6/02/2019

São Pedro e a ferradura (Fábula), de Ana de Castro Osório



São Pedro e a ferradura

Há muita gente que imagina que só as coisas ricas têm valor e despreza tudo quanto parece de somenos importância.

Ora isto é um erro, porque às vezes as coisas mais insignificantes podem servir de muito.

Foi o que verificou São Pedro, quando andava no Mundo na companhia do Mestre.

Iam os dois, um dia, por uma estrada fora e encontraram uma ferradura. Disse Nosso Senhor Jesus Cristo ao discípulo:

— Pedro, apanha essa ferradura.

— Ó Senhor, para que a hei de apanhar, se está velha e ferrugenta? Não serve para nada.

O Mestre não respondeu, mas deixando o discípulo ir adiante, abaixou-se, sem ele ver, e apanhou a ferradura.

Chegando a uma cidade por onde tinham de passar para irem para o seu destino, tornou Jesus Cristo a ficar para trás e, sem o imprevidente discípulo dar por isso, foi a um ferrador que lhe deu dez reis pela ferradura. Depois, passando por um sítio onde se vendia fruta, comprou dez reis de cerejas, que guardou sem o companheiro ver.

Atravessaram a cidade sem descansar, porque era urgente o que os chamava a outra, ainda mais longe. Pela estrada fazia um calor de rachar, e o pobre São Pedro, aflito, não fazia senão suspirar e dizer:

— Se ao menos tivesse qualquer coisa que me refrescasse a boca, não me custava tanto suportar o ardor deste dia de verão! — O Mestre sorriu-se e, andando alguns passos adiante, deixou cair uma cereja, disfarçadamente.

O discípulo viu-a no chão, e, sem pensar que tinha sido deitada pelo companheiro, abaixou-se, limpou-a do pó e comeu-a com satisfação.

Assim foram seguindo: o Senhor sempre semeando as cerejas, e o bom do São Pedro apanhando-as e comendo-as, sem ver de onde vinham, até que, no fim de se acabar a provisão, lhe disse Jesus Cristo:

— Que trabalho tiveste em apanhar as cerejas, Pedro! Melhor farias se tivesses apanhado a ferradura.

— Uma ferradura velha, para que me servia? As cerejas comem-se e a ferradura não presta para nada.

— Pois se não fosse a ferradura não tinhas as cerejas.

E contando-lhe o que fizera, aconselhou-o a nunca desprezar as coisas pequenas, porque sem elas não se pode ter as grandes.

São Pedro aproveitou a lição, e daí para diante não tornou a ser imprevidente.
  

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Fonte:
Ana de Castro Osório: Contos, fábulas, facécias e exemplos da tradição popular portuguesa (Editado a partir da edição da Bibliotrônica Portuguesa)

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