Mas que
ideia aquela, dizia ele, no clube, a uma roda de amigos embasbacados, — que
ideia aquela da restauração! São doidos!... A República tem, não há dúvida,
alguns defeitos, sou eu o primeiro a reconhecê-lo; mas tirem-se-lhe! O que
todos devemos fazer é trabalhar para que as novas instituições sejam aquilo
para que as criamos. — Não é isso, Teotônio? rematou, voltando-se para mim, que
o escutava transido.
E com
descaramento:
— Você tem-me
ouvido muita vez dizer isto mesmo; você sabe que eu já no tempo da monarquia
era tanto ou mais liberal do que você, que se tem por histórico.
Eu, moita.
— Você não
fala? não diz nada?
Afastei-me
prudentemente. Notei que ia rebentar de indignação contra aquele farsante;
mas ao mesmo tempo sentia — como sentíamos todos aliás, diante dele — que nem
que fizesse ou dissesse o dobro do que dizia e fazia, algum de nós teria a
coragem de o desmentir!
Assim se
consumou pois a adesão solene do Sr. Anselmo a República. Tudo o que veio a
seguir, greves, intentonas, zaragatas, a incursão de julho... tudo, numa
palavra, encontrou-o já pela frente, tão decidido e jacobino, ou mais ainda do
que aqueles que se gabavam de o ser. Logo que se organizaram os partidos,
Anselmo filiou-se nos democráticos. E o ódio ao padre, o horror ao padre, a
fobia do padre obcecava-o de dia e de noite.
Uma vez, um
dos ministros foi a Vizeu: pespegou-se lá, com o Teotônio e o administrador
(aquele administrador que ele quis matar) e o Menezes jornalista, que também já
era democrático.
Assistiu ao jantar, fez um brinde condenando o Clero, "esse Clero infame a
que pertencera, não se sabe porque caprichos da sorte, o célebre, o
liberalíssimo bispo daquela terra!". Falou depois de Viriato, e
terminou com um viva à República que atroou o vasto recinto do teatro onde o
banquete se realizava.
O ministro,
sensibilizado, ergueu-se para agradecer. Discursou pausadamente durante 20
minutos, empunhou a taça por fim, e pediu a todos que o acompanhassem e
bebessem à saúde de Anselmo Nogueira, "figura prestimosa da República,
homem de bem às direitas, livre pensador e companheiro fiel dos tempos da
propaganda. — Hip! hip! hip! Hurrah!".
As taças
tilintaram. Anselmo, carregado, chorou. E Teotônio, batendo com a mão no ombro
do administrador de Moimenta, segredou-lhe:
— Lá intrujou
o ministro, o patife! Companheiro fiel dos tempos da propaganda, ouviste? Que
desaforo!
O
administrador comentou:
— E livre
pensador, filho! Parece que o estou ainda a ver de lanterna e de opa na procissão
do Senhor dos Paços! O que é o mundo!...
Eu pus-me a
considerar, palitando os dentes.
— Então e nós?
indaguei por fim, despeitado.
— Nós? nós?
Essa agora! Nós não sairemos nunca da cepa torta, meu velho... Este Anselmo,
este farmacêutico, que ali vês recostado numa cadeira, é o modelo do político
português. Maioral no tempo da monarquia, maioral se vai tornando dentro da
República. Era de esperar! Pois se os monárquicos é que prepararam isto com os
seus erros, se eles é que deitaram a monarquia a terra, não achas justo que
quem plantou a vinha pense também agora em comer os cachos?...
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Fonte do texto: Project Gutenberg
Pesquisa, transcrição e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)
Pesquisa, transcrição e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)
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