6/22/2019

Sangue de Meneses (Conto), de Henrique Lopes de Mendonça



Sangue de Meneses

(Século XVI)


CAPÍTULO 1
D. Duarte de Meneses, capitão de Tânger, pratica­va em seus aposentos com seus dois filhos mais velhos, uma tarde do ano de 1531, quando o almocadém João Rodrigues lhe solicitou audiência.
— Que entre — disse o capitão.
E logo o almocadém, tisnado e rude, lhe fez a sua exposição.
— Saberá Vossa Mercê que eu espiei uma aldeia, na encosta da serra de Ângera, onde há muita boiada e assas de gado miúdo. Se nós lhe caíssemos em riba, de surpresa, estou que seria de proveito à almogavaria.
Os dois rapazes, arregalados os olhos, empertiga­vam-se nas cadeiras rasas, como leões rompentes, pres­tes ao assalto. Mas D. Duarte, cogitabundo, meneava a cabeça grisalha.
— Como se chama essa aldeia? — perguntou ele após uns instantes de silêncio,
— Beneolim. Fica a umas quatro léguas da cidade.
O capitão preencheu nova pausa com gestos evi­dentes de contrariedade. — O demônio é que estou acha-coso, há uns dias - exclamou ele por fim. — São malignas, diz o físico. Mas, seja o que for, não posso meter-me em andanças.
Enquanto D. Duarte passava a mão pela testa es­braseada, seus filhos agitavam as suas, em acenos mis­teriosos para o almocadém. Até que este, cobrando ânimo, obtemperou às dissimuladas solicitações:
— Senhor, se vós mandásseis vossos filhos, creio que eles iriam de muito bom grado.
E, como percebesse no rosto paterno os costumados assomos de severidade, D. Fernando, o primogênito, atalhou resoluto:
— Iríamos, sim! E vós, senhor pai, não duvida­reis em nos dar ensejo de merecermos a cavalaria e hon­rarmos o brasão dos Meneses.
E o outro irmão, D. Diogo, com toda a bélica impe­tuosidade dos dezessete anos, encarecia as instâncias.
— Concedei-nos esta entrada, senhor pai. Vereis que não desmereceremos do vosso nome.
Foi preciso trabalhar muito o ânimo ríspido de D. Duarte, ou apreensivo de verduras juvenis, ou quiçá cioso de uma glória que ele não partilharia, antes de lhe arrancar a implorada permissão.
Mas com que exultante alvoroço os dois rapazes lhe beijaram a mão ardente de febre, e romperam pelas es­cadas, acompanhados pelo almocadém, para darem or­dem aos preparativos da expedição!
Mobilizou-se Tânger inteira, na ânsia de tornar lu­zida e proveitosa a empresa dos moços. Acorreram fronteiros, ofereceram-se almogávares, arrearam-se gine­tes, bruniram-se lanças. E a meio da noite, saía da porta da cidade o troço expedicionário, cento e quaren­ta de cavalo, levando à sua frente, além dos dois fi­lhos do capitão, o adail Diogo Mendes de Azevedo e os almocadéns João Rodrigues e Francisco de Meneses.
Ao romper de alva, avistaram o aduar de Beneolim, cujas tendas se estendiam nas faldas da serra como bando de gaviões em repouso. As atalaias desprecavidas dormiam de papo para o ar, no restolho flavescente. Os ginetes acercaram-se de manso, abafado o tro­pear nos tufos de gramíneas amolecidas pelo orvalho. E de súbito, foram os mugidos da boiada, desperta pelo primeiro arranque dos invasores, que deram sinal de alarme ao acampamento da mourama. O grito de "Santiago!" vibrou no ar límpido como um clarim ma­tinal. E logo a multidão irrompeu, estremunhada, de­satinada, atônita, das tendas ondulantes, dos colmos, dos currais.
Homens, mulheres e crianças, mal cobertos de marlotas, de bedéns, de alquicés, de mantas, procuraram es­capula por entre a golilha relinchante que os aperta­va. Alguns mais arrojados tentaram fazer frente à in­vestida cristão, em defesa de lares e bens. Mas, desar­mados em breve, caíram desastradamente nos ferros do cativeiro.
Os primeiros raios do sol vieram aureolar o triun­fo incontestado dos portugueses. No meio da caval­gada, aglomeravam-se manadas e rebanhos, de envol­ta com os lastimosos cativos. Risos e cantos celebra­vam a vitória incruenta, a grandeza do saque. No seu garrano quatralvo, o moço D. Diogo empinava, o busto esbelto, cingido num cossolete aurilavrado, e o seu ros­to, imberbe e rosado, resplandecia sobre a malha ar­gêntea do gorjal.
— Ganhei as esporas de ouro! — bradava ele numa explosão de júbilo infantil.
— Mas D. Fernando, mais circunspecto nos seus vinte anos, repreendia o leviano irmão:
— Tal não creias, Diogo. Não é de presa que vem glória, mas do sangue de inimigos.
— Inimigos! Onde estão eles? — volveu D. Diogo, abrangendo num olhar de desdém o punhado dos ca­tivos.
— Espera! — atalhou D. Fernando, impondo ao mes­mo tempo silêncio ao jovial alarido dos seus.
Ouvia-se já próxima uma tropeada, de mistura com vago retinido de armas. E súbito, por detrás de uma moita de lentiscos, à distância pouco maior de dois ti­ros de besta, surdiu uma. arrogante mazagania, galopan­do sobre a gleba mosqueada de pardo e negro, como pelugem de pantera. Lampejavam nas upas os peito­rais dos corcéis, chispavam por sobre as toucas brancas os fains das lanças e os alfanjes erguidos. E os bra­midos de "Alá! Alá!" repercutiram pelos alcantis da serra, sinistros como regougos de alcateia faminta.
— De onde surdiram estes cães? — perguntou o almocadém João Rodrigues, confrangido.
E um dos cativos explicou com fero arreganho:
— É a gente do alcaide de Xexuão, Cide Ornar Bençalema. E não tarda, aí com ele seu irmão Mulei Abraém, que dormiu esta noite em Ângera. Não esca­pareis, nem um só de vós, nazarenos!
— A eles! Santiago! — bradou a voz cristalina de D. Diogo.
— Por Deus, tende mão! — exclamou o adail, diri­gindo-se a D. Fernando, que hesitava. — São cinquenta, pelo menos; e outros tantos, e muitos mais virão depois, que em ruim cilada caímos. Voltemos para Tânger, senhor.
A dar-lhe razão, a campina parecia desentranhar-se em peões armados. E já as primeiras bestas sibilavam em derredor da cavalgada, e um clangor de anafis vi­nha rolando pelas encostas da serra, como se esquadrões sobre esquadrões se despenhassem em catadupa con­tínua, para esmagar os invasores.
Os menos temerários não esperaram a resolução de D. Fernando, e envolveram a todos na retirada precipi­tada. Transpondo barrancos, galgando sebes, saltando, córregos, os ginetes corriam à desfilada louca, arrastan­do manadas e rebanhos. Debalde os dois Meneses, so­bretudo o mais novo, rouquejavam no meio do tumulto, intentando sustê-los. Até que em frente deles lampe­jou um ribeiro, serpenteando no vale, avolumado pelas cheias do inverno, caudaloso e refervente.
— Largai o gado, e passai para a outra banda — clamou o adail Diogo Mendes. E os almocadéns incitavam:
— Depressa, que eles estão conosco!
Mas D. Diogo, com fúria juvenil revoltou-se:
— Não! não!
E a sua voz clara de adolescente estrugia através do alarido ululante, engrossada pela prosápia de quatro gerações intrépidas.
— Não largaremos uma só rês! Se é força que vol­temos, seja com despojo, já que não pode ser com gló­ria! Mando eu!
— Pois que assim mandais, assim seja! — condes­cendeu o velho adail.
E João Rodrigues acrescentou em voz soturna:
— Nosso Senhor se amerceie das nossas almas.
D. Diogo não o ouviu. Em doida azáfama, sari­lhando a espada, girando em volteios rápidos, buscava reunir os ginetes desmandados, arrebanhar as rezes dis­persas, enxotá-las para a beira da torrente, num estrondear de algazarras, de relinchos, de mugidos, de balatos, ao tempo que o solo abalava com a galopada da mazagania, já forte de oitenta cavalos, e que uma nuvem de peões, besteiros, espingardeiros, fundibulários, em nú­mero superior a duzentos, avançava vertiginosamente sobre o desmanchado troço dos portugueses.
Então estes, apertados pelos inimigos, começaram a vadear a ribeira. Choviam sobre eles as frechas, as lanças de arremesso, as pedras, os pelouros. Na arri­ba escorregadia baqueavam os cavalos. As águas marulhantes abriam-se para engolir corpos derribados. O relvão da margem já se embebia de sangue. Um cla­mor de desespero ecoou, como sinal de irreparável des­barato. O velho adail, ferido de morte, enleado nos loros, era arrastado veiga fora pelo desenfreado ginete.
Na regaça da hoste, os dois irmãos Meneses, numa doidice heroica, tentavam ainda aguentar a debanda­da,, fazer frente ao inimigo para salvar os restos mise­randos da almogavaria. Espreitava-os a morte ou apre­sentavam-se para eles os grilhões do cativeiro. Súbito, a gente da vanguarda já na metade do ribeiro, viu o rosto alvo de D. Diogo avermelhar-se de uma onda de sangue, o seu busto vergar sobre o arção da sela, o seu corpo esbelto tombar exânime, ao passo que uma manga de mouros se arrojava para o ginete em rugidos de triunfo. Volvidos os olhos ansiosos para D. Fernando, viram-lhe apenas a pluma do capacete ondulando no meio da turba fervilhante.
— Ambos são mortos! ambos são mortos! — excla­maram vozes angustiadas.
Então, um moço português, Pêro Álvares de Souto Maior, a quem D. Diogo pusera na dianteira, e que du­rante o trágico desastre trabalhara por dar ordens aos fugitivos, teve um arranco de soberba raiva.
— Não queira Deus que eu me salve, deixando os meus capitães mortos no campo.
Assim disse Pêro Álvares de Souto Maior; e atra­vés da torrente ensanguentada, arrepiando a correria insana dos fugitivos, arredando os cadáveres que já ba­louçavam à tona da água, voltou para trás. Apenas o seu ginete punha as pacas em terra enxuta, quando se apresentava a vender caro a vida, envolveu-o um tro­ço de cavaleiros mouros. Voou-lhe da destra, em esti­lhas, a lança que brandia. Mãos robustas sustiveram o animal que se empinava. E uma voz grave dominou o tumulto, com estas palavras corteses:
— La Fortuna vos pone en mis manos, señor. Cautivo sois de Cide Ornar Bençalema.
E o alcaide de Xexuão curvava ao de leve a cabeça enérgica, numa vênia cerimoniosa, enquanto a horda maometana, chafurdando nas ondas, vociferante e bra­via, varejava e acossava os cristãos fugitivos...

CAPÍTULO 2
Vibrou no ambiente límpido o repique longínquo das atalaias.
— Ei-los que voltam! Até que enfim!
E a multidão ansiosa dos moradores de Tânger re­fluiu às muralhas, às açoteias, às portas da cidade, para esgaravatar com a vista aguda o encinzeirado horizonte.
Horas e horas haviam decorrido desde que a almogavaria se internara pelas terras do Magreb, e nem aviso de alfaqueque, nem atoarda de alganames erradios, havia trazido até à cidade novas do seu destino. E os corações confrangiam-se no terror de um desastre.
Pelas emaranhadas e ladeirentas ruas escoava uma tropeada afanosa.
— É o senhor capitão, que vai ao encontro dos fi­lhos.
E de feito, não tardou que a cavalgada galgasse da porta, do Cerco, derramando-se pelos campos, na direção do Facho. À frente, no seu rucilho caparazonado de um gilele precioso, D. Duarte de Meneses ga­lopava; e sob a gorra purpúrea de Milão mais avulta­va, a palidez doentia do rosto.
E, enquanto galopava pelo campo fulvo de gramíneas secas, iam-se-lhe desenhando na mente febrici­tante as recordações trágicas da família. Era seu avô, o primeiro conde de Viana e primeiro capitão de Al­cácer Segvier, dando a vida em sacrifício, nos campos de Ceuta, para salvar o rei Afonso V. Era seu tio, o conde de Loulé, D. Henrique de Meneses, mal ferido em Toro, morto pelos mouros na serra do Farrobo. Era seu pai, D. Fernando de Meneses, que aos gilvazes do alfanje mourisco devera a alcunha pitoresca do Nari­zes, e que, apesar dessas cicatrizes gloriosas, a sua de­dicação ao duque de Viseu tinha levado ao patíbulo. Era seu tio, o bispo de Évora, D. Garcia, batalhador em Castela e na Itália, empeçonhado no castelo de Pal­meia, como cúmplice na mesma conspiração.
Uma onda de sangue projetava nas páginas da his­tória o apelido heroico dos Meneses. Era sobre a gleba africana que escorria as mais das vezes esse sangue ge­neroso. Ainda mais sede teria dele o solo adusto da Mauritânia?
E as mesmas imagens pressagas, que na carreira es­voaçavam em volta do capitão de Tânger, surgiam an­te os olhos de sua mulher D. Filipa de Castro, enquanto, num dos eirados da alcáçova, ela media a pulsações pre­cipitadas, o tempo que faltava para o abraço dos fi­lhos... Ah! permitisse Deus que esse tempo não fosse todo o da sua vida, e que o abraço antecedesse o da eternidade!
Junto dela, debruçados no parapeito, arregalando a vista pelos campos, onde nuvens de poeira marcavam o itinerário da, cavalgada, agitavam-se seus outros fi­lhos adolescentes, D. Garcia e D. Isabel, ao passo que o resto da prole, crianças trêfegas, brincavam despreocupadamente no eirado, à guarda das aias mouriscas.
— Vão já muito perto do Facho — exclamou D. Garcia.
E dai a instantes, batendo as mãos de alvoroçada,
D. Isabel bradou:
— Chegaram, senhora mãe!
D. Filipa encostou vivamente ao parapeito o busto cingido num sainho de raxa aleonada, e seus lábios titilavam num cicio de orações.
Quedaram-se assim algum tempo, suspensos e mudos, ao passo que por detrás deles ressoavam os risos argen­tinos da criançada. Apenas uns murmúrios de impa­ciência afluíam aos lábios dos dois moços, até que a voz de D. Garcia se ergueu, numa exclamação exul­tante:
— Lá voltam! lá voltam!
E as observações começaram a formular-se em fra­ses rápidas. A cavalgada ia-se aproximando. Engros­sara naturalmente com os almogávares que regressa­vam da expedição. Reverberava o sol sobre os elmos, os arneses, as lanças. Mas ainda parecia bem minguado o troço a quem os vira partir na noite antece­dente.
— Meu Deus! não vêm todos! — murmurou D. Fi­lipa, empalidecendo.
E daí a pouco perguntava, trêmula de ansiedade:
— Não vedes vossos irmãos?
— Ainda não posso afemençá-los — redarguiu D.
Garcia.
— Não vejo a pluma verde de meu irmão D. Fer­nando — acrescentou D. Isabel, com impaciência in­fantil.
As crianças haviam-se calado, submissas à ordem da angustiada mãe, que lhes impusera silêncio. E so­bre o sussurro ondulante, que subia da cidade, ouviam-se três ofegos descompassados e rápidos.
— Não posso, não posso. Desçamos ao seu encon­tro — disse afinal D. Filipa, amarfanhando entre os de­dos nervosos a manga aveludada de D. Garcia.
E, com ele e com a filha, desceu açodadamente a escada da torre, e encaminhou-se a passos precipitados para a entrada da alcáçova.
— Dá-me o braço, meu filho. Quero ir até à porta do Cerco — disse ela numa decisão súbita.
Foram seguindo pelas vielas íngremes, atravessando o Soco deserto, encontrando raros viandantes que acor­riam tardiamente ao mesmo destino. Quando se lhes deparou em frente a arquivolta mourisca que boceja­va na amarelenta muralha, já de há muito que um burburinho confuso lhes apontava o caminho. E seus olhos viram em derredor da porta um redemoinhar de cabeleiras revoltas, sobre mantos e vasquinhas de co­res variegadas. Daquela, barafunda mulheril surdia uma zunida cortada de gritos esganiçados, de plangen­tes clamores, de raivosas lástimas. No instante em que D. Filipa, com seus filhos se detinha no topo da caleja, retumbava soturno, sob o arco tríplice da porta, o, tro­pear dos cavalos. Houve uma trégua momentânea no alarido, enquanto o negrume da arcada contornou a figura imponente de D. Duarte de Meneses, pálido e sereno no seu corcel ajaezado de prata. Mas logo a turba, que se arredara um instante, refluiu sobre ele, ululante e desgrenhada, mergulhando os olhos ávidos na sombra, em que vagamente se lobrigava a cavalgada.
— Meu marido!
— Meu filho!
— Meu irmão!
— Meu pai!
Eram as evocações angustiosas, que se distinguiam no tumulto, e muitas das quais não logravam réplica. Porque, à medida que os cavaleiros iam emergindo da sombra da arcada, se reconhecia que muitos dos que haviam partido faltavam no regresso.
Então o capitão de Tânger deteve o ginete, a al­guns passos da porta, e respondeu, com triste sereni­dade, às mulheres que lhe pediam contas dos seus:
— Ficaram fazendo companhia a meus dois filhos, como bons cavaleiros que não quiseram desamparar seus capitães.
D. Filipa, à distância a que se achava, não podia ainda ouvi-lo. Mas adivinhou-o. Seu coração ensom­brou-se de horror. E baquearia, se não a amparasse o braço de D. Garcia, pálido e angustiado como ela.
Um coro de lástimas acompanhava agora a caval­gada, ladeira acima. De cento e quarenta, voltavam menos de cinquenta. À medida que essas lamentáveis relíquias se iam internando pela cidade, umas como lu­fadas de luto se engolfavam pelos lares dos ausentes. E sob o esplendor dourado do sol a tropeada lúgubre parecia arrancar das pedras das ruas uns retinidos len­tos de dobre. D. Filipa sentiu-se afogada por uma onda de lágrimas. Mas tão severo foi o relance de olhos que seu marido lhe vibrou de passagem, que re­calcou de súbito a sua dor materna. Sem dizer mais palavra, entre seus dois filhos, foi subindo, por vielas e atalhos, até à alcáçova.
Quando chegou ao vestíbulo de entrada, já D, Duarte de Meneses surgia do interior. Sobre a sua ar­madura brunida, lançara um balandrau de escarlata.
D. Filipa encarou-o com pasmo.
— Que olhais, senhora? — disse ele duramente. — Vesti-vos, como eu, de cores garridas. Assim é mister para darmos consolação às anojadas,
— Mas quem mais anojado do que nós, senhor? re­darguiu ela com timidez. Que é feito de nossos filhos?
— Caíram na terra de África, a defender o seu rei e a sua fé. Que outra sorte pudera ser a sua, pois são Meneses?
— Valha-me a Virgem Santa! — gemeu a pobre se­nhora, dando enfim curso às lágrimas.
Mas D. Duarte agarrou-lhe com firmeza o braço, e murmurou com intimativa:
— Não! não choreis! Não choreis, por Deus! que ireis fazer brotar o pranto em olhos desafeitos a fraquezas! Não choreis, pois é mister que o capitão de Tân­ger e sua mulher deem o exemplo da fortaleza, por mui­to que a mágoa os roa por dentro. Vinde, vinde co­migo, a visitar essas pobres mulheres anojadas.
E arrastou-a consigo através dos arruamentos som­brios.
Saíam carpimentos das casas de fronteiros, das casas de moradores. D. Duarte entrava e dizia:
— Olhai a minha perda,, amigos! Dois filhos, em quem eu tinha todas as minhas esperanças, e mais vin­te e dois cavaleiros de minha casa, todas saíram para não tornar. Louvores sejam dados a Deus Nosso Se­nhor, que assim o houve por bem!
Nesta agonia passaram aquelas duas almas o dia inteiro.
Quando, extenuados, alquebrados, aspados, volviam à alcáçova, na ânsia de uma trégua ao seu suplício, o almocadém João Rodrigues acercou-se de D. Duarte de Meneses, muito alvoroçado.
— Senhor — disse ele — tenho suspeitas de que vos­so filho o senhor D. Fernando não é morto...
— Caluda! — atalhou vivamente o capitão, apertan­do-lhe rudemente o braço, apontando para D. Filipa.
Desatenta ao colóquio, a nobre senhora punha os pés nos degraus da escada, a caminho da sua câmara, onde finalmente lhe fosse dada liberdade do desabafar em lágrimas.
— Caluda! — repetiu D. Duarte. — Não crieis te­merárias esperanças naquele coreação despedaçado. Ide, homem, enquanto não tendes mais que suspeitas. Deus Nosso Senhor nos trará a certeza.
E precipitou-se a seu turno para o interior da al­cáçova, sentindo o pranto a sufocá-lo.

CAPÍTULO 3
— Alvíssaras, senhor capitão! — clamava na manhã se­guinte o almocadém João Rodrigues introduzindo no gabinete um velho fronteiro que agitava na mão trêmula um papel coberto de caligrafia tabelioa.
D. Duarte de Meneses levantou para o adventício os olhos, cavados pela febre, cansados de insônia.
— Sois vós, Fernando Anes de Souto Maior! Com que nova me confortais?
— Esta, carta — que trouxe antemanhã um alfaqueque, vindo da serra de Ângera. Escreveu-a meu filho Pêro Álvares...
— Cativo?
— Sim. Foi essa a sua vontade. Não quis salvar-se, crendo seus capitães mortos no campo.
— Valente moço! Contai-me esse feito.
Desvanecido, embora angustiado, o \velho contou a forma por que se havia realizado a captura do filho. Depois continuou a narrativa, consultando a missiva que tinha entre as mãos.
Enquanto os seus companheiros, dizimados pelas lanças e alfanjes mouriscos, avermelhavam as águas do ribeiro, ou, em debandada na outra margem, procura­vam a galope o caminho de Tânger, perseguidos pela mazagania, arrogante, Pêro Álvares era conduzido para a retaguarda da mourama, na primeira ondulação da ser­ra, a caminho da aldeia de Beneolim horas antes devas­tada pelos cristãos.
Entre um grupo de mouros, vestidos na maior parte de alquicés desbotados, viu ele alguns cativos portugue­ses, abatidos e exaustos, cobertos de sangue e poeira, E no meio deles, com indescritível alvoroço, reconheceu D. Fernando de Meneses, lívido, descarapuçado, em de­salinho, mas aparentemente incólume.
Nesse passo da narrativa, uma exclamação de D. Duarte irrompeu:
— Vivo! Deus Nosso Senhor seja louvado! E o alcocadém acrescentou compungido:
— Prouvera a Deus que outro tanto se pudesse di­zer do senhor D. Diogo!
— Prossegui, Fernando Anes — ordenou o capitão, na mira de desviai carpimentos inúteis.
O velho retomou a palavra. Narrou como o filho não soubera reprimir o seu contentamento ao ver um dos seus capitães a salvo da morte. Bastou o seu olhar para corroborar suspeitas, que por certo já existiam no ânimo dos mouros. Um desses adiantou-se, jubiloso, para um cavaleiro, que rio momento se aproximava, en­volto nas pregas leves e esvoaçantes do salham bran­co. Na trazia armadura. A longa barba grisalhante recaía-lhe sobre a seda azulada do cafetã. E a musselina alva do turbante ondulava em torno do capelhar vermelho, coroando a fisionomia grave e serena, onde os olhos negros espalhavam clarões de bondade.
— Mulei Abraém — disse com reverência o mouro que se adiantara apontando para D. Fernando de Me­neses — tendes nas vossas mãos...
— Basta! atalhou Mulei Abraém, falando em ará­bico como o seu interlocutor. — É o filho do capitão de Tânger. Dai-lhe quanto antes um cavalo; e dai outro a este mancebo, que me parece também de boa estirpe.
Obedeceram-lhe prontamente. Surpreendidos, tan­to D. Fernando como Pêro Álvares, encavalgados sobre ricos felizes mouriscos, viram acercar-se deles o antigo alcaide de Xexuão, agora favorito do rei de Fez.
Curvando ao de leve a cabeça, disse em puro cas­telhano a D. Fernando de Meneses:
— Seja Vossa Mercê servido de me acompanhar.
D. Fernando, obedecendo à cortês indicação, tomou lugar à direita de Mulei Abraém, ao passo que Pêro Ál­vares os seguia um pouco atrás, flanqueado por dois ca­valeiros de lança e adarga.
Os ginetes trotaram, voltando a garupa ao ribeiro. Para além deste, ouvia-se ainda, mal distinto entre esfumaçados olivedos, o tumulto da galopada, entrecortada de tiros de espingarda e de clamores confusos.
O moço português relanceava olhares de curiosi­dade, não isento de respeitosa deferência, para o nobre maometano que se arvorava agora em seu senhor. Era seu inimigo sem dúvida, inimigo na raça, inimigo na fé. Desde criança, porém, que se habituara a ouvir-lhe o nome entrelaçado em louvores, como de um pro­tótipo de lealdade cavalheiresca na guerra, de justiça e de tolerância na paz. Era um desses vultos que repre­sentavam na África islamítica as tradições venerandas de Harun-ar-Raschid, de Saladino, de Abd-el-Raman, perduráveis na memória da cristandade. Havia cerca de trinta anos que a sua fama transpusera o estreito, e se espalhava pela corte. de Portugal, enublada de len­da, a tal ponto que até os próprios humanistas quase não hesitavam em enfileirá-lo, ainda em vida, na gale­ria consagrada dos heróis de Plutarco.
Mulei Abraém atribuiu a abatimento de ânimo o silêncio que deveria antes ser levado à conta de natu­ral altivez ou de timidez juvenil. E disse pausadamen­te, abrandando a andadura do ginete:
— Senhor D. Fernando, são estes os efeitos da guer­ra, que não pode favorecer uma das partes sem dano da outra.
Abanou a cabeça, fazendo tilintar as grossas orelheiras de ouro, e acrescentou:
— Mas esta vossa fortuna é mais pela áspera condi­ção de vosso pai do que por vós a merecerdes.
Em sua consciência, D. Fernando sentiu, sem em­bargo do absurdo da conclusão, o justificado da pre­missa. Com efeito, a rispidez nativa de D. Duarte nun­ca lhe permitira ter com Mulei Abraém as relações de cordialidade, com que os capitães de Ceuta e de Al­cácer, de Tânger e de Arzila, costumavam preencher as intermitências da guerra. Mas não cumpria a seu filho reconhecer tal culpa, por venial que fosse, em presença, do adversário. E o orgulho da sua prosá­pia ditou-lhe imediatamente a resposta:
— Senhor, não vai isto da boa nem da ruim con­dição de meu pai, mas sim do velho costume, que têm os Meneses, de derramar seu sangue pelos campos de Alcácer, de Tânger e de Arzila.
— Ganhastes, senhor D. Fernando! — exclamou Mu­lei Abraém com entusiasmo, estacando o ginete e es­tendendo para o muco cristão a destra alienada e ner­vosa.
Pela memória do velho batalhador agareno passavam de relance as figuras luminosas de todos os Meneses, que, no decurso de quase meio século, ele e os seus ha­viam defrontado como generosos adversários nos cam­pos do Magreb; e sobretudo lembrava com saudades os dois D. Joões: o Repica-sino, da casa de Cantanhede, heroico defensor de Arzila e de Azamor; o prior do Grato e conde de Tarouca, egrégio capitão de Tânger! E todos os ramos diversos da nobilíssima dinastia parecia terem derramado o melhor da sua seiva, para levan­tarem aos olhos do guerreiro do Islã essa altiva vergôntea, esse moço nazareno que acabava de proclamar numa bela sentença o orgulho indômito da sua raça.
Olhando para ele, o velho Mulei Abraém sentia o coração alvoroçado com vagos, indefiníveis assomos de ternura paternal. E uma lágrima lhe tremia nos cí­lios, quando acrescentou:
— Dignai-vos apertar esta mão, e perdoai-me, se­nhor D. Fernando. Oxalá meus olhos vissem junto de vós vosso desventurado irmão!
A mágoa entenebreceu mais ainda o rosto do man­cebo. Em silêncio, numa galopada, por adarços que fraldeavam a serra, breve chegaram à alhala de Ângera, onde Mulei Abraém pousara aquela noite. Beduínos de aljaravias remendadas de alquicés imundos, acoco­rados às portas das tendas, olhavam com desprezo ou rancor para os cativos cristãos; mas não ousavam exte­riorizar em apupos os sentimentos que lhes roíam o ín­timo. Antes faziam suas salemas à passagem do no­bre alcaide.
Este, com a sua, comitiva, estacou em frente de uma casa de adobes, branquejando ao sol, onde uma porta estreita abria um bocejo negro. E desmontando, dis­se com sua usual gravidade:
— Bem-vindo à minha casa, senhor D. Fernando. Não vos lembreis que sois meu cativo. Por Issa, o santo precursor, que antes como a filho meu vos desejo acolher.
Lá dentro, a hospitalidade oferecida, aos dois cati­vos foi com efeito franca e afetuosa. À mesa de Mulei Abraém se sentaram, junto das mulheres do harém, revestidas de cafetãs de seda recamados de ouro, deixan­do entrever os véus diáfanos os rostos arrebicados de col, numa intimidade de que eram excluídos os fiéis muçulmanos. Porque, entre travessas de alfitete, ces­tos de frutas, confeiteiras de arrobes e marmeladas., viam-se albarradas cheias de vinho espumante, defeso aos crentes, e com ele o nobre anfitrião não duvidava de brindar a seu hóspedes.
Toda esta narrativa, extraída da minuciosa, carta de Pêro Álvares, trazia à contenença ríspida de D. Duar­te de Meneses sinais de irreprimível comoção. Quem sabe se no íntimo o alanceariam remorsos, por não ter até então manifestado a tradicional deferência por um inimigo magnânimo!
Não tardou que sua mulher D. Filipa de Castro recebesse entre lágrimas a feliz nova. O salvamento de seu filho primogênito minorava a dor causada pela mor­te do moço D. Diogo. Para logo começaram a planear-se as cláusulas do resgate. :
Mas a Providência não consentiu que D. Fernando fosse restituído ao amor dos seus. Levado para Fez, paternalmente tratado por Mulei Abraém, venceram-no os germes da doença que levara de Tânger. E talvez que na hora extrema se considerasse ainda afortunado, ao comparar o seu destino ao do seu homônimo, o Infante Santo, que um século antes sucumbira ali mesmo, entre horrores tremendos da sejana, sem um luar de carinho que lhe iluminasse a alma...

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Pesquisa, digitalização e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)

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