Sangue azul
— Vossa
excelência há de perdoar, mas há perto de trinta anos que temos contas...
— É
certo; há perto de trinta anos que temos contas, e nunca o senhor deixou de ser
pontual e correto.
—
Mas como é, então, que o senhor conde...
— Eu
lhe explico. O senhor é um republicano exaltado, embora, sincero, e eu não
quero ter como rendeiro...
— Um
republicano exaltado?... Mas bem sabe vossa excelência, que eu sempre fui
republicano, já o era quando tomei conta das propriedades que o senhor conde me
arrendou!... A minha exaltação republicana nunca se traduziu em prejuízos para vossa
excelência quer levando- me a não pagar as rendas com a maior pontualidade,
quer fazendo com que não cuidasse das suas propriedades como se fossem minhas.
Republicano exaltado, desculpe o sr. conde, nunca fui, a menos que por
exaltação se entenda inabalável firmeza de convicções. Republicano, sim, fui-o
sempre, sou-o desde que me entendo; já o era quando tomei conta das
propriedades que vossa excelência me deu de arrendamento.
—
Não há dúvida. Simplesmente antes da República feita eu não acreditava que ela
se fizesse, de modo que o seu republicanismo tinha para mim a significação de uma
espécie de mania absolutamente inofensiva... Digo-lhe mais — achava bem que
houvesse republicanos, porque a ação fiscalizadora que eles exerciam sobre a política
e a administração continha os governos dentro de certos limites, evitando desmandos
ruinosos. O Sr. era republicano, e eu não ignorava que o fosse; nunca lhe pedi
que votasse nos candidatos do meu partido, nem mesmo quando um desses
candidatos... era eu. Reputava inabaláveis os fundamentos da Monarquia, tão
velha como a própria nacionalidade; era minha convicção que o trono resistiria
a todos os embates, porque tinha raízes na alma da Nação. Nestas condições o
seu republicanismo, como já disse, tinha para mim a significação de uma espécie
de mania absolutamente inofensiva, uma tineta de que não viria mal ao mundo, a
menos que se tornasse epidêmica.
— E
agora?
—
Agora o seu republicanismo é uma afronta ás minhas convicções políticas e ás
minhas crenças religiosas, é a negação das tradições que nobilitam o meu nome,
e também é, pela
extorsão dos impostos, uma ameaça à minha fortuna.
—
Não me compete discutir com o sr. conde as vantagens ou desvantagens da
Republica. Seria republicano mesmo que os governos na vigência da Monarquia,
administrassem com superior inteligência e irrepreensível honestidade;
continuaria sendo republicano mesmo que os governos da Republica juntassem a
uma incompetência manifesta uma flagrante improbidade. O que eu não percebo, Sr.
conde, é o que tem que ver a forma política da Nação com as relações entre
rendeiros e senhorios, estatuídas juridicamente em contrato, ou assentando
simplesmente, como no meu caso, numa base de confiança mutua.
— É possível
que tenha razão; mas dispenso-o de tentar convencer-me, porque perderia o seu
tempo.
— De
modo que a resolução de vossa excelência?...
— É
absolutamente inabalável. No fim do ano eu tomo conta das propriedades, e o
senhor arranja a sua vida como julgar mais conveniente.
—
Assim será, visto que o Sr. conde quer que assim seja... Se lá no outro mundo o
avô de vossa excelência e o meu tivessem conhecimento do que se está passando
entre nós, ambos o lamentariam com profunda e sincera mágoa.
—
Por quê? O seu avô serviu a nossa casa?
—
Não, sr. conde. O meu avô e o avô de vossa excelência foram aprendizes de
ferrador na mesma oficina, e a amizade que aí contraíram durou a vida de ambos,
estimando-se e ajudando-se como se fossem irmãos.
As
voltas que o mundo dá, Sr. conde!...
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Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)
Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)
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