Sangue
de Meneses
(Século
XVI)
CAPÍTULO 1
D. Duarte de Meneses, capitão de Tânger, praticava em seus aposentos com seus
dois filhos mais velhos, uma tarde do ano de 1531, quando o almocadém João
Rodrigues lhe solicitou audiência.
— Que entre — disse o capitão.
E logo o almocadém, tisnado e rude, lhe fez a sua exposição.
— Saberá Vossa Mercê que eu espiei uma aldeia, na encosta da serra de
Ângera, onde há muita boiada e assas de gado miúdo. Se nós lhe caíssemos em
riba, de surpresa, estou que seria de proveito à almogavaria.
Os dois rapazes, arregalados os
olhos, empertigavam-se nas cadeiras rasas, como leões rompentes, prestes ao assalto. Mas D. Duarte,
cogitabundo, meneava a cabeça grisalha.
— Como se chama essa aldeia? — perguntou ele após uns instantes de
silêncio,
— Beneolim. Fica a umas quatro léguas da cidade.
O capitão preencheu nova pausa com gestos evidentes de
contrariedade. — O demônio é que estou acha-coso, há uns dias - exclamou ele por
fim. — São malignas, diz o físico. Mas, seja o que for, não posso meter-me em
andanças.
Enquanto D. Duarte passava a mão pela testa esbraseada, seus filhos agitavam as
suas, em acenos misteriosos para o almocadém. Até que este, cobrando ânimo,
obtemperou às dissimuladas solicitações:
— Senhor, se vós mandásseis vossos filhos, creio que eles iriam de
muito bom grado.
E, como percebesse no rosto
paterno os costumados assomos de severidade, D. Fernando, o primogênito, atalhou resoluto:
— Iríamos, sim! E vós, senhor pai, não duvidareis em nos dar ensejo de
merecermos a cavalaria e honrarmos o brasão dos Meneses.
E o outro irmão, D. Diogo, com toda a bélica impetuosidade dos
dezessete anos, encarecia as instâncias.
— Concedei-nos esta entrada, senhor pai. Vereis que não desmereceremos
do vosso nome.
Foi preciso trabalhar muito o ânimo ríspido de D. Duarte, ou apreensivo de
verduras juvenis, ou quiçá cioso de uma glória que ele não partilharia, antes
de lhe arrancar a implorada permissão.
Mas com que exultante alvoroço os dois rapazes lhe beijaram a mão ardente de
febre, e romperam pelas escadas, acompanhados pelo almocadém, para darem ordem
aos preparativos da expedição!
Mobilizou-se Tânger inteira, na ânsia de tornar luzida e
proveitosa a empresa dos moços. Acorreram fronteiros, ofereceram-se
almogávares, arrearam-se ginetes, bruniram-se lanças. E a meio da noite, saía
da porta da cidade o troço expedicionário, cento e quarenta de cavalo, levando
à sua frente, além dos dois filhos do capitão, o adail Diogo Mendes de Azevedo
e os almocadéns João Rodrigues e Francisco de Meneses.
Ao romper de alva, avistaram o aduar de Beneolim, cujas tendas se estendiam nas faldas
da serra como bando de gaviões em repouso. As atalaias desprecavidas dormiam de
papo para o ar, no restolho flavescente. Os ginetes acercaram-se de manso,
abafado o tropear nos tufos de gramíneas amolecidas pelo orvalho. E de súbito,
foram os mugidos da boiada, desperta pelo primeiro arranque dos invasores, que deram sinal de alarme ao acampamento
da mourama. O grito de "Santiago!" vibrou no ar límpido como um
clarim matinal. E logo a multidão irrompeu, estremunhada, desatinada, atônita,
das tendas ondulantes, dos colmos, dos currais.
Homens, mulheres e crianças, mal cobertos de marlotas, de bedéns, de
alquicés, de mantas, procuraram escapula por entre a golilha relinchante que
os apertava. Alguns mais arrojados tentaram fazer frente à investida cristão,
em defesa de lares e bens. Mas, desarmados em breve, caíram desastradamente
nos ferros do cativeiro.
Os primeiros raios do sol vieram
aureolar o triunfo incontestado dos portugueses. No meio da cavalgada, aglomeravam-se
manadas e rebanhos, de envolta com os lastimosos cativos. Risos e cantos
celebravam a vitória incruenta, a
grandeza do saque. No seu garrano quatralvo, o moço D. Diogo empinava, o busto
esbelto, cingido num cossolete aurilavrado, e o seu rosto, imberbe e rosado,
resplandecia sobre a malha argêntea do gorjal.
— Ganhei as esporas de ouro! — bradava ele numa explosão de júbilo
infantil.
— Mas D. Fernando, mais circunspecto nos seus vinte anos, repreendia o
leviano irmão:
— Tal não creias, Diogo. Não é de presa que vem glória, mas do sangue
de inimigos.
— Inimigos! Onde estão eles? — volveu D. Diogo, abrangendo num olhar de
desdém o punhado dos cativos.
— Espera! — atalhou D. Fernando, impondo ao mesmo tempo silêncio ao
jovial alarido dos seus.
Ouvia-se já próxima uma tropeada, de mistura com vago
retinido de armas. E súbito, por detrás de uma moita de lentiscos, à distância
pouco maior de dois tiros de besta, surdiu uma. arrogante mazagania, galopando
sobre a gleba mosqueada de pardo e negro, como pelugem de pantera. Lampejavam
nas upas os peitorais dos corcéis, chispavam por sobre as toucas brancas os fains das
lanças e os alfanjes erguidos. E os bramidos
de "Alá! Alá!" repercutiram pelos alcantis da serra, sinistros como
regougos de alcateia faminta.
— De onde surdiram estes cães? — perguntou o almocadém João Rodrigues,
confrangido.
E um dos cativos explicou com
fero arreganho:
— É a gente do alcaide de Xexuão, Cide Ornar Bençalema. E não tarda, aí
com ele seu irmão Mulei Abraém, que dormiu esta noite em Ângera. Não escapareis,
nem um só de vós, nazarenos!
— A eles! Santiago! — bradou a voz cristalina de D. Diogo.
— Por Deus, tende mão! — exclamou o adail, dirigindo-se a D. Fernando,
que hesitava. — São cinquenta, pelo menos; e outros tantos, e muitos mais virão
depois, que em ruim cilada caímos. Voltemos para Tânger, senhor.
A dar-lhe razão, a campina parecia desentranhar-se em peões
armados. E já as primeiras bestas sibilavam em derredor da cavalgada, e um
clangor de anafis vinha rolando pelas encostas da serra, como se esquadrões
sobre esquadrões se despenhassem em catadupa contínua, para esmagar os
invasores.
Os menos temerários não esperaram a resolução de D. Fernando, e
envolveram a todos na retirada precipitada. Transpondo barrancos, galgando
sebes, saltando, córregos, os ginetes corriam à desfilada louca, arrastando
manadas e rebanhos. Debalde os dois Meneses, sobretudo o mais novo,
rouquejavam no meio do tumulto, intentando sustê-los. Até que em frente deles
lampejou um ribeiro, serpenteando no vale, avolumado pelas cheias do inverno,
caudaloso e refervente.
— Largai o gado, e passai para a outra banda — clamou o adail Diogo
Mendes. E os almocadéns incitavam:
— Depressa, que eles estão conosco!
Mas D. Diogo, com fúria juvenil revoltou-se:
— Não! não!
E a sua voz clara de adolescente
estrugia através do alarido
ululante, engrossada pela prosápia de quatro gerações intrépidas.
— Não largaremos uma só rês! Se é força que voltemos, seja com
despojo, já que não pode ser com glória! Mando eu!
— Pois que assim mandais, assim seja! — condescendeu o velho adail.
E João Rodrigues acrescentou em voz soturna:
— Nosso Senhor se amerceie das nossas almas.
D. Diogo não o ouviu. Em doida azáfama, sarilhando a espada,
girando em volteios rápidos, buscava reunir os ginetes desmandados, arrebanhar
as rezes dispersas, enxotá-las para a beira da torrente, num estrondear de
algazarras, de relinchos, de mugidos, de balatos, ao tempo que o solo abalava
com a galopada da mazagania, já forte de oitenta cavalos, e que uma nuvem de
peões, besteiros, espingardeiros, fundibulários, em número superior a
duzentos, avançava vertiginosamente sobre o desmanchado troço dos portugueses.
Então estes, apertados pelos inimigos, começaram a
vadear a ribeira. Choviam sobre eles as frechas, as lanças de arremesso, as
pedras, os pelouros. Na arriba escorregadia baqueavam os cavalos. As águas marulhantes
abriam-se para engolir corpos derribados. O relvão da margem já se embebia de
sangue. Um clamor de desespero ecoou, como sinal de irreparável desbarato. O
velho adail, ferido de morte, enleado nos loros, era arrastado veiga fora pelo
desenfreado ginete.
Na regaça da hoste, os dois irmãos Meneses, numa doidice heroica,
tentavam ainda aguentar a debandada,, fazer frente ao inimigo para salvar os
restos miserandos da almogavaria. Espreitava-os a morte ou apresentavam-se
para eles os grilhões do cativeiro. Súbito, a gente da vanguarda já na metade
do ribeiro, viu o rosto alvo de D. Diogo avermelhar-se de uma onda de sangue, o
seu busto vergar sobre o arção da sela, o seu corpo esbelto tombar exânime, ao
passo que uma manga de mouros se arrojava para o ginete em rugidos de triunfo.
Volvidos os olhos ansiosos para D. Fernando, viram-lhe apenas a pluma do
capacete ondulando no meio da turba fervilhante.
— Ambos são mortos! ambos são mortos! — exclamaram vozes angustiadas.
Então, um moço português, Pêro Álvares de Souto Maior,
a quem D. Diogo pusera na dianteira, e que durante o trágico desastre
trabalhara por dar ordens aos fugitivos, teve um arranco de soberba raiva.
— Não queira Deus que eu me salve, deixando os meus capitães mortos no
campo.
Assim disse Pêro Álvares de Souto Maior; e através da torrente
ensanguentada, arrepiando a correria insana dos fugitivos, arredando os
cadáveres que já balouçavam à tona da água, voltou para trás. Apenas o seu
ginete punha as pacas em terra enxuta, quando se apresentava a vender caro a
vida, envolveu-o um troço de cavaleiros mouros. Voou-lhe da destra, em estilhas,
a lança que brandia. Mãos robustas sustiveram o animal que se empinava. E uma
voz grave dominou o tumulto, com estas palavras corteses:
— La Fortuna vos pone en mis manos, señor. Cautivo sois de Cide Ornar
Bençalema.
E o alcaide de Xexuão curvava ao de leve a cabeça enérgica, numa vênia
cerimoniosa, enquanto a horda maometana, chafurdando nas ondas, vociferante e
bravia, varejava e acossava os cristãos fugitivos...
CAPÍTULO
2
Vibrou no ambiente límpido o repique longínquo das atalaias.
— Ei-los que voltam! Até que enfim!
E a multidão ansiosa dos moradores de Tânger refluiu às
muralhas, às açoteias, às portas da cidade, para esgaravatar com a vista aguda
o encinzeirado horizonte.
Horas e horas haviam decorrido
desde que a almogavaria se internara pelas terras do Magreb, e nem aviso de alfaqueque, nem atoarda de alganames erradios,
havia trazido até à cidade novas do seu destino. E os corações confrangiam-se
no terror de um desastre.
Pelas emaranhadas e ladeirentas
ruas escoava uma tropeada afanosa.
— É o senhor capitão, que vai ao encontro dos filhos.
E de feito, não tardou que a cavalgada galgasse da porta, do
Cerco, derramando-se pelos campos, na direção do Facho. À frente, no seu
rucilho caparazonado de um gilele precioso, D. Duarte de Meneses galopava; e
sob a gorra purpúrea de Milão mais avultava, a palidez doentia do rosto.
E, enquanto galopava pelo campo
fulvo de gramíneas secas, iam-se-lhe desenhando na
mente febricitante as recordações trágicas da família. Era seu avô, o primeiro
conde de Viana e primeiro capitão de Alcácer Segvier, dando a vida em
sacrifício, nos campos de Ceuta, para salvar o rei Afonso V. Era seu tio, o conde
de Loulé, D. Henrique de Meneses, mal ferido em Toro, morto pelos mouros na
serra do Farrobo. Era seu pai, D. Fernando de Meneses, que aos gilvazes do
alfanje mourisco devera a alcunha pitoresca do Narizes, e que, apesar dessas cicatrizes gloriosas, a sua dedicação
ao duque de Viseu tinha levado ao patíbulo. Era seu tio, o bispo de Évora, D.
Garcia, batalhador em Castela e na Itália, empeçonhado no castelo de Palmeia,
como cúmplice na mesma conspiração.
Uma onda de sangue projetava nas
páginas da história o apelido heroico
dos Meneses. Era sobre a gleba africana que escorria as mais das vezes esse
sangue generoso. Ainda mais sede teria dele o solo adusto da Mauritânia?
E as mesmas imagens pressagas,
que na carreira esvoaçavam em volta do
capitão de Tânger, surgiam ante os olhos de sua mulher D. Filipa de Castro,
enquanto, num dos eirados da alcáçova, ela media a pulsações precipitadas, o
tempo que faltava para o abraço dos filhos... Ah! permitisse Deus que esse
tempo não fosse todo o da sua vida, e que o abraço
antecedesse o da eternidade!
Junto dela, debruçados no parapeito, arregalando a vista pelos
campos, onde nuvens de poeira marcavam o itinerário da, cavalgada, agitavam-se
seus outros filhos adolescentes, D. Garcia e D. Isabel, ao passo que o resto
da prole, crianças trêfegas, brincavam despreocupadamente no eirado, à guarda
das aias mouriscas.
— Vão já muito perto do Facho — exclamou D. Garcia.
E dai a instantes, batendo as mãos de alvoroçada,
D. Isabel bradou:
— Chegaram, senhora mãe!
D. Filipa encostou vivamente ao
parapeito o busto cingido num sainho de raxa aleonada, e seus lábios titilavam num cicio de orações.
Quedaram-se assim algum tempo,
suspensos e mudos, ao passo que por detrás
deles ressoavam os risos argentinos da criançada. Apenas uns murmúrios de impaciência
afluíam aos lábios dos dois moços, até que a voz de D. Garcia se ergueu, numa
exclamação exultante:
— Lá voltam! lá voltam!
E as observações começaram a formular-se em frases rápidas. A
cavalgada ia-se aproximando. Engrossara naturalmente com os almogávares que
regressavam da expedição. Reverberava o sol sobre os elmos, os arneses, as
lanças. Mas ainda parecia bem minguado o troço a quem os vira partir na noite
antecedente.
— Meu Deus! não vêm todos! — murmurou D. Filipa, empalidecendo.
E daí a pouco perguntava, trêmula de ansiedade:
— Não vedes vossos irmãos?
— Ainda não posso afemençá-los — redarguiu D.
Garcia.
— Não vejo a pluma verde de meu irmão D. Fernando — acrescentou D.
Isabel, com impaciência infantil.
As crianças haviam-se calado, submissas à ordem da
angustiada mãe, que lhes impusera silêncio. E sobre o sussurro ondulante, que
subia da cidade, ouviam-se três ofegos descompassados e rápidos.
— Não posso, não posso. Desçamos ao seu encontro — disse afinal D.
Filipa, amarfanhando entre os dedos nervosos a manga aveludada de D. Garcia.
E, com ele e com a filha, desceu
açodadamente a escada da torre, e
encaminhou-se a passos precipitados para a entrada da alcáçova.
— Dá-me o braço, meu filho. Quero ir até à porta do Cerco — disse ela
numa decisão súbita.
Foram seguindo pelas vielas íngremes, atravessando o Soco deserto, encontrando
raros viandantes que acorriam tardiamente ao mesmo destino. Quando se lhes
deparou em frente a arquivolta mourisca que bocejava na amarelenta muralha, já
de há muito que um burburinho confuso lhes apontava o caminho. E seus olhos
viram em derredor da porta um redemoinhar de cabeleiras revoltas, sobre mantos e
vasquinhas de cores variegadas. Daquela, barafunda mulheril surdia uma zunida
cortada de gritos esganiçados, de plangentes clamores, de raivosas lástimas. No
instante em que D. Filipa, com seus filhos se detinha no topo da caleja,
retumbava soturno, sob o arco tríplice da porta, o, tropear dos cavalos. Houve
uma trégua momentânea no alarido, enquanto o negrume da arcada contornou a
figura imponente de D. Duarte de Meneses, pálido e sereno no seu corcel
ajaezado de prata. Mas logo a turba, que se arredara um instante, refluiu sobre
ele, ululante e desgrenhada, mergulhando os olhos ávidos na sombra, em que
vagamente se lobrigava a cavalgada.
— Meu marido!
— Meu filho!
— Meu irmão!
— Meu pai!
Eram as evocações angustiosas, que se distinguiam no tumulto, e
muitas das quais não logravam réplica. Porque, à medida que os cavaleiros iam
emergindo da sombra da arcada, se reconhecia que muitos dos que haviam partido
faltavam no regresso.
Então o capitão de Tânger deteve o ginete, a alguns
passos da porta, e respondeu, com triste serenidade, às mulheres que lhe
pediam contas dos seus:
— Ficaram fazendo companhia a meus dois filhos, como bons cavaleiros
que não quiseram desamparar seus capitães.
D. Filipa, à distância a que se achava, não podia ainda
ouvi-lo. Mas adivinhou-o. Seu coração ensombrou-se de horror. E baquearia, se
não a amparasse o braço de D. Garcia, pálido e angustiado como ela.
Um coro de lástimas acompanhava agora a cavalgada, ladeira
acima. De cento e quarenta, voltavam menos de cinquenta. À medida que essas
lamentáveis relíquias se iam internando pela cidade, umas como lufadas de luto
se engolfavam pelos lares dos ausentes. E sob o esplendor dourado do sol a
tropeada lúgubre parecia arrancar das pedras das ruas uns retinidos lentos de
dobre. D. Filipa sentiu-se afogada por uma onda de lágrimas. Mas tão severo foi
o relance de olhos que seu marido lhe vibrou de passagem, que recalcou de
súbito a sua dor materna. Sem dizer mais palavra, entre seus dois filhos, foi
subindo, por vielas e atalhos, até à alcáçova.
Quando chegou ao vestíbulo de entrada, já D, Duarte de Meneses surgia do
interior. Sobre a sua armadura brunida, lançara um balandrau de escarlata.
D. Filipa encarou-o com pasmo.
— Que olhais, senhora? — disse ele duramente. — Vesti-vos, como eu, de
cores garridas. Assim é mister para darmos consolação às anojadas,
— Mas quem mais anojado do que nós, senhor? redarguiu ela com timidez.
Que é feito de nossos filhos?
— Caíram na terra de África, a defender o seu rei e a sua fé. Que outra
sorte pudera ser a sua, pois são Meneses?
— Valha-me a Virgem Santa! — gemeu a pobre senhora, dando enfim curso
às lágrimas.
Mas D. Duarte agarrou-lhe com
firmeza o braço, e murmurou com intimativa:
— Não! não choreis! Não choreis, por Deus! que ireis fazer brotar o pranto
em olhos desafeitos a fraquezas! Não choreis, pois é mister que o capitão de
Tânger e sua mulher deem o exemplo da fortaleza, por muito que a mágoa os roa
por dentro. Vinde, vinde comigo, a visitar essas pobres mulheres anojadas.
E arrastou-a consigo através dos arruamentos sombrios.
Saíam carpimentos das casas de fronteiros, das casas de moradores. D.
Duarte entrava e dizia:
— Olhai a minha perda,, amigos! Dois filhos, em quem eu tinha todas as
minhas esperanças, e mais vinte e dois cavaleiros de minha casa, todas saíram
para não tornar. Louvores sejam dados a Deus Nosso Senhor, que assim o houve
por bem!
Nesta agonia passaram aquelas
duas almas o dia inteiro.
Quando, extenuados, alquebrados,
aspados, volviam à alcáçova, na ânsia
de uma trégua ao seu suplício, o almocadém João Rodrigues acercou-se de D.
Duarte de Meneses, muito alvoroçado.
— Senhor — disse ele — tenho suspeitas de que vosso filho o senhor D.
Fernando não é morto...
— Caluda! — atalhou vivamente o capitão, apertando-lhe rudemente o
braço, apontando para D. Filipa.
Desatenta ao colóquio, a nobre senhora punha os pés nos degraus da
escada, a caminho da sua câmara, onde finalmente lhe fosse dada liberdade do
desabafar em lágrimas.
— Caluda! — repetiu D. Duarte. — Não crieis temerárias esperanças
naquele coreação despedaçado. Ide, homem, enquanto não tendes mais que
suspeitas. Deus Nosso Senhor nos trará a certeza.
E precipitou-se a seu turno para
o interior da alcáçova, sentindo o pranto
a sufocá-lo.
CAPÍTULO 3
— Alvíssaras, senhor capitão! — clamava na manhã seguinte o almocadém
João Rodrigues introduzindo no gabinete um velho fronteiro que agitava na mão trêmula
um papel coberto de caligrafia tabelioa.
D. Duarte de Meneses levantou
para o adventício os olhos, cavados pela febre,
cansados de insônia.
— Sois vós, Fernando Anes de Souto Maior! Com que nova me confortais?
— Esta, carta — que trouxe antemanhã um alfaqueque, vindo da serra de
Ângera. Escreveu-a meu filho Pêro Álvares...
— Cativo?
— Sim. Foi essa a sua vontade. Não quis salvar-se, crendo seus capitães
mortos no campo.
— Valente moço! Contai-me esse feito.
Desvanecido, embora angustiado,
o \velho contou a forma por que se havia realizado a captura do filho. Depois
continuou a narrativa, consultando a missiva que tinha entre as mãos.
Enquanto os seus companheiros,
dizimados pelas lanças e alfanjes
mouriscos, avermelhavam as águas do ribeiro, ou, em debandada na outra margem,
procuravam a galope o caminho de Tânger, perseguidos pela mazagania,
arrogante, Pêro Álvares era conduzido para a retaguarda da mourama, na primeira
ondulação da serra, a caminho da aldeia de Beneolim horas antes devastada pelos
cristãos.
Entre um grupo de mouros,
vestidos na maior parte de alquicés
desbotados, viu ele alguns cativos portugueses, abatidos e exaustos, cobertos
de sangue e poeira, E no meio deles, com indescritível alvoroço, reconheceu D.
Fernando de Meneses, lívido, descarapuçado, em desalinho, mas aparentemente
incólume.
Nesse passo da narrativa, uma
exclamação de D. Duarte irrompeu:
— Vivo! Deus Nosso Senhor seja louvado! E o alcocadém acrescentou
compungido:
— Prouvera a Deus que outro tanto se pudesse dizer do senhor D. Diogo!
— Prossegui, Fernando Anes — ordenou o capitão, na mira de desviai
carpimentos inúteis.
O velho retomou a palavra.
Narrou como o filho não soubera reprimir o
seu contentamento ao ver um dos seus capitães a salvo da morte. Bastou o seu
olhar para corroborar suspeitas, que por certo já existiam no ânimo dos mouros.
Um desses adiantou-se, jubiloso, para um cavaleiro, que rio momento se
aproximava, envolto nas pregas leves e esvoaçantes do salham branco. Na
trazia armadura. A longa barba grisalhante recaía-lhe sobre a seda azulada do cafetã.
E a musselina alva do turbante ondulava em torno do capelhar vermelho, coroando
a fisionomia grave e serena, onde os olhos negros espalhavam clarões de
bondade.
— Mulei Abraém — disse com reverência o mouro que se adiantara
apontando para D. Fernando de Meneses — tendes nas vossas mãos...
— Basta! atalhou Mulei Abraém, falando em arábico como o seu
interlocutor. — É o filho do capitão de Tânger. Dai-lhe quanto antes um cavalo;
e dai outro a este mancebo, que me parece também de boa estirpe.
Obedeceram-lhe prontamente.
Surpreendidos, tanto D. Fernando como Pêro
Álvares, encavalgados sobre ricos felizes mouriscos, viram acercar-se deles o
antigo alcaide de Xexuão, agora favorito do rei de Fez.
Curvando ao de leve a cabeça, disse em puro castelhano a D. Fernando de
Meneses:
— Seja Vossa Mercê servido de me acompanhar.
D. Fernando, obedecendo à cortês indicação, tomou lugar à direita de Mulei
Abraém, ao passo que Pêro Álvares os seguia um pouco atrás, flanqueado por
dois cavaleiros de lança e adarga.
Os ginetes trotaram, voltando a
garupa ao ribeiro. Para além deste, ouvia-se
ainda, mal distinto entre esfumaçados olivedos, o tumulto da galopada, entrecortada
de tiros de espingarda e de clamores confusos.
O moço português relanceava olhares de curiosidade,
não isento de respeitosa deferência, para o nobre maometano que
se arvorava agora em seu senhor. Era seu inimigo sem dúvida, inimigo na raça, inimigo na fé. Desde
criança, porém, que se habituara a ouvir-lhe o nome entrelaçado em louvores,
como de um protótipo de lealdade cavalheiresca na guerra, de justiça e de
tolerância na paz. Era um desses vultos que representavam na África islamítica
as tradições venerandas de Harun-ar-Raschid, de Saladino, de Abd-el-Raman,
perduráveis na memória da cristandade. Havia cerca de trinta anos que a sua
fama transpusera o estreito, e se espalhava pela corte. de Portugal, enublada
de lenda, a tal ponto que até os próprios humanistas quase não hesitavam em
enfileirá-lo, ainda em vida, na galeria consagrada dos heróis de Plutarco.
Mulei Abraém atribuiu a abatimento de ânimo o silêncio que
deveria antes ser levado à conta de natural altivez ou de timidez juvenil. E
disse pausadamente, abrandando a andadura do ginete:
— Senhor D. Fernando, são estes os efeitos da guerra, que não pode
favorecer uma das partes sem dano da outra.
Abanou a cabeça, fazendo tilintar as grossas orelheiras de ouro,
e acrescentou:
— Mas esta vossa fortuna é mais pela áspera condição de vosso pai do
que por vós a merecerdes.
Em sua consciência, D. Fernando sentiu, sem embargo do absurdo
da conclusão, o justificado da premissa. Com efeito, a rispidez nativa de D.
Duarte nunca lhe permitira ter com Mulei Abraém as relações de cordialidade,
com que os capitães de Ceuta e de Alcácer, de Tânger e de Arzila, costumavam
preencher as intermitências da guerra. Mas não cumpria a seu filho reconhecer
tal culpa, por venial que fosse, em presença, do adversário. E o orgulho da sua
prosápia ditou-lhe imediatamente a resposta:
— Senhor, não vai isto da boa nem da ruim condição de meu pai, mas sim
do velho costume, que têm os Meneses, de derramar seu sangue pelos campos de
Alcácer, de Tânger e de Arzila.
— Ganhastes, senhor D. Fernando! — exclamou Mulei Abraém com
entusiasmo, estacando o ginete e estendendo para o muco cristão a destra
alienada e nervosa.
Pela memória do velho batalhador agareno passavam de
relance as figuras luminosas de todos os Meneses, que, no decurso de quase meio
século, ele e os seus haviam defrontado como generosos adversários nos campos
do Magreb; e sobretudo lembrava com saudades os dois D. Joões: o Repica-sino,
da casa de Cantanhede, heroico defensor de Arzila e de Azamor; o prior do Grato
e conde de Tarouca, egrégio capitão de Tânger! E todos os ramos diversos da
nobilíssima dinastia parecia terem derramado o melhor da sua seiva, para levantarem
aos olhos do guerreiro do Islã essa altiva vergôntea, esse moço nazareno que
acabava de proclamar numa bela sentença o orgulho indômito da sua raça.
Olhando para ele, o velho Mulei
Abraém sentia o coração alvoroçado com
vagos, indefiníveis assomos de ternura paternal. E uma lágrima lhe tremia nos
cílios, quando acrescentou:
— Dignai-vos apertar esta mão, e perdoai-me, senhor D. Fernando. Oxalá
meus olhos vissem junto de vós vosso desventurado irmão!
A mágoa entenebreceu mais ainda o rosto do mancebo.
Em silêncio, numa galopada, por adarços que fraldeavam a serra, breve chegaram
à alhala de Ângera, onde Mulei Abraém pousara aquela noite. Beduínos de
aljaravias remendadas de alquicés imundos, acocorados às portas das tendas,
olhavam com desprezo ou rancor para os cativos cristãos; mas não ousavam exteriorizar
em apupos os sentimentos que lhes roíam o íntimo. Antes faziam suas salemas à
passagem do nobre alcaide.
Este, com a sua, comitiva,
estacou em frente de uma casa de adobes, branquejando ao sol, onde uma porta
estreita abria um bocejo negro. E desmontando, disse com sua usual gravidade:
— Bem-vindo à minha casa, senhor D. Fernando. Não vos lembreis que sois
meu cativo. Por Issa, o santo precursor, que antes como a filho meu vos desejo
acolher.
Lá dentro, a hospitalidade oferecida, aos dois cativos foi com efeito
franca e afetuosa. À mesa de Mulei Abraém se sentaram, junto das mulheres do harém,
revestidas de cafetãs de seda recamados de ouro, deixando entrever os véus diáfanos
os rostos arrebicados de col, numa intimidade de que eram excluídos os fiéis
muçulmanos. Porque, entre travessas de alfitete, cestos de frutas,
confeiteiras de arrobes e marmeladas., viam-se albarradas cheias de vinho
espumante, defeso aos crentes, e com ele o nobre anfitrião não duvidava de
brindar a seu hóspedes.
Toda esta narrativa, extraída da minuciosa, carta de Pêro Álvares, trazia à
contenença ríspida de D. Duarte de Meneses sinais de irreprimível comoção.
Quem sabe se no íntimo o alanceariam remorsos, por não ter até então
manifestado a tradicional deferência por um inimigo magnânimo!
Não tardou que sua mulher D. Filipa de Castro recebesse entre lágrimas
a feliz nova. O salvamento de seu filho primogênito minorava a dor causada pela
morte do moço D. Diogo. Para logo começaram a planear-se as cláusulas do
resgate. :
Mas a Providência não consentiu que D. Fernando fosse
restituído ao amor dos seus. Levado para Fez, paternalmente tratado por Mulei
Abraém, venceram-no os germes da doença que levara de Tânger. E talvez que na
hora extrema se considerasse ainda afortunado, ao comparar o seu destino ao do
seu homônimo, o Infante Santo, que um século antes sucumbira ali mesmo, entre horrores
tremendos da sejana, sem um luar de carinho que lhe iluminasse a alma...
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Pesquisa, digitalização e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)
Pesquisa, digitalização e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)
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