Singularidades
femininas
Nesse domingo luminoso e inefável,
estava eu no campo, a que a primavera havia dado uma beleza nova, tendo surgido
por uma doce manhã dourada e espalhando flores por toda a parte, fazendo
estremecer as sebes das canções dos ninhos e dos buquês das espinhosas. Por
várzeas e pradarias desdobrava ela um longo manto de esmeralda picado de rosas
vivas e deixava cair das suas mãos nevados lírios e cachos de junquilhos em
cada canto da terra...
No meio-dia de maio todo louro do sol
que ascendia num céu infinitamente calmo e puro, fulgia em cada motivo de
aguarela um clarão de formosura nova; e os longes de serranias, que eu avistava
da janela do meu quarto, esfumavam-se, azulavam-se no horizonte. Já havia
miosótis, e as aragens mansas que passavam, sussurrando, vinham carregadas de
perfumes e de murmúrios. À volta da minha casa estendiam-se as terras de
cultivo, os pomares onde as laranjeiras e os pessegueiros vergavam de florações
duma cor de rosa muito fina ou duma brancura imaculada. Nas tiras de morangal,
errava já um cheiro de morangos maduros, e perto de um tanque escondido entre
desgrenhadas trepadeiras, uma mimosa ramalhava ao vento morno.
Em baixo, na cozinha, crepitava alegremente
a fogueira, enquanto as criadas, cantando uma cantiga triste, que falava de
naufrágios e de amores malogrados, iam fazendo o almoço, e ao longe, perto dum
lago, onde as águas verdes se encrespavam à brisa leve, todo toldado da sombra
fresca de faias e choupos, descansavam dois pastores, guardando os rebanhos que
pastavam na verde relva da lezíria. Uma paz suave penetrava a alma, e o
silêncio era tão profundo, que os mais fugidios ruídos ganhavam na atmosfera
lavada e sonora uma grande vibração.
— Ora aqui está um amável refúgio para
Horácio compor as suas odes — pensava eu. Se já houvesse uvas, se os cachos
pendessem das ramadas como topázios ou
como ametistas, o velho poeta latino encontraria certamente, na placidez deste
recanto de aldeia humilde, uma inspiração divina...
As abelhas zumbiam em enxames, pousando
nos renques de jasmineiros; escutavam-se os mugidos das manadas nos prados;
ressoavam idilicamente as canções perdidas, brandas e saudosas, e uma claridade
forte envolvia todas as coisas. A natureza renascia profeticamente, germinavam
as sementes e os ramos das árvores estalavam de seivas criadoras.
— E é que tudo isto parece copiado das Geórgicas, de Virgílio! — meditava eu,
com um livro de Björnson esquecido sobre os joelhos.
De repente, uma forte campainhada,
retinindo, veio quebrar o meu enlevo e uma voz conhecida, entrando na sala,
exclamou:
— Sabes? A Maria está doente. Foi ontem
mesmo, na varanda, ao cair da noite, quando regava os cravos, que sentiu uma
dor no peito... Levaram-na para a cama desfalecida e agora arde em febre!
Quem assim falava era o meu amigo Luís,
companheiro antigo, a quem me prendiam tantas recordações e tantas alegrias; e
Maria era uma encantadora rapariga que ambos tínhamos conhecido por um verão
quente, numa repousada praia de banhos. Era alta, de belas formas severas de
mármore grego, de corpo ondulante e nervoso, movendo-se lentamente num passo
altivo de deusa.
Os seus cabelos dum tom cendrado,
faziam--lhe um nimbo suave à volta da fronte, que mais relevo dava à sua
carnação delicada dum branco mate, levemente tocada dum tom de rosa pálida; e o
rosto, virginal e meigo, era iluminado por dois olhos imensamente azuis, mas
dum azul transparente. Quando nos primeiros alvores da manhã aparecia à beira
mar, fresca e sorridente, com um ar de perpétua graça e de perpétua pureza, de
boina de veludo negro na cabeça e um botão orvalhado nas rendas do corpete,
como era linda! O seu busto modelava-se impecavelmente sobre o fundo de safira
do céu e da água — e dir-se-ia ter saído das vagas ou das conchas. Evocava
então países longínquos, cidades do norte, terras distantes onde a beleza é uma
flor misteriosa. Os rapazes chamavam--lhe miss
Afrodite; — miss, talvez, pela alvura
incomparável da sua pele, pelo ouro rutilante dos seus cabelos anelados, pelo
cravo da sua boca vermelha; Afrodite, sem dúvida, pela rítmica airosidade do
seu corpo soberbo, que parecia feito de espumas congeladas!
Durante a estação inteira, ela foi a
elegância da praia, resplandecendo na sua esvelteza de Diana. O pescoço
delicado, tinha a graça do caule dum lírio emergindo das rendas e das taptistes. Organizava as pescarias, nas
noites de lua, com guitarras gemendo e os remadores tisnados do bafo das
maresias, os piqueniques ruidosos à sombra de árvores, em pleno campo, sobre os
trevos úmidos. Gostava de andar pelas campinas, entre as boiadas que a olhavam
com os seus olhos meigos e fundos, rolar-se no feno seco, e regressar à noite a
casa, cheirando ao aroma das boninas, ao hálito dos rosmaninhos e das violetas
silvestres, que mordiscava com raivas felinas, ou esmagava nos dedos afusados e
magros, onde rebrilhavam pedrarias de anéis. Os moços sentimentais faziam-lhe
versos, comparando-a ao jasmim do Cabo, à nuvem dourada, à palmeira no deserto
dando sombra às caravanas, porque neste ano romântico, ingenuamente pensávamos
ainda que os corações se deixavam seduzir pelo calor das estrofes líricas;
outros, os concentrados, seguiam-na docilmente, felizes se ela ria para eles; e
ainda outros, nos casinos, se Maria dançava, quebrando-se languidamente no
rodopio acelerado duma valsa de Strauss, desciam ao restaurante a afogar em
vinho do Porto as suas penas, onde não reluzia já ura fugidio fulgor de
esperança. Maria era cruel; tinha um jeito especial de receber as efusões
ardentes dos seus adoradores, crivando-os de ironias aladas e espirituais.
Com a pontinha do seu sapato de cetim,
pisava num desdém os corações e as rosas! Era bela, dessa beleza do norte,
quando, na sua cândida voz de cristal e ouro, dizia as sagas escandinavas ou as
czardas húngaras, que sempre falavam de noivados, ou as canções irlandesas em
que sempre se fala de pastoras tecendo rendas sob os castanheiros ou de
pescadores lançando as redes; e uma noite, numa soirée masquée, quando
ela apareceu no seu elegante costume de camponesa da Delecarlia, com a flava auréola
dos cabelos à volta da fronte, foi saudada com entusiasmo.
Luís, o meu amigo, era um dos apaixonados.
Ah! o cuidado que ele punha na sua loilette,
a gravata preta ressaltando dentre o colete de fustão branco, a quinzena de
alpaca florida na botoeira! Quando conversava com ela, havia no seu modo um
acanhamento que me surpreendia e um respeito que me encantava, porque o conhecera,
nos tempos do Liceu, estúrdio, palavroso, ligeiro e irreverente. E em muitas
horas de descrença, tive de aturá-lo, estirado sobre a minha cama, no cubículo
do hotel, chamando a morte, pedindo a morte, admirando a coragem dos suicidas e
preguntando-me, com um brilho de loucura nos olhos, se um tiro na fronte seria
muito doloroso. Para o sossegar, encharcava-o de sumo de limão e água com
açúcar, amesquinhando-o e chamando-lhe colegial idiota. E ainda me lembro muito
bem da tarde em que ele, entrando exaltado no meu quarto, me pediu que lhe
escrevesse uma carta.
— Mas uma carta com talento, hein? Uma dessas
cartas que fulminam...
— Sei! O que tu queres é uma espécie de
Cântico dos Cânticos, em que se entoem hinos à amada, em que Maria seja
comparada às íbis que atravessam o Nilo num voo alto, à estrela da manhã, à
pomba de Israel.
— Não, sóbria, muito sóbria, mas que
diga tudo. Por que, sabes? Foi esta manhã, no banho! Dei-lhe cravos rajados,
que ela adora...
— E em troca dos cravos, uma carta?...
— Aí estás tu! Olha que esta mulher
enche todo o meu destino, absorve-me, tenho-a no pensamento, no coração e no
sangue...
— Isso é amor de 1830, um absurdo, uma
coisa que já não existe!...
Mas escrevi a carta que ele quis passar
à sua esplêndida caligrafia, em papel do Japão, tocado dum hálito de aroma
raro. Maria respondeu, com simplicidade. Creio que começou a amá-lo, desde a
doce madrugada dos cravos; e oh! mistério do coração humano! volvido um mês,
Luís já zombava orgulhosamente, no meu quarto, chamando-me o Secretário dos
Amantes, porque, infelizmente, era eu o encarregado da correspondência.
Em outubro, Maria foi para uma quinta no
Douro com o pai — um velho de venerandas barbas, que nós conhecíamos pelo nome
de Hércules, pelo seu aspecto de atleta e pela maneira como arrastava a
bengala, uma clava de grande castão de ouro — e nunca mais a tornei a ver. Com
a sua ausência, a praia ficou deserta de graça e de claridade. As andorinhas
emigraram em bandos, procurando a suavidade morna das regiões distantes, e eu
regressei à cidade, em companhia de Luís que andava triste novamente e que
começava a aludir outra vez à morte, como única libertação, mais romântico do
que nunca. Enfim, nessa época saudosa, ainda se corriam léguas, nas noites
solitárias, ao clarão luzente e pálido do luar, para ir, sob um balcão de
trova, colher a flor casta que umas ternas e brancas mãos deixassem cair à
poeira das estradas. Os namorados de hoje não podem fazer uma vaga ideia do
enlevo íntimo que nós então experimentávamos, por estas pequeninas e queridas
futilidades.
Escreviam-se regularmente cartas
desvairadas. Maria falava-lhe em goivos, em lágrimas, na solitude das
sepulturas; pedia-lhe que a fosse ver à aldeia pobre onde o pai a escondera com
um ciúme feroz de que lha roubassem. E Luís, refugiando-se na minha tebaida das
chuvadas tremendas, dos penetrantes frios das manhãs, tiritava, de galochas e
varino, mordendo o bigode e exclamando:
— Campo, hein? Será uma bela fantasia de
poeta, mas eu pertenço às legiões impenitentes da prosa. Lá quando a primavera
vier, não digo que não. Mas agora!
Parava, sufocado. As palavras saíam-lhe
num confuso tumulto, e nos seus olhos, uns olhos negros e enigmáticos que tanta
perturbação lançavam nos corações ingênuos, coriscava uma pontinha de brilho.
Depois, continuava, atirando largos passos pelo quarto:
— Não, minha filha, não irei! Eu abomino
a campina e as suas relvas porque só de verão costumo ir para os pastos. E,
menina, agora não gorjeiam as cotovias logo aos primeiros resplendores da alva,
nem os rouxinóis cantam nos canaviais. Não há cenário para um idílio shakespeariano,
e eu, meu amor, respeito a verdade histórica, a cor local.
Dizia isto e mentia, o desgraçado, para
se aturdir. Tanto assim que um dia em que ela adoeceu, abalou rapidamente,
tendo apenas o tempo necessário para se despedir de mim, num abraço
melancólico, e para embrulhar colarinhos num jornal velho.
— Como vês, no lirismo pertenço ainda às
hostes lacrimosas de 1840! Adeus! — disse-me ele.
Ia evocando estas lembranças antigas
nessa gloriosa e consoladora manhã, no meu quarto, com o livro de Björnson
abandonado sobre os
joelhos, enquanto Luís, espantado com o
meu silêncio, acendia os charutos uns nos outros. Pouco a pouco, a minha
indiferença aparente foi-o irritando, e cheio de cólera, arremessando o charuto
para o quintal, rugiu:
— Homem, mas tu não me dizes nada? Pois
venho confessar-te a minha aflição, vês-me aqui torturado e não tens piedade,
nem sequer uma palavra de coragem, caramba!... Olha que está muito doente e não
se salva!
— Que queres que eu te diga? É
lamentável, sim, magoa-me que essa pobre rapariga parta deste mundo para o
funeral romântico dos bichos, para as núpcias das larvas! Aí tens!
— Pelo amor de Deus, deixa essa orgia de
estilo. Vê que se trata de duas vidas... Porque eu mato-me. Não resisto!...
— Isso passa. Tudo na vida passa. Eu compreendo
a tua dor. Perdê-la, quando o mundo era belo, e tu vogavas a plenas velas no
oceano infinito da ilusão!... Oh! Luís!...
Ah! também eu queria esconder o meu sofrimento!
Porque havia muito que eu a adorava, em silêncio. Mas o meu amor era sem
esperança e nunca ela o saberia. Confesso que cheguei a experimentar uma
alegria abominável, por a morte, inesperadamente, se vir meter entre eles
ambos, quebrando o fio desse sonho imaterial e inocente. Mas, o arrependimento
não tardou; e então, com interesse, preguntei:
— Que queres que eu te fala?
— Anda comigo, vamos vê-la. Ela conhece-te,
falou-me de ti, muitas vezes, com simpatia. Ao menos, se tiver de morrer, que
vá para a cova
rodeada das afeições dos que tanto lhe
quiseram.
— Vamos!
Fomos encontrá-la na larga sala do
solar, encostada a fofas almofadas de cetim, com a cabeça loura e luminosa
inclinada para a frente, espreitando a luz expirante da tarde que morria. No ar
diáfano, que cheirava às rosas de vergel, voavam as pombas. Uma velha parenta
tocava, num cravo arrumado, um lânguido minuete do século XVIII, e, na meia
tinta do ambiente, parecia que essa música doutora acordava aparições antigas —
as donas altivas e aristocráticas, com as faces macias picadas de sinais,
dançavam lentamente, arrastando as longas caudas de saias de veludo. Maria
parecia sonhar. Corria tão doce o tempo! Já refloriam nos muros da quinta as
glicínias roxas, e as fontes tinham um choro mais suave. Ao ouvir-nos,
despertou e fitou-nos, sorrindo. A dama velha esqueceu os dedos engelhados e
faiscantes de anéis sobre o marfim das teclas. Ouvia-se o chiar das noras, ao
fim da horta, regando as plantas.
— Ah! entoo sempre veio? — preguntou
ela.
— Soube da doença. Foi Luís quem me informou...
— exclamei.
— Este Luís é uma joia — disse Hércules,
batendo-lhe uma palmada afetuosa no ombro possante. Mas, não foi nada! Uma leve
dor... Não é verdade, filha?
— Sim! Estou restabelecida.
— Graças, minha senhora! Que susto! Este
rapaz!...
E Luís rejubilava, conversando com o pai
de Maria, que o afastara, para lhe mostrar uma arca portuguesa do século XVII —
uma preciosidade. Ora, foi neste momento que ela, volvendo afetuosamente para
mim os seus olhos ternos e curvando-se um pouco, murmurou:
— Por que não tem aparecido? Sei que reside
agora perto de nós... Venha por aqui!... Quantas saudades!...
E cerrava as pálpebras num delíquio...
— Sabe? — continuava. Lembro-me às vezes
tanto dos tempos antigos, dos dias que findaram!
E, como eu, surpreendido e adivinhando
uma doce, inefável simpatia nas suas palavras, me conservasse silencioso,
interrogou com impaciência:
— Mas, não diz nada?
— Eu, minha
senhora... Que afável tempo, não é?
E disse esta banalidade, porque Luís,
fugindo à perseguição de Hércules, se aproximava de nós, rindo com aquela
sinceridade em que transparecia logo uma leal nobreza de alma.
Recuperando a minha serenidade, arrependi-me
da minha fraqueza. Quase que cometia uma traição — e perdi aquele excelente
almoço que a Rosália, a minha criada, ia cozinhando enquanto eu lia. Para que
saí de casa está manhã?...
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Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)
Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)
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