Sermão na aldeia
Um bom campônio, tendo junto
alguns vinténs à custa de trabalho e poupança, resolveu mandar o filho para os
estudos, pois o queria ver Pároco da sua Freguesia.
O rapaz tinha bons desejos de
estudar, mas Deus não o fadara para o caminho das Letras, e mais avisado
andaria o pai se o guiasse para ser um bom lavrador, como ele era. Agradou-se,
porém, da cidade para onde fora, e da vida pouco trabalhosa de falso estudante.
E por isto ia enganando os pobres pais, nas cartas que mandava para casa,
pedindo reforço das mesadas para pagar encargos dos estudos, e dizendo que nem
nas férias os podia interromper e que só iria à aldeia depois de vencidos os
principais exames. E, de tempos a tempos, lá ia escrevendo que já estava livre
de mais um.
Assim passaram alguns anos, até
que teve de anunciar próxima visita aos pais, antes de voltar à cidade, para
(dizia ele) acabar os estudos e ordenar-se. Para se fazer valer foi dizendo que
estava muito adiantado no Latim, e que até o Senhor Bispo o chamara já para pregar
na Sé.
Os pais muito se entusiasmaram
com tantos progressos, e não faziam senão gabar o filho a toda a gente da
aldeia.
Chegaram as férias e o estudante
veio a casa. Logo à entrada, o cão de guarda, que não o conhecia, começou a
ladrar-lhe. E o rapaz, querendo mostrar o seu adiantamento no Latim, que nem de
ouvido aprendera, gritou-lhe esta algaravia:
— Ó canes pátla mé, tu ladras à
mé?! Sou da casa como té.
O pai, coitado, que era um pobre
ignorante, imaginou que tudo aquilo queria dizer alguma coisa, e começou a
saltar de contente e a dizer que o seu filho estava tão adiantado que até para
os cães falava em latim.
O rapaz andava num sino, porque
toda a gente da sua aldeia se convenceu que ele era um grande sábio. Se falava
latim com os animais, o que não seria um Sermão! E, como houvesse por então a
festa do Orago da Freguesia, foram convidá-lo para pregar o Sermão, porque a
confraria era tão pobre que só podia dar oito tostões ao Pregador, e por esse
preço nenhum Padre queria ter o trabalho de subir ao púlpito.
O rapaz disse que sim, com muitos
agradecimentos pela boa lembrança. Mas no seu íntimo dava ao demônio a
esperteza de ter querido inventar Latim, porque não sabia o que havia de dizer.
Bem puxou pela cabeça, a matutar num Sermão parecido com os que ouvira algumas
vezes na cidade. A cabeça valia pouco, e os estudos que ele frequentara eram
apenas os da presença nos botequins, ouvindo as chalaças e rimas fáceis e sem
sentido nenhum, dos foliões.
No dia da festa levantou-se muito
cedo e foi dar um passeio pelos campos, a ver se lhe ocorria alguma coisa para
a sua oração da tarde, pois tinha ouvido contar de sábios Pregadores que
estudaram assim os seus melhores Sermões.
Na primeira fazenda que
atravessou, viu um homem a meter nabos num saco, e tomou nota. Mais adiante viu
uma serpente que fugia para um buraco. E depois viu um monte e um rio com uma
ponte. No rio andavam patos a nadar, e na ponte passava um rebanho de ovelhas.
De tudo foi tomando nota, para
fazer comparações.
À hora da festa já estava muito
convencido que iria botar grande figura. Porque não há ninguém que menos saiba
de si mesmo do que um homem que não estudou nada.
Entrando na Igreja, subiu para o
púlpito com toda a solenidade... e maior desfaçatez.
Depois de tudo estar disposto
para ouvir com atenção, começou ele:
— É de saco em nabo.
É de nabo em saco.
A serpente do Mal
Fugiu para o buraco!
A serpente do Mal
Fugiu para o buraco!
É de fonte em monte.
É de monte em ponte...
Do muito que vi
Nem sei que vos conte.
Por baixo nadam patos
E por cima andavam mês...
Por baixo nadam patos
E por cima andavam mês...
Atrapalhou-se, por não saber o
que mais havia de dizer, olhou para o teto, como que a chamar as ideias, e,
reparando que a Igreja estava muito suja, gritou logo:
— Ó irmãos, que me chamais,
Porque tendes a vossa Igrejinha
Porque tendes a vossa Igrejinha
Tão sujinha dos pardais?!
Meus irmãos, acabou-se tudo...
Tudo se acabou.
Cristo morreu entre dois ladrões...
E eu não posso dizer mais por oito tostões!
Ainda bem não tinha acabado, e já
o povo todo se levantara contra ele. Agarraram-no, levaram-no para fora da
Igreja, e deram-lhe grandes vaias e uma sova mestra, que para sempre o curou
das manias de ser sábio sem estudar, Padre sem vocação e Pregador sem ter que
dizer.
Daí em diante deixou-se de
latins. Pôs-se a cuidar da terra, e foi um honesto lavrador como o pai.
Para alguma coisa valeu o Sermão
na aldeia e o castigo sofrido e merecido.
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Fonte:
Ana de Castro Osório: “Contos, fábulas, facécias e exemplos da tradição popular portuguesa” (editado a partir da edição da Bibliotrônica Portuguesa)
Fonte:
Ana de Castro Osório: “Contos, fábulas, facécias e exemplos da tradição popular portuguesa” (editado a partir da edição da Bibliotrônica Portuguesa)
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